Estréia do poeta Contador Borges no teatro, a peça Wittgenstein! agora surge em livro, após duas temporadas de apresentação em São Paulo, na vigorosa atuação de Jairo Arco e Flexa, para quem o monólogo foi especialmente escrito, como nos conta o próprio ator em depoimento incluído ao final do volume.
No espaço de um cenário cambiante, que entrelaça gesto e pensamento, o corpo e seus demônios, Ludwig Wittgenstein é o personagem que nos fala, enquanto fala consigo mesmo, no retrospecto de uma vida metamorfoseada em sonho. Aspectos marcantes da biografia do filósofo austríaco e excertos de seu Tratado logico-philosophicus comparecem nesse palco flutuante como pinceladas de uma pintura em movimento que põe a imaginação em cena num inventado espetáculo da memória.
Aquele que se debruçou sobre a forma lógica da linguagem, analisando-a em sua simetria com o mundo, toma a voz de um outro Wittgenstein, remodelado no seu contorno humano. “O enigma não existe”, diz o filósofo, e assim começa a se desenhar seu personagem, dentro da linguagem, e também fora dela, na dimensão do silêncio que incorpora suas inquietações para além das proposições da lógica.
Estamos em um auditório assistindo a uma palestra de Wittgenstein. Viajamos no tempo e estamos na mansão vienense de sua família, ouvindo Clara Schumann ao piano. Quadro a quadro, passam as imagens da infância de Ludwig, o suicídio de três dos seus sete irmãos, seu alistamento no exército austro-húngaro, em 1914, a declarada oposição ao Círculo de Viena, o isolamento em uma cabana na Noruega, e cada um desses espaços carrega uma atmosfera interior, uma paisagem à beira do abismo, que o poeta bem sabe tatear. “Senhores, não há nada mais sólido que o abismo! Sim, eu sei que esta proposição é absurda, que isso é um disparate, mas o pensamento é isso, a poesia…”.
Para um filósofo que buscou nos limites da linguagem os limites da expressão do pensamento, que manteve fora da articulação lógica e, portanto, fora da forma de representação as questões da ética e da estética; para um filósofo que desqualificava a filosofia enquanto profissão e que prezava o silêncio não apenas pela salvaguarda da ética, mas no amadurecimento do seu próprio trabalho, a disposição de uma força poética não lhe é estranha. Como diz Contador no texto introdutório da peça, “Embora centrado em questões lógicas, o pensamento de Wittgenstein deixa entrever com profundidade outras dimensões do homem, como a ética e a criação artística. Fascinam, a propósito, suas considerações a respeito do silêncio e do indizível”.
É no limiar do indizível, justamente, que o personagem do filósofo transmuda sua figura, volatiliza os registros da sua personalidade histórica e convoca os fantasmas da loucura para se colocar face a face com a vida. A música se lhe transforma em coisa líquida, “música de vidro”, e sua metade de silêncio mostra um segredo que deve ser ouvido. Essa presença de uma outra voz, de um abismo no fundo dos olhos que não pode ser dito, só pode ser sentido, habita o corpo como o silêncio habita a música e o indizível, a poesia. Não surpreende, pois, que o poeta explore os diferentes matizes da alteridade, servindo-se da performance pulsante do corpo para presentificar no espaço e no tempo do teatro o mais além do texto escrito: “O ato num corpo único e plural, corpo de todos e de ninguém: bela síntese de nós mesmos”.
Marici Salomão, que assina as orelhas do livro, lembra muito oportunamente a influência que Wittgenstein exerceu sobre diversos artistas e escritores, entre eles Thomas Bernhard e Peter Handke. Pelo olhar sensível de Contador, que viu no silêncio o lugar de uma vivência poética, ultrapassando assim o benefício de um recurso, temos agora uma nova face do filósofo, tão nítida quanto fluida, em que se imprime a face de um outro. Resta-nos pressentir o inexplicável, ali onde a palavra cala. Ou, como diz o poeta em seu livro anterior, O reino da pele: “Considerar tudo a partir do que vibra”.
