Equívocos e batalhas

Em entrevista com Álvaro Alves de Faria, o poeta e artista plástico Eduardo Alves da Costa fala de sua poesia e lutas artísticas
Eduardo Alves da Costa escreveu poemas para seu tempo, sem nunca ter sido panfletário
01/09/2004

• Afinal, aquela questão do seu poema que era atribuído a Maiakóvski está de fato solucionada? Eu sei que isso lhe deixava bastante abatido. Como é que você lidou com esse problema por tanto tempo?
Você se refere ao fragmento do poema No caminho, com Maiakóvski, que foi utilizado inicialmente pelos estudantes que se rebelavam contra a ditadura militar. O fragmento apareceu em diversos jornais universitários, ainda com a autoria atribuída a mim. O escritor Roberto Freire viu o fragmento e, pensando que se tratasse de um poema de Maiakóvski traduzido por mim, utilizou-o como epígrafe de seu livro Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu, que fez grande sucesso na época. O fragmento passou então a ser utilizado em citações, cartões postais, posters, indo parar até na camiseta amarela usada na campanha das “Diretas Já”, sempre atribuído a Maiakóvski. Como o brasileiro é muito inventivo, passou a atribuir o fragmento a outros autores: Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Wilhelm Reich, Bertolt Brecht, Leopold Senghor, Freud, Jung… De tão absurda a coisa chegava a ser engraçada. De vez em quando algum amigo me ligava para dizer que vira o fragmento com outra autoria. Alguns jornalistas, como Carlito Maia, Mino Carta e Henfil procuraram desfazer o equívoco; mas o fragmento já se difundira de tal maneira que o efeito dessas tentativas era sempre reduzido. Quem deu o golpe de misericórdia nessa loucura toda foi meu querido amigo Manoel Carlos, ao apresentar o fragmento do poema em sua novela Mulheres apaixonadas para cerca de 50 milhões de telespectadores. Uma jornalista do Rio deu nota zero a Manoel Carlos por ter atribuído o famoso poema de Maiakóvski a um poeta de Niterói. Outro equívoco, pois embora tenha nascido em Niterói, fui trazido para São Paulo com apenas dois meses de idade, o que resultou num sotaque inconfundível e num modo de ser absolutamente paulistano. Mas não me ofendi com o preconceito evidente da jornalista, pois sempre gostei muito de Niterói, que aliás é a terceira cidade brasileira em qualidade de vida. Sentindo que a cobra agonizava (refiro-me ao equívoco e não à jornalista), mas ainda tentava morder-me o calcanhar, pela voz de alguns recalcitrantes, que pouco sabem e julgam tudo saber, pedi a um amigo que me enviasse de Paris a obra completa de Maiakóvski, em cinco volumes, traduzida do russo por Claude Frioux e publicada pela L’Harmattan, da qual, obviamente, não consta meu poema. Com essa arma nas mãos e a certeza de que não psicografei o poema, posso garantir que o caso está definitivamente encerrado. A menos que alguém levante novamente a dúvida: Mas será que não está na obra completa de García Márquez, Borges, Reich, Freud, Jung… O resultado da ópera foi que esse fragmento acabou por ocultar o restante de minha obra poética, pois sempre que eu era entrevistado lá vinha a pergunta fatal sobre a autoria.

• No caminho, com Maiakóvski é sua poesia reunida. O que isso significa para você?
Ao tomar conhecimento de que o fragmento de meu poema havia sido apresentado na novela para cerca de 50 milhões de pessoas, o editor Luís Fernando Emediato, da Geração Editorial, mostrou interesse em publicar minha obra poética reunida, numa edição de 5 mil exemplares, com projeto gráfico e capa de Silvana Mattievich. Faço questão de citar o nome dessa profissional porque o livro, como objeto, é uma verdadeira obra de arte. A quem possa interessar, o livro foi muito bem distribuído e ainda se encontra nas livrarias. Para mim, a edição dessa obra representa muito, pois embora tenha havido uma edição anterior (da qual não constava meu último livro de poemas, O canibal vegetariano), por uma grande editora do Rio de Janeiro, lamentavelmente, por uma falha de produção, que inseriu dentro do meu livro alguns poemas de outro poeta, a obra teve que ser recolhida e o contrato desfeito. Como inúmeros equívocos desse tipo me perseguiram durante anos, além do já mencionado episódio maiakovskiano, cheguei a pensar em olho gordo, macumba, pé frio. Mas ao conversar com outros autores, constatei que todos eles têm casos semelhantes a contar. Trata-se, muito simplesmente, de descaso com que alguns profissionais vão tocando seu trabalho. Imagine a cena: Os sujeitos estão encadernando os livros de dois autores ao mesmo tempo e assistindo a uma disputa entre Flamengo e Fluminense pela TV. De repente, um gol decisivo! E alguém pega uma pilha de cadernos do outro autor e os mistura com os cadernos do meu livro. Para recuperar o tempo perdido, o encarregado grita: Manda bala, pessoal, que essa merda tem que ficar pronta antes das cinco! O livro reúne poemas escritos ao longo de mais de quarenta anos. Pouca coisa, na verdade, se considerarmos o total de apenas 285 páginas e descontarmos os embelezamentos do projeto gráfico. Mas, por outro lado, apresenta apenas o essencial, sem concessões ou gratuidades. Cumpre salientar que esta é a primeira edição de um livro meu distribuída em todo o País. E isso tendo eu já completado 68 anos. Ave, Manoel Carlos! Quanto ao conteúdo, não tenho muito a dizer a não ser que me agrada, pois tudo quanto não me satisfaz é destruído imediatamente.

• Você foi o primeiro poeta da Geração 60 de São Paulo a falar poesia num teatro, o Teatro de Arena, quando a cidade não era isso que é hoje. Depois o Lindolf Bell fez o mesmo e eu fui dizer poemas no Viaduto do Chá. Era um tempo conturbado. Você teve problemas sérios. Tantos anos depois, como é que você vê isso hoje?}
Essas leituras ocorreram em l962/63. Eu freqüentava o Teatro de Arena, em São Paulo, onde acabei me tornando amigo de vários atores. Eu havia lido algumas matérias sobre os recitais que os jovens poetas russos faziam em Moscou, nos teatros e praças públicas, chegando a reunir cerca de dez mil pessoas. Aquilo me empolgou e eu comecei a fazer leituras no Arena, para umas 40 pessoas. Os russos têm uma longa tradição de amor e respeito pela Poesia. No Brasil, como eu soube mais tarde, pela boca de um representante do governo, poesia é coisa de viado. Bem, havia essa desproporção de público, dez mil espectadores russos contra 40 brasileiros, mas eu fui em frente. Depois eu ironizei isso no poema Dudu Psicodélico, referindo-me a mim mesmo como “James Dean de subúrbio, Evtuchenko do brejo”. Foi uma experiência interessante, que reuniu alguns poetas da nova geração. Com o enorme sucesso obtido junto a essas 40 pessoas (devo estar exagerando, talvez fossem apenas 30), decidimos conquistar o Brasil e partimos com entusiasmo para leituras ao ar livre. Lembro-me de uma, na Praça da Sé, em meio a um barulho ensurdecedor, em que nós, empunhando um megafone, berrávamos os versos para os transeuntes, dentre os quais três ou quatro operários que esperavam o ônibus e nos olhavam como se fôssemos ETs. Havia um ritual que você e eu cumpríamos antes de qualquer leitura nos teatros: tomados pela ansiedade e pelo nervosismo, corríamos para o banheiro, vomitávamos, lavávamos o rosto e entrávamos no palco cheios de vitalidade. Numa noite inesquecível, arrasamos num teatro de Araraquara e fomos cercados por uma multidão de 15 ou 20 pessoas que nos pediam autógrafos. Era a glória. Enquanto isso, o Brasil nos ignorava, como nos ignora até hoje. A Poesia é uma atividade marginalizada, ignorada pela maioria dos leitores brasileiros. Se considerarmos o número enorme de pessoas que escrevem poesia hoje, esse descaso chega a ser um enigma. Você mencionou o Lindolf Bell, que acabara de chegar de Santa Catarina e certamente também lera a tal matéria sobre os poetas russos. Comprou uma malha vermelha, criou a “Catequese Poética” e, com seu porte magnífico, alto, loiro, olhos verdes, saiu pelo mundo, conquistando platéias. No início sofreu algumas alfinetadas, mas acabou sendo respeitado por todos nós, tanto pela seriedade e pureza de sua intenções quanto pela qualidade de sua Poesia. Uma lástima que tenha falecido no dia de seu aniversário, ao completar 60 anos. Mas não creio que lhe agradasse a idéia de envelhecer. Você mencionou também suas leituras no Viaduto do Chá. Foram nove recitais em que você leu os poemas de O sermão do viaduto e que lhe custaram cinco prisões por subversão. Mas valeu a pena. O Sermão ficará como um grito de angústia e protesto numa época de trevas: “(…) Eu afirmo que o sermão do viaduto/ é o sermão dos verdadeiros, que a palavra/ do viaduto é a palavra do século,/ porque assim como não restou pedra sobre/ pedra, ainda não restará dos destruidores”. Minha detenção no Dops durou 19 dias, 11 dos quais numa solitária, incomunicável. Um jovem pedira meu telefone a uma amiga comum, dizendo ser leitor de meus poemas. Foi preso alguns dias depois numa panfletagem contra a ditadura, com meu telefone no bolso. Entre meus pertences, os investigadores encontraram um exemplar de meu livro de poemas O tocador de atabaque, considerado subversivo, o que agravou a situação. Pensaram que eu fosse terrorista. Fui salvo por um amigo, o pintor Guilherme de Faria, que remunerou os serviços de um advogado com vários de seus desenhos de gravuras. Não sofri nenhuma agressão física, mas passei por diversas torturas psicológicas, ameaças de morte, etc. Ao sair, ouvi um investigador dizer a outro que podia suspender a sessão de “pau-de-arara” porque eu já estava com alvará de soltura. Eu seria torturado naquele dia, às seis da tarde. Outro investigador me afirmou que negócio de poeta é dar o cu. Baseado nessa informação, escrevi o conto Negócio de poeta, que termina com a descrição de um grande obelisco dedicado ao Poder, no qual dezenas de poetas — Camões, Dante, Milton, Homero, Baudelaire… —, com as calças arriadas até os tornozelos e entregues ao seu negócio, compõem o Monumento à Grande Piroca do Estado Opressor. Você também foi incluído. Como vejo isso tantos anos depois? Não costumo remoer o passado. O resultado aí está. Quem tiver olhos para ver veja.

• A Geração Editorial vai publicar também uma nova edição da sua novela que, quando foi publicada a primeira vez, chamou a atenção por sua linguagem. O que você pode falar sobre Chongas?
Embora tenha apenas 119 páginas, na edição original, Chongas é um romance e não uma novela. Não se trata apenas de uma distinção de gênero pela extensão do texto e sim pela maneira como a narrativa foi construída. O romance, lançado em l974, havia sido escrito entre 66 e 67. Foi iniciado em São Paulo e concluído no Rio de Janeiro, no terraço de um edifício do Morro da Viúva, com vista para o mar. Talvez por isso a maior parte da história seja muito paulistana, com um final à carioca, mais descontraído. Trata-se de uma história de amor que não sai do ponto morto. Cada capítulo começa com a tentativa de conquista e termina com a frustração. A história de amor serve, na verdade, como pretexto para ironizar uma maneira de ser, para fazer o que Antônio Houaiss, em seu generoso prefácio, classificou como “caricatura de uma imperícia perita que monta uma fração do universo real da São Paulo desse grupo etário social e classalmente delimitado e autofechado, fadado a ser chongas através de seus sonhos que se embotam, de suas pretensões que se irrealizam”. O título ficou um tanto obsoleto. Quando o escolhi, a palavra “chongas”, que queria dizer picas, nada, coisa nenhuma, era muito utilizada na gíria. Na próxima edição, a ser lançada pela Geração Editorial antes do fim do ano, preservaremos o Chongas, para deixar bem claro que se trata do mesmo livro, e acrescentaremos um subtítulo: Jovens, rebeldes e solitários. Além de ironizar situações que eu via ao meu redor, ironizei a mim mesmo, o que me parece fundamental. O livro foi muito bem acolhido pela crítica, mas prejudicado por ter sido publicado pela Ática, editora cujo forte eram os livros didáticos. O mercado editorial é cheio de manhas e sutilezas que escapam ao autor. Em l967, logo depois de concluído o livro, eu vivia no Rio de Janeiro e procurei uma editora que fazia grande sucesso. Um dos proprietários, escritor de renome, teve a bondade de ler o livro e gostou muito. “Quantas vezes você reescreveu a obra?”, perguntou. “Apenas uma”, respondi. “Então devo lhe dizer que você é muito talentoso e bastante preguiçoso”, concluiu. Mas decidiu publicar o livro, com a condição de que eu retirasse a meleca. Parece incrível mas essas coisas acontecem. A meleca estava nas primeiras linhas do sexto capítulo: “Não havia pressa, ele podia terminar a bolinha sossegado. Era uma bolinha igual a milhões de outras que as pessoas fazem pelo mundo afora. (…) Quando a bolinha ficou pronta ele achou que as idéias começavam a fazer sentido, como se tivesse amassado os pensamentos na ponta dos dedos e agora lhe fosse possível livrar-se deles com um simples gesto.” Argumentei, mostrando que não havia no texto a palavra meleca, o personagem poderia estar fazendo uma bolinha imaginária. Mas a filha do escritor lera os originais e implicara com a meleca. “É uma coisa meio nojenta”, avaliou ele. “Você precisa tirar.” Continuei defendendo a permanência da meleca: ”Faz parte da ação, do contexto, não foi colocada aí gratuitamente, para chocar o leitor.” Já não me lembro se naquela época as melecas chocavam os leitores. Vai ver eu fui um precursor da meleca na literatura mundial. O fradinho do Henfil não conta, porque não era literatura. “Se você não retirar a meleca, eu não publico”, intimou ele. Não retirei e ele não publicou. Deixei de ser lançado por uma das editoras mais importantes da época, o que faria de mim uma estrela, se considerarmos as críticas elogiosas que eu recebi depois. O livro ficou engavetado até l974, quando foi publicado pela Ática. E tudo por uma meleca. Parece até letra de tango. Não me arrependo. Sem a meleca, o início do capítulo não teria a menor graça. Já perdi inúmeras oportunidades por ter essa independência. Mandei muito patrão à merda, abri mão da carreira como redator de publicidade e jornalista, para manter esse espírito de rebeldia herdado da beat generation. Espero que a nova edição seja bem acolhida, com meleca e tudo. Quanto à modernidade e originalidade da linguagem, ressaltada por Antônio Houaiss no prefácio, o livro nada perdeu, embora tenha sido concluído há 37 anos. Ouvi dizer que o livro foi estudado num curso de pós-graduação da USP, mas não sei se isso de fato ocorreu.

• O que é para você a poesia brasileira atual? Ela tem salvação estando como está nas mãos de tantos facínoras, desses poetas marqueteiros devidamente amparados pela mídia sem compromisso com nada?
A poesia atual é a de sempre, há bons e maus poetas, estes últimos em maior número, obviamente, porque se trata de uma arte difícil. Você pode enganar mais facilmente na prosa do que na poesia, porque nesta o texto é mais sintético e as falhas se tornam bem mais evidentes. A produção de má poesia, hoje, é alarmante, como, aliás, ocorre com as artes plásticas. São poucos os que se interessam em conhecer o idioma além das necessidades coloquiais; ou os que procuram aprender os fundamentos das artes plásticas, estudando composição, ritmo, desenho, cor, etc. E isto não ocorre apenas no Brasil. Eu estava em Amsterdã, logo após minha exposição na Embaixada Brasileira, em Haia, e entrei numa galeria importante, a fim de mostrar meus catálogos e tentar estabelecer contato, para exposições futuras. Um homem de meia-idade me recebeu com indiferença e, sem se levantar da cadeira, sentenciou: “Eu só trabalho com os mortos”. “Voltarei dentro de alguns anos”, disse eu, recolhendo os catálogos. “Não me leve a mal”, concluiu ele. “Seu trabalho me parece interessante. Ocorre que o governo cometeu o erro de financiar os jovens pintores, pagando a cada um 600 dólares mensais. Eles se juntam numa comunidade, o que lhes permite sobreviver e pintar. O resultado disso é que o número de artistas cresceu assustadoramente. Ninguém quer saber de estudar a sério, ninguém mais conhece o métier. As galerias, os porões, as mansardas e os depósitos estão atulhados com montes da mais pura merda. A quantidade de merda é tão grande que afetou minha sensibilidade. Já não há parâmetros e eu hoje sou incapaz de distinguir, ao certo, o que é bom e o que é merda. Para não cometer erros fatais, prefiro trabalhar apenas com os mortos, consagrados pelo tempo.” Creio, portanto, que os facínoras são dispensáveis, pois a Poesia pode ser assassinada pelos irresponsáveis e ingênuos que a massacram com as melhores das intenções. Mas isso faz parte do jogo e o tempo se encarregará de dizer quem foi ou não um bom poeta. Quanto aos facínoras que se apossam da mídia e se entregam a articulações de poder, impedindo o surgimento ou o reconhecimento de novos valores, sempre existiram. Nossa geração foi muito prejudicada por eles e ainda não conseguiu penetrar nos grandes meios de comunicação. Fomos barrados no baile por uma “vanguarda” que durou algumas décadas, como se depois dela nada houvesse surgido. O espírito da máfia habitou entre nós. Felizmente isto vai sendo superado à medida que alguns poetas de nossa geração publicam sua poesia reunida. Quem sabe um dia essa vanguarda renitente e soberba acabe se transformando em retaguarda. Não digo que a Poesia tenha salvação porque, a meu ver, ela jamais esteve em risco. Sempre haverá, em todas as classes sociais, quem saiba apreciar um bom poema. E isto é mais que suficiente.

• Quero que você fale sobre sua vida de pintor, que expõe só fora do país, já que por aqui os subterrâneos são sombrios também nessa área…
Você tem razão quanto aos subterrâneos. Quando comecei a pintar, há 21 anos, eu tinha uma visão meio romântica do que seria a vida de pintor, aquela fraternidade que existiu na época do Impressionismo, por maiores que fossem as divergências. Os pintores se reuniam com freqüência nos cafés, para trocar idéias e estabelecer estratégias comuns de conquista de mercado, pois tentavam sobreviver de seu trabalho e eram constantemente barrados e ridicularizados pela arte oficial. A realidade, contudo, se mostrou bem diferente. Alguns pintores reagiram como se eu estivesse invadindo sua área. Afinal, o “meu negócio” era a literatura. Com o tempo notei que os pintores, em geral, não se freqüentavam, talvez em decorrência do intenso ritmo de São Paulo, uma cidade que, no dizer de Carlito Maia, “junta os bandidos e separa os amigos”. Hoje, meu trabalho como escritor e pintor é muito solitário, sem que isto no entanto me incomode. O período de aprendizado também foi solitário e muito longo. Minha primeira exposição ocorreu 16 anos depois de eu ter esboçado meu primeiro quadro. Pintei e destrui muitos estudos, sem conseguir encontrar um caminho, um estilo próprio. A maior dificuldade consistiu em separar o escritor do pintor. Um dia o pintor Guilherme de Faria, meu amigo, disse algo que me colocou no caminho certo: ”O problema é que você está procurando o quê, quando na pintura o que importa é o como. Mas aquilo era o óbvio. Ocorre o mesmo com a literatura, na qual um tema fraco (o quê) pode ser transformado numa obra genial se o autor souber como fazê-lo. Esse como, inclui originalidade, engenho, força expressiva, enfim todas as qualidades do que se entende por estilo. Exemplo: Dostoiévski lê uma notícia de jornal que descreve o assassinato de duas velhinhas usurárias e, baseado nesse tema banal, descrito em poucas linhas, escreve Crime e castigo. Eu encontrara meu estilo poucos anos depois de ter começado a pintar, mas não soubera reconhecê-lo. Enquanto estava à procura do tal como, li inúmeros tratados de pintura, estudei desenho, composição, perspectiva, teorias sobre a cor… Estudava, pintava, destruía. Estudava, desenhava, destruía. Quando dei por mim já era dono de um estilo. E como tudo ocorre numa certa seqüência, em nossos caminhos, no momento em que eu estava pronto surgiu em minha casa, trazida por amigos comuns, Dominique Besse, que era adida cultural da França. Gostou de meu trabalho e prometeu conseguir uma exposição em Paris, o que acabou acontecendo em janeiro de 1999, na Galeria Dina Vierny. Quem já se deu ao trabalho de ler uma boa biografia de Picasso certamente encontrou referências à sra. Dina Vierny, que aos 16 anos já era modelo do escultor Maillol e amiga de Picasso, Matisse e outros artistas de renome, que se referiam a ela como “a musa, a deusa da pintura”. Esta encantadora senhora e seu filho Olivier Lorquin tiveram a gentileza de me descobrir como pintor. Graças a esse apoio tive todas as portas abertas para expor em Haia, Amsterdã, Berlim, Bremen-Lilienthal, Guldelfingen, Antuérpia e, mais recentemente, na Pinacoteca de São Paulo, a convite de Emanuel Araujo, e no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Não me nego a expor no Brasil, mas a verdade é que embora minhas exposições aqui, como no exterior, tenham sido um sucesso de público, não despertaram o interesse da mídia especializada. Já me perguntaram várias vezes como eu consegui “furar o bloqueio” e expor numa galeria de renome como a Dina Vierny. Segundo palavras de Olivier Lorquin, diretor da galeria e do Museu Maillol, o que os atraiu na minha pintura foi o que ele denominou a “pureza do olhar”, típica da pintura naif, numa obra que nada tem de ingênua, pois apresenta muitos elementos de sofisticação, conhecimento técnico, etc. Essa qualidade, segundo ele, é muito rara na pintura e quase desapareceu da arte contemporânea. “Há no universo pictórico de Alves da Costa — diz ele — uma grande doçura, uma imensa liberdade que lembra aquela dos primitivos modernos. Os temas de suas pinturas são poderosos, às vezes ferozes e seu tratamento tão sensível. Eduardo é um humanista que penetrou no pequeno círculo dos verdadeiros pintores”. Há outro componente que considero importante na elaboração de meus quadros: a modulação da luz. Encontrei, ao estudar os tratados, vagas referências à luz difusa, especialmente no que diz respeito à obra de Rembrandt. Após algumas tentativas para obter esse efeito, que segundo os tratadistas resulta numa certa elegância e em maior sutileza, cheguei à conclusão de que, antes de mais nada, teria que produzir a referida luz no próprio ateliê, por meios artificiais, ou seja, utilizando lâmpadas. Conseguido o efeito desejado, fiz incidir a luz sobre a tela em branco, obtendo assim uma luminosidade que se distanciava tanto da luz natural quanto da luz agressiva das lâmpadas comuns. Isto me possibilitou modular com mais precisão os efeitos luminosos, de maneira a trabalhar a partir dos meios tons. O resultado é uma pintura que foge tanto das sombras muito profundas quanto das luzes intensas. Imersos na luz difusa, as figuras e o fundo, até mesmo quando se trata de uma cena ao ar livre, parecem colocados num palco. Caso me queiram rotular com algum dos ismos, embora a pintura contemporânea se situe mais no âmbito da personalidade do autor do que nas escolas, talvez me possam inserir num expressionismo peculiar, que busca as sutilezas do tema e procura traduzi-las com uma certa dose de poesia, circunspecção, ironia e humor, temperados às vezes com algum simbolismo. Atento aos ensinamentos dos mestres orientais, que valorizam mais a intuição, a sensibilidade, a pintura feita não só com os olhos e as mãos, mas também com o coração, procuro traduzir o que vejo ou imagino numa linguagem moderna, sem perder de vista a tradição da pintura. Mas voltando ao início, muito antes do aprendizado “a sério” eu tivera um verdadeiro curso informal com Mário Gruber, que eu considero um dos maiores mestres da pintura brasileira. Sem pensar ainda em ser pintor, freqüentei o ateliê de Gruber durante oito anos, quase que diariamente, acompanhando a feitura de inúmeros de seus trabalhos. Foi ali que aprendi a denominada “cozinha da pintura”, o que me possibilitou assimilar mais facilmente os tratados que viria a ler mais tarde e a produzir materiais próprios, como o “Gel de Rubens”, que se supõe tenha sido utilizado pelo grande mestre, uma mistura de óleo de linhaça e litargírio, fervidos a mais de 200 graus, aos quais se acrescenta mastique (o misc, resina natural que entra na composição dos doces árabes), diluído com essência de terebintina. O que há de mais interessante nessa história, para mim, é a possibilidade de mexer com todos esses materiais, trabalhar fisicamente, sentir o aroma que impregna o ateliê, produzir obras palpáveis, que podem ser apreendidas de imediato, com um simples olhar, e que são acessíveis a todos. Quando exponho no exterior, fico fascinado com a reação das pessoas que não conhecem nosso idioma, nossa cultura, e que vibram diante dos quadros com observações, críticas, risos. Sem necessidade de tradutor. Por outro lado, iniciar uma nova carreira aos 47 anos foi uma espécie de renascimento. Isso renovou o entusiasmo e abriu novas perspectivas.

• Você acha que os poetas e escritores brasileiros sérios são respeitados no país?
Não me preocupo com isso. O País, como um todo, não é muito sério. Às vezes me pergunto como conseguimos funcionar razoavelmente com essa esculhambação generalizada. Não vamos nos deter aqui no rebostalho subjacente às estruturas arcaicas da realidade nacional. A merda cheira mal e é sobejamente conhecida por todos. Mas não deve nos incomodar tanto, já que nada fizemos de sério para eliminá-la de nossas vidas. Acabei chegando à conclusão de que a merda social faz parte da vida humana, tanto quanto a merda pessoal. E assim como não podemos eliminar a merda de nossas latrinas, sem uma profunda alteração de nossa natureza humana, também não podemos eliminar a merda social. Todas as tentativas nesse sentido acabaram resultando em opressão e morte de milhões de pessoas. Em outras palavras, prefiro a evolução à revolução. Se o País nos parece, em certos momentos de consciência e irritação, uma grande merda, isto resulta da somatória de todos nós. Uma vez li algo definitivo sobre essa questão. O sujeito dizia mais ou menos o seguinte: “Se cada um de nós se considera tão perfeito, por que razão a soma do conjunto não tem a mesma perfeição? Algo deve estar errado nessa conta”. Mas voltemos à sua pergunta. Os escritores sérios não devem se preocupar com o fato de estarem ou não sendo respeitados num País onde não se respeita a infância, a miséria, a doença, a velhice nem porra nenhuma! Como é que eu posso exigir respeito se ainda temos trabalho escravo, crianças abandonadas, velhos entregues à própria sorte, escolas em ruínas, hospitais sucateados, viciados que clamam contra a violência dos traficantes, salário mínimo de comédia bufa, prostituição infantil, milhões de famintos, aposentadoria de envergonhar camelos no deserto, corrupção endêmica, espancamentos e estupros domésticos? (Com licença, vou interromper a entrevista para vomitar!). Levo meu trabalho a sério e gostaria de ser respeitado. Mas, embora já faça parte da terceira idade, abro mão das prerrogativas e aguardo no fim da fila, com a esperança de que um dia arregacemos as mangas e, dentro da lei, respeitadas as liberdades democráticas, decidamos limpar as latrinas para manter a merda nos limites do razoável.

• Quem você gostaria de mandar para a puta que o pariu neste imenso vale de sombras que é a literatura brasileira de tantos equívocos e mentiras enaltecidas?
Se você me permitir, abro mão de mandar à puta que os pariu os falsos escritores, oportunistas, picaretas e outros congêneres da literatura brasileira para assestar os canhões obscenos em outra direção. Os equívocos e mentiras enaltecidas a que você se refere prejudicam apenas os escritores sérios, pois confundem o mercado e inundam as prateleiras das livrarias com uma escumalha que oculta as obras de peso. Tenho a firme convicção de que, no devido momento, o “vale de sombras ”será iluminado pelo sol causticante do meio-dia, que calcinará bordados, plumas, lantejoulas, vitrilhos, galões, dragonas e outras miudezas que compõem o brilho da falsa literatura. No coração da África há uma doença oculta que mata os pigmeus. Prefiro mandar à puta que os pariu os que provocam o excesso de esmerdeamento descrito na resposta anterior. A esses podemos somar os que destroem o meio ambiente, comprometendo a vida sobre a Terra. Há alguns anos li uma reportagem que me deixou perplexo. Há idiotas que adquirem grandes áreas da Floresta Amazônica e as incendeiam, sem se dar ao trabalho de retirar a madeira, para colocar lá algumas cabeças de gado. Eu julgava, ingenuamente, que a floresta fosse propriedade do Estado. Como é possível que qualquer maluco endinheirado adquira uma enorme área florestal para destruí-la, sem dar satisfações a ninguém?! Destruíram mais da metade do Cerrado, com uma biodiversidade riquíssima, para plantar soja, algodão… E já se fala em destruir o que falta, com vistas a exportação para a China. Alegam que isso beneficia o País, pois com o crescimento da agroindústria, blablablá. Centenas de milhares de camponeses vagam pelas estradas, expulsos pela moderna tecnologia. E os poderosos continuam com essa conversa de benefício para todos, que me faz lembrar o Milagre Brasileiro. Creio que se deva fazer algo mais sério além de simplesmente mandá-los à puta que os pariu.

LEIA RESENHA DE NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKY

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho