A cada vez que um rabugento reclamar de um suposto marasmo poético na contemporaneidade, despertando em seu discurso já uma poética da inércia (característica de uma crítica também nunca fora do contemporâneo que critica), não o mande à livraria. Lá, o ranzinza ainda terá a sensação de que todos os grandes poetas fazem parte do passado, à exceção de alguns poucos vivos no presente, a usufruir do privilégio de serem publicados pelas — também pouquíssimas — editoras comprometidas com o gênero.
Para chegarmos à poesia que, por vias várias, sempre teimará a chegar a público e ao poeta perdido-encontrado por aí, temos de negar o ócio das convicções preguiçosas do mundo dos negócios, quando não avaras, quando não soberbas, quando não invejosas, quando não iradas, quando não tomadas por outro qualquer pecado (do) capital. Esta crítica que, cheia de mandamentos, odeia o próximo como ama a si mesma, não raro leva seus pares (ou ímpares) à desconfiança de alguma luxúria junto àquele escritor elogiado por ela e com o qual deva manter certo caso de amor ou amizade, para merecer juízos simpáticos e afetuosos.
É por uma via vária que me chegam, ora livres de afetos, amizades e pecados, Viavária e seu poeta, Iacyr Anderson Freitas: por correspondência, provando que, para além de um espaço nas estantes livreiras, o poético vive e sobrevive dos correios involuntários, dos envios do imprevisto, destas pontes entre o corpo anônimo não-sabido e um nome novo descoberto, destes deslocamentos, do salto das próprias estantes, em meio aos quais moradas insuspeitas e provisórias se infiltram na bagagem dos carteiros, dos envelopes encaminhados e ora em extravio, à espera do aberto e abertos à espera, no risco de acontecer no limiar entre um remetente e um destinatário possíveis. Nesta fronteira a partir da qual as vias vivificam mapas, uma obra se revela correspondência, isto é, o que se põe, o que se responde somente junto de, isto é, na conjunção e, portanto, necessita do afeto, da simpatia, da sintonia — não do distanciamento prévio, mas da prévia aproximação, sem qual não haverá a obra, a poesia, a crítica:
Chegar assim tão longe,
entre o vário e o vago,
para sorver o mundo
de uma só vez, num trago.
Ir além, mais além
de seu próprio limite,
até que o risco seja
convívio. Ou convite.
Via de acesso
Na busca por uma via de acesso ao que é vário no livro de Iacyr Anderson Freitas, flagramos não, de um lado, o intérprete, o sujeito, a perguntar sobre como irá além, penetrar o outro lado, a priori separado, e que pertence ao livro, o objeto. Ambos — sujeito e objeto, intérprete e interpretado, leitor e livro — é que pertencem ao movimento da interpretação, quer dizer, da interpenetração em que algo já e antecipadamente se interpôs, já e antecipadamente fez sentido, “convívio”, “convite” e, desse modo, via na qual, a cada vez, o vago da realidade se empreende vário, singular, genuíno, único, porque a apresentar o que, fora da correspondência, não se apresenta, não se faz presente. O que não se gera e se cria de dentro para fora, de fora para dentro, mas só de dentro para dentro da própria vida que devolve os pólos à sua relação, atamento, laço, via — “o que acaso/ dissipou, o que se tornou exausto/ de florir”.
A partir daí, o autor também se descobre voz a atravessar quando atravessada, a chamar-se pelo que na obra é seu chamado, seu título, e entender cada poema assim como esta travessia ou, no vocabulário próprio do poeta, Viavasta, “cidades em fuga”, “álbum de retraços”… No livro, as dez partes com que o poeta organiza esse percurso de perigo, perímetro de percalços, se compreendem melhor na desorganização delas, ou seja, quando seu perfazimento ou perfeição (evidente no bom acabamento de todos os textos) se abre para o seu princípio, para a sua perturbação, para o próprio per que, nessas palavras, evoca a liminaridade em si, o ínterim, a fronteira, a correspondência onde o nome tornado voz (e a voz tornada nome) permite que vida, via, seja: experiência.
Em vista disso, a passagem multifacetada pelo vasto, vário e vago das vias também se revela ímã e irmã do impasse; é — no discurso perscrutador de Iacyr Anderson Freitas — pergunta: “Que cadáver que muro invisível/ empurram as ondas?”; É a terra um erro/ diante do mar?”; “Haverá um momento/ em que todos os relógios/ acusarão nossa morte?”; “O rio que me banhou na infância/ ainda me reconhece?”; “Onde está escrito, onde, que tem que ser água, água sempre, o horizonte?”; “Do fundo escuro de qual sono/ março acende o outono?”. Nessas encruzilhadas, a pergunta pelo sentido da passagem encontra no próprio perguntar isto que o sentido é como impasse simultâneo ao perpassar/ultrapassar. Trata-se de assumir que a humanidade não decide, não faz escolhas simplesmente a partir de si, porque lançada na obrigatoriedade de ter de decidir (de se perguntar) — e onde decidir não-decidir já é ter decidido, ter passado por… Pela via, pela correspondência, pelo envio de vida que assedia o homem a ser sede do conflito e do dilema, a partir dos quais a liberdade se dá não por livre-arbítrio (a interpretação não se dá por livre-juízo), na medida em que a polarização entre homem e real, sujeito e objeto, é uma vez mais artificial, falha, senão absurda, e é fatal que ser livre queira dizer estar junto, irremediavelmente dentro desta disponibilidade que a realidade (como interpretação, ou seja, existência) nos concede e é: “Qual tamanho teria/ uma antologia/ de tua vida?”.
Todas essas ponderações elevariam (ou, no caso, rebaixariam?) o livro de Iacyr Anderson Freitas à condição de obra filosófica, se não resolvesse cada impasse na passagem pelo poético, que não se ocupa de nada resolver, haja vista que na poesia não há problemas esperando “equação”: “contas e contas/ somatórios/ vis// até desistir do inacessível/ x”. Se porventura diante de uma — assim encarada — problemática, ela se preocupará em gerar outras, no desígnio de não esgotar o movimento, o envio, o deslocamento, a espera, o correio, aquele velho-novo espaço aqui citado e não, porque em toda via em-aberto, entre remetentes e destinatários, a seguir “adiante/ : o passado se renova/ num futuro distante”.
Incapturável
No furor das aporias, a ironia (entendida como afirmação negadora, negação afirmadora, riso no trágico e vice-versa) freqüentemente dá o tom dos poemas e é o tônus do próprio poema enquanto corpo que, sem nada a resolver, resolve que ao menos ele seja ele bem resolvido. E isto é exemplar em Iacyr Anderson Freitas, ciente de que resolver um poema é insuflá-lo de reticências-perguntas as quais, no livro, se perseguem a si mesmas ora na reincidência dos mesmos arranjos estróficos, os mesmos andamentos e ritmos métricos que a conservam e a capturam, ora na ocorrência do verso livre — curto, cortante — que deflagra o incapturável da resposta mesmo no plano da forma. Em ambos os casos, a perseguição do sentido no som e do som no sentido, fazendo que o texto se faça, no popular, “redondo”, por realmente se pôr cíclico, condensado, esférico — senão educação pela pedra, tal o João Cabral visitado. Por tudo isso, Freitas não cai numa espécie de poesia teórica, teorizadora, por jamais culminar em ilustração, exemplo ou repercussão gratuita de algum filósofo lido. Mesmo quando um deles aparece explicitamente no título de um poema, o vigor poético sobressai, tal como no primoroso Heidegger além da medida:
Se houve um tempo além da medida
frágil dos relógios, além
da hora vulgar, já perdida,
em que os dias perdem também
todo o ar, peso ou substância,
em que se rompe a engrenagem
de ser, e é pequena a distância
de um milênio, e não há passagem
entre estar sendo ou já ter sido,
se houve esse tempo, dele temos,
guardada, a imagem sem sentido
de um barco que soltasse os remos
e de si mesmo se extraviasse,
rolando pelo chão vazio.
Mas fizesse, de sua face
(ao correr), o seu próprio rio.
Se presentes em Freitas, os matizes acadêmicos se explicitam em seus ensaios — gênero ou não-gênero que parece escrever com interesse. Distinguindo seus roteiros de viagem para além dos propostos nos poemas de Viavária, o poeta tem organizado seu percurso de perigos, perímetro de percalços, em várias vias de escrita: poesia, ensaio, ficção, literatura infanto-juvenil… Impressiona sua quantidade de publicações e, sobretudo, de premiações. À crítica caberia, então, não o pecado capital de falar sobre a obra (uma vez impossível pôr-se acima do que já alcançou altas alturas), mas, sob ela, acatar sua grandeza, de modo que possa aparecer igualmente vibrante e graças a ela, afirmando que da poesia é que também vem toda sua força. Seu impasse e sua passagem. Afinal, os críticos “não fundam/ as cidades que alinham:/ fazem-nas com o barro/ que elas mesmas continham”.