WS, do inferno ao paraíso e vice-versa

Mais uma vez a caminho dos infernos — ou da ilha de Caras, o que ficar mais próximo —, mais uma vez na barca de Caronte
Walmor Santos, autor de “Contestado”
01/07/2001

Mais uma vez a caminho dos infernos — ou da ilha de Caras, o que ficar mais próximo —, mais uma vez na barca de Caronte. Detalhe de somenos importância: o nome dos rios que lá desaguam indica quais são os tormentos reservados aos passageiros: Aqueronte (dores), Flegetonte (queimaduras), Cocito (lamentações), Estige (horrores) e Lete (esquecimento). Tormentos eternos. Reservados aos passageiros de pouca monta, é claro. Pois para os escritores outro é o rio — inominável —, outros são os suplícios. O inferno do escritor é administrado por uma horda de editores que lhe inflige todo tipo de maus-tratos. Dostoievski sabia disso. Enredado por um editor, Stellovski, assinou um contrato absurdo que, por pouco, não fez com que perdesse os direitos de toda a sua obra. O final da história (inesperadamente feliz) todos conhecem: resultou n’O jogador, escrito em trinta dias, e no envolvimento amoroso com sua estenógrafa. Não menos tortuoso foi o inferno de Raymond Carver, sob a tutela de Gordon Lish. Carver, o submisso, o torturado. Lish, o endemoninhado que vivia impondo cortes e ajustes nos contos do outro. Exemplos não faltam. Basta procurar na superfície da terra, ou bem abaixo dela. Raros são os editores que vêem o livro como algo mais precioso do que, por exemplo, um par de sapatos. Pelo menos é assim que nós, escritores — eternas vítimas desses súcubos sacanas —, os vemos. Diante de tal quadro, que tipo de aberração levaria um escritor a se tornar editor?

• Mais especificamente, quando foi que o escritor Walmor Santos tornou-se o editor Walmor Santos? E por quê?
Em 93, quando já tinha ganho o Prêmio Paraná de Contos, percebi a falha no mercado: as editoras não lançavam autores novos. Salvo apadrinhamentos. Então, decidi criar um meio alternativo pra sobreviver. E, como gosto de desafios, resolvi vender meus dois restaurantes a preço de pastel só pra começar a vida do zero e realizar um antigo sonho. Minha ex-mulher vibrou: “Eu não disse que ele era louco!”. Meus quatro filhos, pelo contrário, disseram: “Vai, pai, que a bola é tua. Chuta que a gente corre para o abraço”. Por essa época, comecei a viajar por conta do projeto Autor Presente, do Instituto Estadual do Livro (quase trinta anos de Projeto, que resultaram no surgimento do mercado editorial do RS e na razão principal de as escolas e faculdades do Estado trabalharem com a literatura aqui produzida). Então, criei o meu projeto Autor na Sala de Aula, pra poder viver profissionalmente do meu sonho. Hoje, tenho no currículo mais de mil e duzentas escolas que já visitei e onde vendi oitenta mil exemplares. Veja, em algum dos meus títulos, o currículo e o número de edições de minhas obras. Mais tarde, outros amigos foram juntando-se ao Projeto e impondo novas necessidades. Aí, uma editora mais profissional, quase uma cooperativa, fez-se necessária. Foi assim que nasceu a WS Editor. Hoje, são em torno de sessenta autores, mais de cem títulos e quase três mil escolas visitadas, nos três estados do Sul. Também lancei vários autores novos. Só isso e a satisfação de ver novos olhos brilhando, como os do Altair Martins, do Amílcar Bettega Barbosa, do Dill, do meu filho de treze anos e já com três livros publicados, do Roberto Eifler (Os quarenta anos do doutor Stummer — já o tens? —, que alguns acham que está entre os dez melhores romances do RS, outros, mais radicais, acham que está entre os quatro melhores) já valeu a luta. Agora, o que conheci de cidades, estados, pessoas! Puxa!, conhecer gente que te leu e respondeu de uma ou de outra forma, é fantástico, é muito mais que o Xou da Vida! A literatura, na minha opinião, enquanto apenas papel encadernado, vale tanto quanto um tesouro escondido e sem utilidade. Porém, quando se torna vibração humana, resposta de carências e emoções, de sonhos e anseios, de frustrações e vamos dar a volta por cima… “Puta que pariu”, diria um piá de escola, porque nada pode ser melhor. Se um dia eu descobrir que a minha literatura não vale nada para a Literatura, mesmo assim direi que ganhei a vida por ter feito a vida acontecer em torno dos meus livros. Porque, em vários aspectos, as experiências pelas quais passei e tenho passado ninguém me pagará jamais, muito menos com dez por cento.

• Você mencionou os três Estados do sul do Brasil. Também falou de alguns escritores da nova geração, entre eles o Amílcar e o Altair, pouco conhecidos de São Paulo pra cima. Tenho de te confessar que, por mais que as editoras tentem fazer o livro circular, por mais que muitos autores cruzem o Brasil de norte a sul, continuo sentindo que no Brasil há cinco Brasis, um pra cada região. Quando você fala da literatura do sul, pra mim é como se estivesse ouvindo alguém discorrer sobre a literatura argentina ou uruguaia. O sul é auto-suficiente, artisticamente falando? Nele, escritores e leitores mantêm quase que um pacto de sangue, não permitindo que Belo Horizonte, Rio e São Paulo sejam, do Oiapoque ao Chuí, o centro das atenções?
Graças ao projeto do IEL e, em dose menor, ao meu — o do IEL, há quase trinta anos; o meu, oficialmente há sete e, contando o tempo extra, há nove — criamos no RS um mercado quase cativo, porém não isolacionista. A Feira do Livro de Porto Alegre, ao trazer todo ano escritores nacionais e internacionais, prova que não somos isolacionistas. Por isso temos tantas editoras. Assim, temos mais escritores (independentemente da qualidade de cada um) do que boa parte dos outros estados. Isso, graças principalmente às nossas escolas, que trabalham muito com o autor gaúcho. E vice-versa. No meu projeto, os autores trabalham muito com as escolas e com os estudantes. Há também as oficinas literárias, como as do Assis Brasil, na PUC-RS. Não por acaso — deves conhecer a estatística —, enquanto o resto do Brasil tem o índice médio de um livro por leitor ao ano, nós temos aqui o dobro disso — o que, mesmo assim, é de uma pobreza absurda! Buscamos integração com o país, mas o Brasil tem certa restrição ao autor gaúcho, e isso não é queixa, pois considero algo natural, devido ao distanciamento geográfico, às particularidades históricas da literatura e ao nosso linguajar típico, com palavras incompreensíveis pra muitos estrangeiros. Por exemplo, conheces João Simões Lopes Neto, Roberto Velloso Eifler (não é conhecido nem mesmo aqui), Gladstone Osório Mársico e seus Cogumelos de outono, ou seu Cágado, ou seu Forunculum (já foi considerado o autor que melhor trabalhou a ironia na atualidade; e, por ironia, quando começava a ser reconhecido, suicidou-se)? Forunculum trata dos problemas burocráticos do Direito. É muito cômico, porém, se não me falha a memória, acabou inconcluso por causa do suicídio. Ouvi dizer que ele anda atrás de um médium pra acabar o que não fez antes de acabar com a vida. Particularmente, tenho invadido os teus países vizinhos (como dizes, temos vários). Aliás, eu, que viajo muito pelo RS, acho que cinco países temos só aqui dentro do Estado. Enfim, integraremo-nos pela arte, que é a melhor forma de uma integração permanente. Vide, com todas as restrições, a telenovela.

• Eu particularmente sou a favor dos muitos Brasis, ao menos na literatura. O panorama tende a ficar muito chato, quando, por exemplo, escritores de regiões afastadas começam a fazer uso da dicção tipicamente paulista — da mesma maneira que autores paulistas costumam, às vezes, fazer uso da dicção tipicamente inglesa ou francesa. A tendência à homogeneização empobrece a produção cultural. Essa tendência tem agido no Sul, dando à luz autores clonados?
Não saberia te responder da maneira mais conveniente. Temos autores que julgo universais, mesmo quando suas temáticas são regionais, no sentido exato da palavra e não no de regionalismo. Veja-se o Luiz Antonio de Assis Brasil de seus últimos livros, veja-se Valesca de Assis, Cíntia Moscovich, Vítor Ramil, Altair Martins e tantos outros. Particularmente, sou fã do que aqui se faz, e não gosto de literatura malfeita, com vocabulário, temática e estilo grosseiros. O que disse da telenovela não é pela estandardização, mas por estreitar um pouco as diferenças lingüísticas extremadas — não pela novela em si, mas pelo modo de falar das personagens, principalmente das novelas urbanas, dos apresentadores de um Jornal Nacional, dos entrevistados nos talk shows.

• A noite de todas as noites, teu romance de 1999, foi indicado ao Jabuti de 2000. O fato dessa tua viagem ao fim da noite não ter ficado entre os finalistas te aborreceu? A ânsia do reconhecimento público pleno e irrestrito, que tem movido muitos de nossos escritores, também é o que te faz trabalhar com afinco? Pretende se candidatar a uma vaga na Academia?
Acho que meu nome e minha obra ainda não têm mérito para pertencerem a uma academia. Quanto ao Jabuti, meu prêmio foi ter sido finalista. Surpresa das surpresas. Se fosse vencedor, seria outro prêmio, no qual eu não acreditava e pelo qual menos ainda esperava. Não busco reconhecimento, unanimidade. Gosto, sim, quando trabalho em sala de aula, com alunos do primeiro ao terceiro grau, ou ainda com professores, nas oficinas literárias que ministro. Gosto quando recebo a resposta do que meus textos provocaram em suas vidas. Emoção, emoção, emoção. Gostaria de ser compreendido no que faço. Acho, e o Miguel Sanches foi o primeiro a ver, que minha literatura é profundamente religiosa (não sectária nem de proselitismo). Tenho a maior convicção da existência e da ação de Deus em minha vida — mas isso são experiências pessoais e intransferíveis. Porém, o Deus em que creio não é de castigo, de céu e de inferno. Não é um bom velhinho nem está aí pra nos julgar ou pra atender desesperados. E isso aparece, em ordem crescente, desde o meu primeiro livro, O paraíso é no céu de sua boca, que ganhou o Prêmio Paraná em 1991. E em cada novo livro que escrevo o tema vai se desdobrando e se ampliando, ao mesmo tempo em que se torna uma transmutação da minha religião, que sai dos templos e percorre as ruas, enquanto se transmuta de religião em literatura. Escrevo, não pra ser famoso — não creio que minha literatura me proporcione isso —. escrevo pra curar-me de mim mesmo e de alguns problemas da vida. Tente ver a mulher-aranha d’A noite de todas as noites, numa leitura mais subjetiva, como a literatura! O romance não deixa de ser uma história de amor, num primeiro nível, do personagem não-autobiográfico com essa mulher misteriosa, dominadora. Porém, numa leitura mais conscienciosa, é da paixão do escritor pela literatura que estou falando. Quanto ao meu trabalho, sei que os Quixotes são raros e difíceis de serem reconhecidos como tais. Porém, em todas as atividades que exerci, sempre fui o mesmo: gosto de trabalhar pelo coletivo e sou utópico-prático. Se pensasse em mim ou em dinheiro, não teria a editora, não venderia cinqüenta escritores (muitos, primorosos egoístas; poucos, altruístas). Não faria a revista Blau, que sempre prometo fechar no próximo número, mas acabo me recusando o papel de covarde e burramente insisto noutro número, fugindo do último como o diabo foge da cruz. A Blau — o nome vem de Blau Nunes, personagem do João Simões Lopes Neto — circula desde 94 e já está no 32º número. Mas acho que o fim realmente está próximo. Sinto um cheiro muito forte de enxofre. Meu sonho, ainda vou tornar a realizá-lo, pois já o fiz uma vez — é viver só pra ler e escrever. Alguém já pensou nisso antes? No máximo, viajar e conversar com leitores. Gosto disso: papos de bar, leituras pela madrugada, trocar i-meios com os amigos. Em minhas palestras, pouco falo de literatura. Muito falo da vida, do direito que cada um tem de buscar, custe o que custar, a realização dos sonhos. Essa é a minha bandeira de vida: creio que meus contos, sempre com finais abertos, remetem para a descoberta do prazer de viver e de acreditar em sonhos. Outra não é a razão de a editora existir e de a Blau estar sobrevivendo.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho