Se tem um tema que me dá nos nervos é o tal de “literatura feminina”. Quando o que caracteriza é o fato de se ter um livro escrito por alguém do sexo feminino, até entendo, mas a razão de tal ênfase é que “não me desce”. Nunca falta um sábio e sensível critico para dizer que fulano escreve como mulher, que beltrano conhece como ninguém a alma feminina, mas raramente se escuta alguém dizer que dona tal escreve como homem.
Meus queridos ingênuos, homens e mulheres são capazes das mesmas atrocidades e similares belezas. É a tal da condição humana. Não entendo essa palhaçada de isso ser coisa de homem e aquilo coisa de mulher. Nos meus três casamentos, estaria condenado a viver de roupas sujas ou morrer de fome, caso não me familiarizasse à força com tanque e fogão. Entendo que o que torna esta ou aquela obra mais relevante é o fato de o escritor estar comprometido com seus sentimentos, com suas experiências. Isso tornaria sua obra tão mais próxima do leitor, o que facilitaria uma identificação tão importante a ambos. De modo que não tenho saco para essa mediocridade de literaturas masculina e feminina. Porém, podemos tratar do assunto dizendo que tal tema é pouco abordado pelos homens ou
que não é comum mulher escrever sobre sexo, sexo mórbido e suas variações. É aqui por essas veredas escuras do estranhamento, diminuindo a distância entre ficção e realidade, que Maria Luísa Ribeiro conduz este seu Os cordeiros do abismo. E sem lanterna.
Caso ao final da leitura, o leitor pressentir a sombra da transgressão, lamento informar, mas estará equivocado. Não é visível o menor traço de escândalo, o que se apresenta é uma trama normal, que graças à galopante estupidez humana logo merecerá o carimbo de “corriqueira”. O ser humano é capaz das mais sórdidas atitudes e, sendo assim, não deve causar maior espanto ao mais inocente colegial saber das peripécias de um psicopata que faz sexo com fotografias de cadáveres, da necrofilia, da perversidade sexual, do incesto. Diante disso, tornam-se matérias de jardim de infância o cândido homossexualismo e algumas aberrações derivadas da hipocrisia, esse dejeto do puritanismo. Não satisfeito em copular com as fotos arquivadas no cartório, Leopoldo perseguia também viúvos e viúvas como um vampiro em busca de um gole de sangue. Como podem ver, não há motivo para espanto.
Se Maria Luísa não economizou horrores, também apresentou, segundo seu pessimismo, a comunhão de arte e vida, arte e loucura, de animalidade e humanidade, de desejos e frustrações, de culpa e prazer. Os cordeiros do abismo é a trajetória de Leopoldo e similar ao Bloom, de Joyce; o Dornellas, de Maria Luísa, não tem nenhum cacoete do herói, muito pelo contrário, ambos são personagens moralmente arruinados. O Leopoldo de Maria Luísa não guarda a menor intimidade com a verdade, embora a onda de questionamentos que “verdade” venha ensejar a quem tenha por hábito essa prática. O atormentado Leopoldo tem em Marina a única verdade que conheceu. E o leitor perceberá ser ela a exclusiva depositária de sua confiança.
Os cordeiros do abismo, assim como Ulisses, tem lá suas explicações cabalísticas no que diz respeito à divisão em travessas ou capítulos — 14 — e sua organização matemática está a merecer estudo de alguém bem mais apto que este modesto aprendiz. Tudo começa em um cartório na Av. Dias da Cruz , onde os arquivos alimentam a compulsão do protagonista. Foi nesse cartório que Leopoldo aos 13 anos experimentou a maior emoção de sua vida: “…o mais intenso orgasmo e a maior emoção foram brotados dos seios tesos de uma mulher que teria a idade de sua mãe, e de cujo perfume nunca se esquecera”.
Leopoldo desfila sua morbidez por sete travessas, onde perversão, compulsão e a permanente imagem da mulher perfumada do cartório vão escurecendo seu caminho. Na sétima travessa — ida —, reencontra em Marina, trinta anos depois, o tênue relâmpago que acompanhará suas culpas através do seu retorno — Leopoldo fugindo de si e ao mesmo tempo tentando se reencontrar. Não existe futuro em seu horizonte — pelas sete travessas margeadas pela autopunição e arrependimento. É justamente na travessa quatro do retorno que o leitor poderá opinar se está diante do surrealismo, do realismo mágico ou quem sabe, de ambos. Para ser mais claro, o leitor é convidado a opinar muitas vezes durante A Via Cruz de Leopoldo.
Maria Luísa soube contornar a armadilha simplória que enclausura personagens sem profundidade, na qual apenas o rótulo em quatro cores chama atenção do leitor e fez do seu Leopoldo um personagem pouco comum, apesar de trágico, misto de Édipo e serial killer. Aparentemente fruto de clichês — garoto angustiado, mãe sem tempo para ele, coadjuvante de experiências sexuais mal resolvidas —, Leopoldo tinha tudo para repetir a chatice. Entretanto, no meio do caminho do garoto tinha Maria Luísa e Leopoldo não reinventa o romance, tampouco reinventa a humanidade, mas coloca a autora entre os grandes. Um simples detalhe. A armadilha estava pronta, bastava a autora puxar a cordinha e colocar o ponto final, seria uma solução cômoda, convencional, novelesca no pior sentido — o televisivo. Porém, Maria Luísa não conclui, não fecha questão, aqui nada é definitivo, o final fica por conta de um dia qualquer. Eu havia dito que ela aproximara arte e realidade, lembram? A história de Leopoldo, como a de todo ser humano, é sua forma singular de lutar contra a morte. No caso do protagonista, o sistema de oposição na luta contra a morte, nomeado por Freud, apresenta falhas. Localizadas na sua herança biológica ou
quem sabe na mítica? A derradeira análise de Os cordeiros do abismo, moto-perpétuo no qual o amor é personagem ausente, ainda será feita por algum profissional dos labirintos da mente humana, psiquiatra, psicólogo ou algo do gênero. O recurso utilizado pela autora de compartir o ponto de
vista entre Leopoldo na primeira pessoa e o narrador, também personagem, na primeira e terceira pessoas, exige do leitor redobrada atenção para não perder nenhuma particularidade. E é justamente nas minúcias que está reservado o vigor do romance. Um instigante trabalho de uma grande escritora, infelizmente, “longe demais das capitais”.
Gabriel Nascente é a grande expressão poética de Goiás e também o mais plagiado. Ops! meu bisavô, apagando o palheiro no teclado, me corrige dizendo ser Cora Coralina. Tá certo vovô. Então Gabriel Nascente é o expoente da poesia do Cento Oeste na atualidade e na prosa, graças ao conservadorismo e polpuda mediocridade que grassa entre os escritores goianos, divididos em grupelhos anões em busca de promoção, Maria Luísa talvez ainda leve mais tempo que o justificável para ter seu imenso valor reconhecido. Plagiada vergonhosamente por uma conterrânea ela já foi. Ficou por isso mesmo.
Não será a primeira vítima dos ciumentos covardes. Vocês já leram Fausto Rodrigues Valle (Confraria de marimbondos), Edival Lourenço (A centopéia de néon)? Alguém conhece um pouco que seja da literatura infantil/inteligente de Ciça Fittipaldi? São goianos e assim como Maria Luísa e Gabriel Nascente também são grandes.