O poeta Pedro Tamen nasceu em Lisboa, em 1934. Dirigiu a editora Moraes e foi membro da direcção da Fundação Calouste Gulbenkian. É tradutor de numerosas obras, encontrando-se, agora, a traduzir: À la Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust. Tem uma vasta obra poética, condensada em Rétabulo das Matérias (1956-2001). Publica este ano, no Brasil, Caronte e Memória, que reúne os seus dois últimos livros, e onde se assiste à pulverização do sujeito poético numa proliferação exaustiva de perspectivas. O movimento inverso de construção de uma gestalt só sai do nada incontrolável pela melodia que é estruturante da sua poética: utilização do ritmo como uma memória oral que se ergue contra o esquecimento de ser. A entrevista que se segue foi realizada, em dois tempos, pelos poetas Rosa Alice Branco e Floriano Martins.
I
RAB – Numa entrevista à Revista Ler considera que não “ossificou” Os Lusíadas ao dividir as orações; pelo contrário, “o truque, a chave foi descobrir a forma de desarmar os elementos da frase. Dividir as orações apenas enriquecia o nosso conhecimento de todas as tonalidades do texto”.
No seu trabalho de tradução sinto que a encara também enquanto enriquecimento exaustivo das tonalidades do texto, pelo que a equivalência semântica não pode nunca apagar a fruição sonora do texto na língua de chegada.
PT – É verdade que a abordagem de um texto como uma sequência mais ou menos estruturada de unidades semânticas, se bem que contribua decisivamente para uma aguda penetração dos seus recônditos segredos e matizes, não permite por si só, se por aí se ficar, uma apreensão total (se é que a uma apreensão total alguma vez poderemos aspirar) de todas as riquezas e virtualidades do dito texto.
Na obra de tradução, a decifração das estruturas semânticas, as quais, no trabalho em que estou actualmente empenhado (Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust) são, como se sabe, extremamente complexas, é, mais talvez do que em qualquer outro objecto de estudo ou de trabalho, absolutamente essencial, e sem esse tipo de laboriosa análise é de todo em todo impossível qualquer versão. Mas de modo algum podemos renunciar, por mais exaustiva que tenha sido essa tarefa analítica, e por mais efectivamente exaustos que tenhamos ficado depois dela, a um outro tipo de abordagem e a um outro grau de ambição, que é, precisamente, a detecção na língua de partida – e, sobretudo, a «digestão» na língua de chegada – de todos os outros elementos (aliás, inseparáveis da aludida estrutura) que compõem o texto na sua integralidade – e entre os quais avultam (e como!) os que perfazem a sua ressonância ao nível do ouvido: do ouvido exterior, é claro, e daquele a que chamarei ouvido íntimo.
RAB – Não deve ser por acaso que usa a expressão “tonalidade do texto”. A sua poesia parece obra de um compositor de palavras, no sentido musical e lumínico do termo: a sonoridade como música e luz do poema.\
PT – Deduz-se do que lhe disse que para mim é ponto assente que a “tonalidade” é uma valência imprescindível na apreciação de um texto literário, e particularmente poético. E digo tonalidade a pensar em cores e luzes, mas mais ainda a pensar em sons. Daí que, por instinto, ou por “deformação profissional” de leitor que por acaso também escreve, procure jogar naquilo que escrevo com a gama de tonalidades de que disponho no momento concreto da escrita – isto é, com aquelas que surgem conaturais ao acto de escrever aquilo.
RAB – Os seus poemas são percorridos por uma ironia desencantada, como quem busca pistas que acabam por conduzir apenas a uma ausência. O diálogo de solidariedade proposto ao outro, ou ao mundo, fazem do poeta Pedro Tamen uma espécie de Sísifo por conta própria?
PT – Tem-se dito que esse desencanto, ou essa ironia às vezes cruel e outras simplesmente melancólica, é mais evidente nos dois últimos livros. Eu não seria tão restritivo, e diria que esse tónus é óbvio, claro, descarado até, a partir de Horácio e Coriáceo (1981). Mas iria até mais longe, e localizaria tais elementos logo no início do que escrevi. Simplesmente, concordante com o meu próprio percurso interior, com aquilo em que fui acreditando e depois desacreditando, a ironia vai, desde 1956 até aqui, mudando de alvo. Digamos mesmo que o campo da utopia amarga (daquilo em que não vale a pena acreditar) ou, melhor, da consciência dela, foi alastrando, e, dentro dele, foram-se alterando ao mesmo tempo as áreas em que preferencialmente incide o acento tónico.
Se logo de princípio tratei ostensivamente com indisfarçada nostalgia do que, para simplificar, chamarei os «amanhãs que cantam», é exactamente com o mesmo espírito que trato, a partir de certa altura, do amor, e depois de mim mesmo, e finalmente da memória e da morte (dos «depois-de-amanhãs que cantam»…). Neste sentido, sim, a amargura com que incansavelmente vou destronando os meus inacabáveis mitos interiores (e também sociais) aparenta-me com a figura de Sísifo. Estou bem acompanhado.
RAB – A sua obra poética é atravessada por várias outras tensões. Joga-se numa contenção que às vezes deixa escapar um lado confessional. Como se o pudor a que a escrita se obriga desenhe o traço daquilo que quer apagar.
PT – Esse é efectivamente um outro aspecto das coisas que escrevi, e que aliás se relaciona com o que se disse atrás a propósito da ironia. Através desta, tanto se toma a sério aquilo que se adivinha que afinal não é tomado a sério como o exactamente contrário: não se toma a sério aquilo que bem sabemos ser muito sério. E assim, por esta última via, o carácter revelador, impudente, desbocado, das minhas permanentes confissões é «apagado» sob o traço de uma escrita que as ridiculariza. Apetece-me dizer que este é o colete-de-forças que escolhi para a minha loucura.
RAB – Estas tensões e contenções observam-se, igualmente, ao nível formal: a medida tentando equilibrar um desregramento mais visceral e antigo, a medida como refúgio, como a “Pedreira” da escrita: como o que o deixa a salvo daquilo que tem medo de não poder controlar?
PT – Penso que tem toda a razão no que a pergunta pressupõe. Na formação que tive, e, estou certo, na pessoa que em qualquer caso seria mas que com essa formação mais passei a ser, sempre coexistiram, numa para mim mesmo curiosa relação dialéctica, um desvairado desregramento e um maníaco apego à regra: o primeiro disfarçado sob a capa do segundo e por ele permanentemente contido, refreado. Na vida e na escrita, assim foi, assim é. Aquele que começou um poema a dizer: «Pois dorme, meu amor, a sono salto» é precisamente aquele que desenvolve esse mesmo poema num esquema sintáctico, rítmico, rímico, estrófico, consideravelmente complexo, labiríntico, mas regular. A regra, máscara e freio, é também refúgio: a compostinha gravata que salva de Rilhafoles…
RAB – Utiliza às vezes o termo “barroco” para caracterizar a sua poesia, no que se refere à busca de uma pluralidade de perspectivas. O excesso é a figura de que se serve para operar a deslocação e sobreposição de pontos de vista na linguagem poética?
PT – É exactamente isso. A linguagem, meu permanente interlocutor e contendor, ela própria tantas vezes alvo da ironia de que falámos atrás, é de modo constante apreendida como limitação (do mesmo passo que é válvula de distensão!) e, por isso mesmo, incapaz de revelar o real em toda a sua múltipla, diversa, intrigante complexidade. Recorro sempre à velha alegoria do cego a apalpar o elefante e que vai alvitrando sucessivos aspectos, sempre insuficientes, da realidade que tem diante de si. Aquilo a que eu próprio chamo «barroco» (de tanto ter ouvido o epíteto aplicado ao que escrevi, e tantas vezes com aleivosa pejoração) é apenas a desesperada tentativa de abordagem transfiguradora de um real radicalmente inapreensível. Peco por excesso porque a linguagem peca por defeito.
RAB – Parece-me uma constante da sua poesia a coexistência de termos da gíria, como “gramámos nos anos esmifrados” com termos do português vernáculo. Cada poema descobre uma vertente erudita e um lado coloquial. A pluralidade de registos da língua é também um modo operatório do perspectivismo na sua escrita?
PT – Esse é um dado, digamos, estilístico, que está longe de me ser próprio (aliás, aqui para nós, eu sei que nada me é próprio…) e que bebi naturalmente em alguns dos poetas que mais admirava quando comecei a escrever “coisas de gente”: em Nobre, em Cesário, mais ainda em Cesariny e O’Neill. O que talvez, porém, valha a pena realçar é que, reconheço-o, esse elemento acaba por ser poderosamente adjuvante do efeito irónico de que já várias vezes falámos ao longo desta conversa. Os “registos da língua” de que fala, e que, por exemplo, são de importância crucial para o tradutor que sou, são para o poeta um processo como qualquer outro.
II
FM – Concordo quando afirmas que “a memória é também ela uma espécie de morte”. Penso em Roberto Desnos, ao dizer que “o caráter fugitivo do amor é também o da morte”. De uma maneira ou de outra, toda a intensidade do viver nos conduz por caminhos irrepetíveis. E creio que Desnos referia-se a fugitivo neste sentido. Em contraposição, vivemos em uma sociedade que tem adotado como método a repetição. Como tens lidado com essa contradição?
PT – A memória é para mim uma espécie de rendição perante a inexistência do passado. Charles Péguy, que, além de uma figura fascinante, foi um poeta que muito me tocou em determinada fase da minha vida, e que hoje em dia é quase completamente ignorado (ele foi, e é, o contrário do «politicamente correcto»), disse qualquer coisa como isto: o presente é algo que quase não existe (de tão instantâneo), situado entre o passado, que já não existe, e o futuro, que ainda não existe. Ora, a memória é morte porque re-presenta o passado que, afinal, é radicalmente nada. A repetição, que, como se diz, é um «tique» da sociedade em que vivemos, é apenas uma re-produção, o que é consolador e dá segurança. Não tenho nada contra ela.
FM – Também te referes ao “alargamento do sentido das palavras”, quando mencionas a essencialidade de pô-las em jogo, em atrito. Nessa relação é que se vai alcançar um sentido outro, não há dúvida. Recordo que René Magritte dizia que “o que é preciso pintar é a imagem da semelhança”. Ao estabelecer esse jogo amoroso entre as palavras, qual sentido buscas para tua existência?
PT – O sentido da existência do poeta, quando e na medida em que o é, consiste em dizer, em dizer mais, em revelar, a si em primeiro lugar, e aos outros seguidamente, que coisas são as coisas, e os sentimentos, e as relações entre umas e outros. O que no meu caso pessoal é utilizado como instrumento de revelação, ou desvelação, é a desesperada tentativa de passar os umbrais do dicionário e de dilatar o conteúdo semântico das palavras pela exploração das suas outras dimensões (nomeadamente sonoras, contextuais, históricas), desse modo procurando transformá-las em linguagem, em linguagem tendencialmente plena.
FM – Esse dueto essencial em tua formação: a educação clássica e a descoberta do Surrealismo, de que maneira poderíamos situá-lo em uma perspectiva portuguesa, ou seja, remetes a uma educação clássica considerado a cultura de teu país, o mesmo valendo para a presença do Surrealismo em Portugal?
PT – Por razões biográficas (e, reconheço-o hoje, de inclinação pessoal) li durante a minha adolescência os clássicos portugueses (os outros vieram mais tarde) de um modo bastante exaustivo para a idade que tinha. E foram esses os instrumentos que me serviram para os meus pobres primeiros vagidos literários, até à descoberta, súbita e global, da modernidade em geral e do surrealismo em particular (falo, nessa altura, do retardado surrealismo português; o outro, as fontes, vieram também mais tarde). E desde aí não mais abandonei o casamento em mim entre, por um lado, a paixão da regra e, por outro, a paixão do desregramento, casamento indissolúvel e na prática não dissolvido, apesar dos mui variados avatares por que tem passado.
FM – Suponho que consideres complementares as atividades como poeta, crítico e tradutor. Sendo as três tão intensas, se poderia pensar que alguma tenha te marcado a vida acima das demais?
PT – A actividade de «crítico», quase não a tive, não a tenho, e recuso activamente qualquer vislumbre de vir a tê-la; não que, por princípio, tenha algo contra a crítica, mas porque pura e simplesmente me conheço já o suficiente para recusar esse chapéu, que definitivamente não me quadra. Mas, efectivamente, ser poeta e tradutor são coisas para mim complementares, indissociáveis, e que viverão a par na minha vida até ao fim. Nenhuma das duas actividades me marcou mais que a outra, na exacta medida em que brotam ambas da mesma obscura necessidade de descobrir ou de desvelar. Só que, na tradução, o que se procura descobrir e desvelar não é o mesmo e total universo que a poesia persegue – mas, mais humildemente, o universo do Outro, do Autor. Costumo dizer que a tradução é um permanente (e transformante) exercício de humildade.
FM – Começaste a publicar teus poemas por conta própria. As edições do autor ainda são predominantes em Portugal ou já se pode encontrar hoje um ambiente mais propício para a publicação de poesia?
PT – Desse ponto de vista da edição de poesia, muita coisa mudou em Portugal desde que comecei a publicar. As editoras dividem-se hoje, mais do que nunca, em muito grandes e muito pequenas, e as grandes, de um modo geral, já nem sequer se dão ao «luxo inútil» e dispendioso de publicar poesia, particularmente a poesia dos jovens. Essa tarefa fica para os médios, pequenos e muito pequenos editores, que muitas vezes – e é interessante notá-lo -, são eles mesmos poetas, ou inspirados por poetas. Nos anos cinquenta, a rejeição da poesia por parte da generalidade dos editores era a mesma, e havia menos pequenos editores para os poetas. Daí que houvesse, mais do que hoje, penso eu, as «edições do autor». A diferença principal estará, a meu ver, entre os poetas-artesãos da edição nos anos 50 e os poetas-pequenos-empresários da edição dos nossos dias.
FM – Crês possível distinguir, dentre aqueles poetas portugueses nascidos a partir dos anos 50, alguns nomes que sugiram, confirmando ou renovando, algum aporte substancioso às gerações anteriores?
PT – Quando se diz (disse-o Eugénio de Andrade) que o século XX é o «século de ouro» da poesia portuguesa, subentende-se (ou subentendo eu) que a renovação da nossa poesia não sofreu interrupções ao longo de todos esses anos e que o nível médio de qualidade se manteve elevado. E entre os poetas que começaram a publicar na primeira metade da década de 70 (quando, no dizer de Joaquim Manuel Magalhães, surgiu uma «nova sensibilidade») e depois disso, mesmo nos anos mais recentes, há vários casos notáveis de reatamento, por um lado, e de reinvenção, por outro, do «corpus» poético herdado das gerações anteriores.
FM – Terias algo a dizer no sentido de uma aproximação possível entre dois continentes, América e Europa? De que maneira concebes essa relação entre novo e velho mundo?
PT – O chamado «novo mundo» é para mim, na medida em que o conheço, objecto de permanente fascínio, por caldear heranças culturais diversas, de modo diverso de lugar para lugar, mas com resultados sempre surpreendentes para o homem do «velho mundo», que ao mesmo tempo nele se reconhece e nele se perde. Suponho que algo de mais ou menos análogo se passa com o homem do continente americano ao deparar com a Europa. Num sentido ou no outro, estamos perante aventuras que é preciso generalizar e aprofundar.