Dono de extensa obra de ficção, composta por novelas e romances, como Tieta do agreste, Gabriela, cravo e canela, Dona Flor e seus dois maridos, Capitães de areia, Mar morto, Tocaia grande, dentre tantos outros, Jorge Amado tornou-se um dos escritores mais populares do Brasil, não só pelos livros que publicou, como também pelas adaptações para TV, teatro e cinema feitas a partir de suas histórias.
Fora da mídia e das discussões em torno da obra de Jorge Amado, há a novela Farda, fardão, camisola de dormir — fábula para acender uma esperança, escrita em 1979 e relançada pela Record, que é uma pérola pouco conhecida no vasto mundo ficcional do baiano. Saborosa sátira, narra a disputa por vagas na Academia Brasileira de Letras, na década de 40, tendo como pano de fundo a ditadura do Estado Novo, de Vargas, e a Segunda Guerra Mundial. A esperança do subtítulo, bem, a esperança era o que faltava naquele momento de grandes atrocidades, e que o autor usa como matéria-prima de sua fábula. Se hoje nos incomodam os egos inflados dos poetas extravagantes, que babam pelos cotovelos em suas performances ao vivo, e ainda se dizem pessoas simples; naquela época, ou pelo menos nas páginas desse pequeno romance, o que desponta é o grotesco aliado ao fisiologismo.
Jorge quer nos divertir, e o faz a partir do linguajar empolado de alguns acadêmicos — bastante utilizado no meio jurídico. Pincela seu texto com frases como “espera merecer a honra insigne do voto do ínclito Acadêmico”, ou ainda, “ágape opíparo e delicioso”, expressão do jurista Lisandro Leite. De um modo geral, são personagens caricaturais; daí o caráter burlesco da obra. O coronel Sampaio é o melhor exemplo disso, sobretudo quando se empolga com o nazismo, idolatrando o Führer. Lisandro Leite, espécie de cabo eleitoral do Coronel, chega a torcer pelo passamento de um dos acadêmicos: “O jeito é esperar que o Pérsio se decida morrer. Parece de ferro, pelos médicos já estaria enterrado há muito tempo…”.
A espontaneidade, ou superficialismo, ou mesmo a falta de cuidado com a escrita, em Jorge Amado, são claros. E pensar que se gastam tempo e teses para contestar o óbvio. Tal descuido redunda, por vezes, em lugar-comum. Como neste trecho: “(…) lá [em Paris] pudera demorar-se por mais dois anos, graças a certo Ministro do Exterior, seu contemporâneo (…)”. Não se explica que tipo de ajuda teria dado tal ministro, que cai de pára-quedas na história, e é óbvio que se trata de “seu contemporâneo”. O próprio autor gostava de dizer que não era nenhum gênio das letras, mas apenas um contador de histórias. Podemos acrescentar: um ótimo contador de histórias, que nos deixou uma espécie de legado cultural e antropológico da Bahia. Portanto, do Brasil.
Farda, fardão tem muitos méritos e surpreende. Primeiro porque experimenta um universo que não é o baiano — a história se passa no Rio de Janeiro. Depois por ser uma deliciosa sátira em torno de disputas de vagas na Academia Brasileira de Letras. Explora bem a intertextualidade, como neste divertido excerto: “Ah! Os sonhos de Cecília, se aqui fossem narrados, transformariam esta pequena fábula acadêmica em sensacional best-seller.” Ou nas “obras” que Amado atribui aos seus autores-personagem, e sobre as quais faz supostas análises literárias. Nessas há curiosos títulos, como: “Memórias alheias”, “Antologia da literatura luso-brasileira”, “Histórias da História do Brasil” e “Prolegômenos idiomáticos” — aqui, mais do que nunca, zombando do academicismo.
E zomba ainda, Jorge, ele próprio também membro da ABL, da grande fogueira das vaidades em que se consomem muitos escritores, e dos métodos pouco ortodoxos utilizados por alguns para ascenderem à Casa. Antônio Bruno, embora já morto, é o personagem central da trama. Sua vaga na Academia é que desencadeia tanta disputa e achincalhes. Fora um amante incurável, um ser fascinado pelas mulheres, um poeta lírico. Sua obra é sensível, embora não engajada politicamente.
A batalha
O coronel Agnaldo Campos Sampaio Pereira se lança à vaga deixada pelo poeta Antônio Bruno, por iniciativa do desembargador Lisandro Leite. O coronel é um dos fiadores da aliança informal entre o Terceiro Reich e o Estado Novo. Leite, além de bajulador, é interesseiro, pois pretende chegar ao Supremo Tribunal Federal, valendo-se da influência do coronel, uma vez empossado na ABL. Tratam-se de fisiologismos típicos da política brasileira de ontem e hoje, que o autor transpõe para a Academia.
Para impedir a vitória de um coronel, nada melhor do que um militar de patente superior: um general. Pensando assim, um grupo de acadêmicos, mais comprometido com a democracia e a liberdade, lança o nome do general Waldomiro Moreira, também escritor, à vaga existente. O general era autoridade em ciências bélicas, mas não militava em favor do regimen. A tropa de choque do general era comandada pelos civis Afrânio Portela e Evandro Nunes, amigos do poeta morto. A narrativa incorpora o sentido bélico na disputa acadêmica. Utiliza termos como estratégia, guerra, ataque, defesa, batalha e triunfo.
Num dos momentos de impagável ironia, o autor assim descreve a fala de um dos defensores da candidatura de Moreira, acerca da obra literária do militar: “Elogiar, elogiarei, se necessário for. Na guerra vale tudo, não é hora de se estar com escrúpulos. Agora ler… não, é pedir demais (…). Conheço o gênero. Quanto menos tenha lido, mais poderei elogiar”. A campanha eleitoral passaria a ser chamada de “A Batalha do Petit Trianon” — em referência ao prédio que foi a primeira sede da ABL e que ainda hoje funciona para as sessões comemorativas e de posse de novos membros.
Nesse romance-pérola, perdido no fundo do mar da literatura jorgeana, e menos divulgado que os demais, descobrimos que o legado literário de Amado vai além do presumível imaginário de baianidade, de herança africana, de personagens exóticos — ou reais, como querem alguns —, para tocar na ferida de outro substrato social, o composto por homens instruídos e “eleitos”. Também se percebe que Antônio Bruno é um alter ego de Amado, seja no seu amor a Paris (o autor vivia entre Salvador e a capital francesa), no desapego ao comunismo (Jorge havia sido membro do Partido Comunista, mas se afastara, insatisfeito com o sectarismo) e, claro, na delicadeza e extrema paixão pelas mulheres (o escritor foi um grande criador de personagens femininos).
Fazendo aqui uma outra possível aproximação entre autor e personagem, evocando a delicadeza e o amor que ambos dedicam às mulheres, relembro que numa passagem do deleitoso Farda, fardão, camisola de dormir, Antônio Bruno cobre Rosa, uma de suas amantes, então nua na cama, com pétalas de rosa. E que, por ocasião da morte de Amado, Zélia Gatai descreveu um passeio que fizera com o marido pela Europa. Num belo dia, Jorge sai à rua sozinho, sem nada dizer. Pouco depois, chega um menino com uma rosa amarela e o bilhete: “De um admirador anônimo”.