“Yo se leer”

Nos ensaios de “O último leitor”, o argentino Ricardo Piglia trata da tensão entre a vida e a ficção
Ricardo Piglia: o leitor como ponte entre o imaginário e o real.
01/09/2006

Sim, falta o acento. O correto é “Yo sé leer”. E as últimas palavras de Ernesto Che Guevara foram justamente estas: “Falta o acento”. Estava ferido, em uma sala de aula em La Higuera, na Bolívia, pouco antes de ser executado. A professora do lugar é a única a se interessar por ele. Ao entrar na sala de aula onde está o prisioneiro, Guevara aponta-lhe o quadro negro e indica o erro.

Para Ricardo Piglia, Guevara é o último leitor por ter passado da leitura para a ação. Ter levantado a cabeça dos livros e mergulhado na realidade. Piglia mostra que o guerrilheiro andarilho jamais deixou de ser um leitor. Menciona uma foto de Guevara, encarapitado em cima de uma árvore, em meio às marchas da guerrilha, lendo. “Guevara lê no interior da experiência”, diz Piglia, “faz uma pausa”. Também menciona que, mesmo em meio às mais duras fugas, ainda carrega livros e diário em uma bolsa presa à cintura. Ernesto Guevara é o “personagem” leitor que merece mais atenção de Piglia, justamente por levar ao limite a relação entre leitura e experiência prática.

Em O último leitor, Ricardo Piglia sai em busca das representações dos leitores dentro dos próprios romances e do papel que os livros e textos impressos (cartas, romances, mensagens) podem ter na trama. Seja a vida real, como no caso de Che Guevara, seja ficcional, como no caso clássico de Ema Bovary. A questão central é a tensão entre a vida e a ficção. O que interfere sobre o quê.

Piglia não pretende reduzir os leitores a categorias. Ele busca a “leitura dos leitores”, ou seja, encontrar uma maneira pessoal de entender a reação de alguns leitores notórios às suas leituras e assim entender seu próprio comportamento como leitor.

O livro começa com uma narrativa breve, um relato, no melhor estilo borgeano, o leitor supremo e referência permanente na busca de Piglia pelo último leitor. Em Buenos Aires, um homem dedica-se a construir um mapa exato da cidade, conforme ele se lembra dela. Um mapa dinâmico que reflete as transformações da cidade, ou será o contrário?

A questão é: em que mundo o leitor vive? Como num jogo de espelhos, a representação da representação da representação, infinita. O leitor que imita o que lê, que transforma o que lê ou que se transforma pelo que lê. A leitura como determinante da realidade e vice-versa.

O homem que constrói a miniatura da cidade é também fotógrafo. Seu esforço permanente é o do registro da realidade, mas ao distanciar-se de seu objeto, acaba tendo que recriá-lo. “Russel acredita que a cidade real depende de sua réplica, e por isso está louco. Ou melhor, por isso não é um simples fotógrafo. Alterou as relações de representação, de modo que a cidade real é a que esconde em sua casa, enquanto a outra é apenas uma miragem ou uma lembrança.” Ou seja, para Russel, o fotógrafo miniaturista, nós, seres de carne e osso, vivemos em uma lembrança. Assim, a leitura será, necessariamente, um ato de recriação. A noção de que ler é um ato passivo e não se sustenta mais após encontrarmos o último leitor, que acaba por ser nós mesmos.

O primeiro leitor a nos ser apresentado como o último não poderia ser outro: Piglia nos fala de uma foto de Jorge Luis Borges em que ele segura um livro próximo ao rosto, esforçando-se por ler através de seus olhos insuficientes. “A primeira imagem do último leitor”, nos diz Piglia. Aquele que perdeu a vista lendo, mas não desiste de ler.

A obsessão
O que procura Borges em seu esforço cego pelas páginas dos livros? Significado? Sentido? Será que com a vista distorcida podemos ler corretamente? Existe uma leitura correta? A leitura pode se transformar numa obsessão, como demonstra a foto de Borges. O leitor passa a ser um viciado e a leitura não é mais “apenas uma prática, mas uma forma de vida”. Em situações extremas, a leitura passa a ser “uma dependência que distorce a realidade, numa doença e num mal”. Ou então, passa-se a “ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção”.

O que Piglia nos leva a concluir é que nós, leitores, e não os autores, somos a ponte entre o imaginário e o real. A “escrita” final de um texto se dá na mente do leitor. Dessa forma, passamos de uma situação de passividade a de criadores. O leitor pode ser visto como personagem, ao interagir com a narrativa; e como autor, ao interpretar e atribuir novos significados ao texto.

No entanto, enquanto que para Borges a leitura é uma continuidade da realidade, e vice-versa, existem outras formas de se relacionar com ela. Outro leitor extremo, de que nos fala Piglia, é Franz Kafka, para quem a atividade literária, como escritor ou como leitor, implicava na separação total. Em Kafka, não há o sentimento de continuidade. A realidade é sempre uma interferência, uma interrupção, da literatura. “A vida não se detém, diria Kafka, somente se separa daquele que lê, segue seu curso.”

Pessoalmente, acho essa visão muito curiosa. Então, um leitor é alguém fora da realidade? O que acontece ao seu redor não o afeta e vice-versa? Considero uma leitura equivocada. Não existem os adjetivos “borgeano”, “kafkiano”, “joyceano”, etc, que aplicamos a determinadas situações da chamada realidade? Pois então, pela leitura desses autores, adquirimos uma forma de perceber e explicar essa realidade e de nos relacionarmos com ela. Somos constituídos pelo que lemos. Afinal de contas, Ernesto Guevara só se tornou o Che Guevara por ter lido Marx (e Jack London!). A leitura o transformou e, a partir dessa transformação, ele transformou o mundo.

Em outra escala, pois não estamos no plano estritamente político das revoluções marxistas, Borges, Kafka, Cervantes e todos esses imensos leitores da realidade, que registraram suas leituras por escrito, são agentes de transformação do indivíduo ao provocarem novas leituras e darem aos seus leitores novos instrumentos para a leitura da realidade.

O exemplo clássico de leitor transformado é Ema Bovary. Piglia usa muitas vezes a expressão bovarismo, no sentido de alguém que traz a leitura para a realidade. No Houaiss, a definição é “tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se as possuíssem”, ou ainda, por extensão de sentido, “faculdade que tem o ser humano de se conceber diferente do que é”. O caminho de Ema Bovary é conhecido. Com anseios por uma vida intensa, ela se vê mergulhada em uma realidade provinciana e casada com um médico medíocre. Os romances entram em sua vida como lenha numa fogueira, fortalecem sua convicção de que não vivia na realidade correta e que era preciso corrigir essa distorção. O grande problema é que os romances passam a ser as lentes através das quais ela vê e concebe mundo. Romances muitas vezes são vistos como “má influência”, lembra-nos Piglia, principalmente para as mulheres do século 19, de espírito fraco e altamente suscetíveis. Influência que se estende pelo século 20, na figura de Molly Bloom, em Ulisses, que busca em romances obscenos, fornecidos a ela pelo marido, algum tipo de realização que escapa ao seu matrimônio.

Mas não se pode culpar a leitura em si. Na condição comum de leitores, reais ou de ficção, podemos colocar em um mesmo saco Ema Bovary, Molly Bloom, Che Guevara, Franz Kafka, Jorge Luis Borges ou Robinson Crusoé. A leitura agirá sobre cada um conforme suas personalidades. Em decorrência disso, cada um desses leitores encontrará sua maneira própria de atuar sobre o mundo, transitando entre a leitura e a realidade. E encontrará na leitura apoio, instrumentos, alternativas, enfim, caminhos de ida e volta entre o mundo dos livros e o mundo real.

Assim como Guevara encontrou nos livros a fundamentação para a sua vida, sua crença na possibilidade de transformar a realidade mergulhado no convívio humano, Robinson Crusoé sobreviveu ao isolamento por meio da leitura, no caso, da Bíblia. O paradoxo é interessante. Os momentos de leitura de Che Guevara são mostrados por Piglia como instantes de alheamento. No caso de Crusoé, isolado à revelia, ele encontra na leitura da Bíblia um vínculo com o humano, que se concretizará mais tarde no encontro com Sexta-Feira e na colonização final de sua ilha com um projeto de utopia.

Atrás dos leitores
A maneira encontrada por Piglia para rastrear esses leitores e suas leituras foi a própria leitura. Em meio a algumas criaturas reais e autores, ele levanta uma série de outros personagens da ficção que lêem, e mostra como essas leituras, ainda que mostradas como algo ocasional, são essenciais para a compreensão das tramas e da personalidade dos seres da ficção.

Uma situação exemplar de personagens leitores são os detetives dos romances policiais. Piglia vai em busca das origens do gênero, em Edgar Allan Poe e seu detetive, Auguste Dupin. O personagem de Poe inaugura uma longa linhagem, que inclui de Sherlock Holmes a… Batman. Mas Piglia se mantém dentro do cânone consagrado e não fala do detetive noir por excelência dos quadrinhos. Ele ressalta que não se trata do leitor de pistas, mas o de palavras impressas em papel. O gênero policial está repleto de cartas perdidas, bilhetes, anotações, diários. O investigador, para compreender o que se passou na realidade, para desvendar o crime, necessariamente tem de ser um leitor. Os primeiros detetives, talvez os mais britânicos, eram homens de leitura, cultos, capazes de entender a alma humana e suas motivações pelo seu conhecimento enciclopédico e capacidade de fazer associações. Com a evolução do gênero, chegamos ao romance noir de Raymond Chandler. O personagem mudou algumas de suas características, mas mantém outras tantas. Entre elas, a misantropia e o conhecimento literário, ainda que disfarçado numa postura casual, em que uma menção a T. S. Eliot escapa num diálogo improvável com um motorista.

Outra característica mantida pelos detetives é a complicada e ambígua relação com as mulheres. Dupin, o fundador, era solteiro. Sherlock Holmes, idem. A linhagem dos detetives noir é formada por homens que mantêm uma relação ambígua com o sexo oposto. Vincular-se à mulher é perder a independência. Isso vale para Bruce Wayne, que preenche rigorosamente todos os requisitos do gênero. As mulheres são sempre vistas como fontes de problemas e interrupção. O que nos leva de volta a Kafka e as mulheres.

Piglia dedica um capítulo inteiro sobre a relação de Kafka com a leitura e, obviamente, com a escrita. Felice Bauer será para ele, ao mesmo tempo, musa, leitora e intrusa, como sugere a leitura que Piglia faz das cartas que Kafka escreveu para ela. Muitas vezes, as mulheres são, para os escritores, não a última, mas a primeira leitora. Esposas, mães, amigas são, muitas vezes, as leitoras que os escritores têm em mente ao escrever. Pela proximidade ou pela natureza da relação. Kafka escreve seu primeiro conto motivado pelo encontro com Felice Bauer. Mas ressalta que só foi possível chegar ao fim pelo fato de a experiência de escrita ter se dado em uma noite insone e ininterrupta. Por trás disso está expresso o medo de uma união que o coloque sob o mesmo teto que a mulher e tire dele a oportunidade de ter noites de realização literária, que seriam interrompidas pelo zelo ou pelas demandas da mulher. Detalhe que Felice Bauer, por um longo período, é a datilógrafa dos textos de Kafka, uma posição privilegiada de leitora que reescreve. Para Kafka, a mulher ideal seria a “leitora fiel, que vive sua vida para ler e copiar os manuscritos do homem que escreve”.

A tradição de mulheres copistas, mostra-nos Piglia, é grande. Henry James ditou livros para Theodora Bosanquet, inclusive seus últimos textos, já delirante. O que faz dela sua última leitora em vida. Sofia Tolstói copiou sete versões de Guerra e paz, e acabou entrando em conflito com o marido pela autoria do livro. Dostoiévski contrata uma taquígrafa quando precisou escrever Crime e castigo ao mesmo tempo que O jogador, para quitar suas dívidas. Véra Nabokov carregava um revólver consigo, para proteger o marido, além de copiar várias vezes as fichas em que Nabokov escrevia as primeiras versões de seus trabalhos.

O inverso é Nora Joyce. Piglia nos informa que a esposa de James Joyce recusava-se a ler uma só página do que o marido escrevia. Sequer toma conhecimento que Ulisses se passa no dia 16 de junho de 1904, a data em que os dois se conheceram. Como diz Piglia, Nora “se sustenta em outro lugar, muito sexualizado, ao menos para Joyce”, o que transparece nas cartas para a mulher. Nora é assim a musa pura, motiva a escrita, mas se mantém distante dela.

O livro de Piglia abre um imenso leque que nos coloca, leitores, em um outro patamar. Leva a extremos a noção de leitor agente, em oposição ao leitor passivo, que se deixa possuir pelo texto. Que tipo de leitor somos nós, cada um de nós? O que buscamos ao abrir um livro? E como olharemos para o mundo ao levantarmos os olhos das páginas que nos fascinam?

O último leitor
Ricardo Piglia
Trad.: Heloisa Jahn
Companhia das Letras
186 págs.
Ricardo Piglia
Nasceu em Adrogué, província de Buenos Aires, em 1940. Ensina literatura na Universidade de Princeton (EUA). É autor de A invasão e Nome falso (contos) e dos romances Respiração artificial, Cidade ausente e Dinheiro queimado, além dos ensaios de Formas breves. Em 2005, Piglia recebeu o Premio Iberoamericano de Letras José Danoso.
Daniel Estill
Rascunho