Zumbido intermitente das cigarras

Em "A margem imóvel do rio", Luiz Antonio de Assis Brasil faz uma impecável fábula sobre o silêncio, o esquecimento e a identidade cultural
Luiz Antonio de Assis Brasil: “Estou cada vez mais obsessivo pela palavra. Ou melhor, pela frase”
01/11/2003

É curioso notar que boa parte da narrativa brasileira recente está se voltando às viagens para fora do país, à procura da estranheza e do confronto cultural. São os casos de Mongólia, de Bernardo Carvalho, Budapeste, de Chico Buarque, e Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll. Todos esses escritores grifam o nome das localidades exploradas nos títulos e partem da compulsão de universalizar a experiência. A língua estranha cumpre a metáfora de algo remoto e desconhecido. O escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil caminha na contramão da caravana. Em seu novo livro A margem imóvel do rio, completa um díptico com O pintor de retratos (2001), prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, em série chamada de Visitantes ao sul. Em vez de sair do Brasil, o autor entra nele como uma geografia misteriosa. Articula um olhar livre sobre o que se julgava conhecido, mostrando que o Brasil está longe da unidade e de se perceber com nitidez. Em O pintor de retratos, Assis Brasil acompanhava a chegada do artista italiano Sandro Lanari ao Rio Grande do Sul, onde ele enfrentava a ascensão da fotografia, um ambiente passional de guerras e fraturas políticas do século 19 e a influência de Nadar, o mais célebre fotógrafo francês do período. Em A margem imóvel do rio, oferece o percurso do cronista oficial de Dom Pedro II, que precisa checar a promessa imperial de transformar em barão o estancieiro Francisco da Silva. A palavra da Corte havia sido empenhada há vinte e um anos e a tarefa não é a das mais fáceis, já que Francisco da Silva era tão comum quanto o chimarrão e o toucinho. O historiador deixa o Rio de Janeiro para suportar o inverno rigoroso das estâncias, cavando pistas a partir das anotações da expedição anterior. Essa é uma das virtudes da obra. Se antes era mais visível a imersão de um estrangeiro, na figura de um italiano descobrindo Porto Alegre, agora esse estrangeiro é — paradoxalmente — um brasileiro, da sede do governo, que ruma ao sul como quem é designado a um forçado exílio. O primeiro choque surge da exacerbação das diferenças regionais. Com agudeza crítica, Assis Brasil coloca as idéias fora do lugar. “Revoadas de aves migratórias subiam para o Norte. ‘Só eu venho para o sul e para o frio’”, diz o personagem.

Com mais de 250 mil exemplares vendidos ao longo de 16 livros publicados, Luiz Antonio de Assis Brasil não está brincando. Seu texto prima pela transparência narrativa. Uma jóia radiofônica sem arestas e desperdício. Não é forçoso dizer que se trata de seu melhor texto, tanto tecnicamente como pela sua capacidade de atordoar. A densidade psicológica se expressa na ambientação externa, nas lacunas dos fatos. Os rompantes líricos são combinados harmoniosamente para atuar como contrapeso à objetividade. “Tivesse ouvidos sadios, já poderia escutar o caminhar macio dos lobos-guarás em seus hábitos crepusculares.”

Nada é gratuito e aleatório, os fios vocabulares e cordões de pensamento atendem unicamente à necessidade da história. O historiador sofre de Tinnitus Aurium, ou seja, o zumbido intermitente de cigarras nos ouvidos que não permite sequer estar em silêncio. Essa doença contagia a própria operação das frases: curtas, elípticas e letais. Em um lance machadiano, o romancista internaliza o tema a ponto de ele virar o próprio epicentro do estilo, evidenciado nos sobressaltos, nas obsessões descritivas e na fixação dos cenários. A narração provém da irritação do personagem de não escutar o silêncio, de precisar se distrair para calar a si mesmo. O romance pode ser visto como um tratado sobre a imobilidade da fala. Fala-se para não se ouvir. “O silêncio completo não existe, pois jamais um som poderá ser fracionado até o fim, sempre restará algo dele.” O silêncio aqui não é líquido, como sugere o título, mas empedrado, imutável, inaudível. Os outros personagens fortalecem a caracterização da trama. O historiador encontra a surda-muda Dona Augusta, esposa de um dos possíveis Francisco da Silva. Ele ambiciona não escutar como ela. Sua deficiência total é vista como uma cura. Pior é ter uma deficiência parcial como a dele, que o coloca entre dois mundos e nunca integralmente em um deles. Outro dado: o cronista, que ficou viúvo justamente no momento em que retornava de sua primeira viagem do Rio Grande do Sul, vai despertando sua sexualidade adormecida à medida que avança em sua missão. As mulheres se avolumam uma nas outras: a esposa falecida na criada Cecília, a criada na jovem e atormentada pianista Lisabel, Lisabel na índia Cândida. Elas se completam para consumar a mudança de personalidade do historiador. De temperamento distante e impessoal, converte-se em um homem frágil e presente, duvidando da infalibilidade de sua memória, instrumento de seu trabalho. “De que idade estou falando, se tenho em mim todas as minhas idades?”.

Da encruzilhada feminina, emerge o outro pulmão do enredo: o esquecimento, que não deixa de ser um modo áspero de silêncio. O historiador questiona suas lembranças e pior, suas anotações de viagem, documentos que constituem a história brasileira, sem espaço para a subjetividade. Sente vontade de preencher o espaço com suas vivências, mudando o foco de observador e testemunha distanciada dos fatos para uma posição autoral. Acostumado a servir quer ser servido. Presente na antiga expedição onde a promessa de título de barão fora feita, tenta reconstituir os lugares que passou e as pessoas que viu, mas não os reconhece. “O que é uma lembrança, senão a lembrança de uma história?”. No ponto em que sua memória começa a trai-lo, age mais livre para viver fora dos cadernos. Não nasce mais unicamente de sua letra, admitindo improvisar e dispensando a consulta dos roteiros. “Seu passado começava a tornar-se mais imprevisível que o próprio futuro.”

O objetivo da procura termina sendo secundário. Catalogando os Francisco da Silva em falso ou verdadeiro, percebe que esses critérios não representam o passado, feito de impressões e não acontecimentos. Assim como quando se procura uma coisa não se acha e quando não se procura é que se encontra. Na verdade, o cronista caça provas de que existiu e passa a aceitar o esquecimento como um destino mais generoso do que a morte, essa sim, a forma mais extremada de quietude, onde se escuta, porém não se pode comunicar o que se ouve. A desmemória crescente não é exclusividade do protagonista. A História costuma também se esquecer e se apagar violentamente, como prova o Epílogo. Não serei eu a denunciar e estragar o prazer da leitura.

LEIA ENTREVISTA COM LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

A margem imóvel do rio
Luiz Antonio de Assis Brasil
L&PM
174 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho