Quando estamos diante de um autor considerado “grande”, a crítica pode incorrer em alguns erros: um será sempre o conservadorismo de repetir as mesmas máximas e opiniões, mantendo-se sempre na confortável posição de estar à margem das polêmicas; outro é cair na ofensa e na desconstrução gratuitas, tentando o crítico buscar algum tipo de reconhecimento ou ainda a mera diferenciação, muitas vezes oca. Porém, essas duas linhas sempre convergem para a mesma direção: a completa nulidade da exegese da obra. Por isso, o maior respeito que um crítico pode destinar a esses autores é exatamente aquilo que lhe cabe como função primária: a análise da obra de forma a lhe preservar o frescor do ineditismo e não permitir que os livros recém-lançados sejam lidos como se fossem mais do mesmo.
Ao longo da trajetória de um autor, a produção de uma única obra-prima, de uma única obra de arte já seria o suficiente para olharmos o artista com toda deferência e admiração. Se João Guimarães Rosa “só” tivesse escrito Grande sertão: veredas em toda sua vida, ou Stendhal “apenas” O vermelho e o negro, nada mais precisaria ser escrito para já os considerarmos como os maiores. É o que acontece com autores da estatura de João Ubaldo Ribeiro. O baiano é um desses escritores que já marcaram seu nome nas nossas letras com pelo menos dois livros: Viva o povo brasileiro e Sargento Getúlio. Por isso, a publicação de O albatroz azul nos causa tanta emoção.
Renascimento
João Ubaldo recentemente enfrentou vários problemas na sua vida particular — como a depressão e o alcoolismo — que, entre outras coisas, influenciaram no hiato de sua produção (o ficcionista não lançava um livro desde 2002, o sombrio Diário do farol). “Comecei a fazer, mas tive problemas de computador terríveis, parecia maldição. Aí perdi a embocadura”, disse o escritor numa entrevista a Cristiane Costa, para a revista Bravo!. “Então comecei a escrever outro livro, que parecia ser este. Mas estava me saindo descomunal, uma Montanha Mágica qualquer. Eu ia fazer um livrão, mas ele se recusava a sair. Aí pensei cá comigo: ‘Ninguém lê livrão’. Deixa sair pequenininho mesmo”. Vencidos os problemas, João Ubaldo viu sua vida dar uma guinada, alçando novos vôos. Em 2008, o autor foi agraciado com o prêmio Camões, atribuído aos maiores escritores de língua portuguesa. Agora, seu mais recente livro, O albatroz azul, vem recebendo (merecidos) elogios da crítica.
A tudo isso, soma-se outro fator fundamental: João Ubaldo Ribeiro vem mostrar que o tempo só lhe fez bem. Como uma escrita vigorosa nessa história lírica e saborosa, o escritor transforma simplicidade em apuro estético e, assim como seu mais novo protagonista, Tertuliano, mostra que o vigor, a sabedoria e a experiência advindas com o tempo são a base que solidifica uma carreira fundamental nas letras brasileiras.
O albatroz azul é um livro que narra com singeleza e beleza a existência de Tertuliano Jaburu. Partindo da reflexão do protagonista a respeito da própria vida, o livro se constrói na confluência de dois momentos: na espera de Tertuliano pelo nascimento do único neto, Raymundo Penaforte, nascido de sua filha Belinha — depois de sete meninas —, e na rememoração de sua existência, que irá culminar na busca pela compreensão de seu fim. O que ocorre paralelamente a estes episódios são lições sobre a vida simples de uma ilha na Bahia, reveladora da importância dos ditos populares e da escolha dos nomes dos filhos. Dessa forma o livro funciona quase como um convite a sentarmos num banco de praça sob uma árvore e acompanharmos a história que se desdobra à nossa frente.
O espiritual e o telúrico
Tertuliano é um homem que vive no limiar entre os mundos telúrico e espiritual. Somando isso à sabedoria que o tempo lhe imprimiu, o protagonista inicia ao longo do livro uma grande travessia em que espera encontrar o sentido da sua própria existência, reconciliando-se com o passado e buscando compreender as nuances do futuro. Já no primeiro capítulo, o personagem conhece o caminho o qual irá percorrer: “Tertuliano imaginou que tudo o que iria ocorrer naquele começo de dia já era sabido e ressabido em algum lugar, de alguma forma”.
O ponto culminante dessas reflexões tem como marco o dia do nascimento de seu neto Raymundo Penaforte. De todos os outros netos que teve, com Raymundo há uma estreita relação, sentida e sabida antes mesmo do nascimento do garoto. Tal relação é corroborada por seu amigo de infância, Nestor Gato Preto, homem “familiar ao oculto, ao sagrado e ao espiritual”, que vaticina que ao lado da vida do recém-nascido havia “uma vida vazia, certamente a preencher”.
A força do espiritual do momento é marcada, também, pelas condições do nascimento do menino. Aproveitando a raridade da situação, Tertuliano deseja fazer com que nada saísse errado, por isso pretende dar a seu neto toda a proteção possível.
E assim tudo foi feito, sem se perder a cerimoniosidade do instante e sem se cair no exagero. (…) Altina passou o menino ainda gosmento a seu avô, que o levantou com o traseirinho na direção da lua e assim o manteve enquanto rezava um padre-nosso e uma ave-maria, seu próprio rosto também voltado para o alto e muito sério, os olhos fechados e as mãos vibrando. Algumas mulheres murmuravam orações em língua da terra, língua de padre ou língua de jeje ou ioruba, ou alguma outra de trambolhada, de que só se sabe mesmo repetir a reza.
Após o nascimento e o vaticínio, Tertuliano se ocupa, primeiramente, das partes práticas no que concerne à criação do neto. Num primeiro momento, tratou de escolher o nome do infante, “Raymundo Penaforte, nome escolhido por motivo relevante, boa ressonância, composição bem casada”. Aqui, João Ubaldo revela o sentimento que as pessoas mais simples têm ao nomear o filho, conscientes de que o nome não só acompanha a criança a vida inteira, mas é responsável também pelo destino delas. Após isso, Tertuliano passa à escolha dos padrinhos. Nesse momento confirma-se o prenúncio de uma vida de bem-aventuranças para Raymundo. Convidando Seu José Honório e Dona Roxa Flor, um casal rico que morava nas proximidades da região, surge a surpresa por parte do futuro padrinho. Querendo há muito adotar uma criança após ter os filhos criados, Zé Honório não só aceita como também faz questão do apadrinhamento. Resolvidas as questões de natureza mundana, Tertuliano irá buscar na interioridade anímica de si mesmo o sentido de sua existência.
As vozes da consciência
Em Problemas da poética de Dostoievski, o teórico russo Mikhail Bakhtin afirma que “no romance polifônico a consciência do herói é dada como a outra, a consciência do outro, mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna mero objeto da consciência do autor”. Essa é a realidade que encontramos em O albatroz azul. Narrativa na qual escutamos as vozes dos personagens como vivos, guardando total individualidade entre si, em mundi,vidências próprias que criam os tipos mais diversos. E essa é a força do texto de João Ubaldo Ribeiro. Um ponto fundamental a mencionar é que, no livro, as vozes dos personagens, a despeito de nem sempre suas falas aparecerem num discurso direto, são plenamente ouvidas e extremamente diferenciadas. Nessa técnica do monólogo interior associada à polifonia mencionada anteriormente somos capazes de ouvir com prazer o discurso recheado de sabedoria de Tertuliano: “Até porque não somente sem sinais consiste ele, mas em largo cabedal de saberes zelosamente atabafados ao longo das eras, cujo rol quiçá jamais se finde”.
Há também a fala religiosa de Iá Cencinha:
Deus sabia que ela era uma serva fiel e cumpridora de seus deveres. Pecadora como qualquer filha de Eva, desconhecia contudo dama mais assídua na igreja, coração mais inundado de amor a Deus Onipotente, à Imaculada Virgem Santíssima, ao glorioso Santo Antônio e a todos os santos, afinal.
E a fala repleta de ditos oriundos de uma sabedoria popular: “De burra que faz hin e de mulher que fala latim livra-te tu e a mim” e “Noivar sem pensar é namorar com o azar”.
A vida que poderia ter sido
Quando Tim Burton dirigiu, em 2003, o filme Peixe grande, fomos acometidos por prazerosa emoção ante ao desfecho da história que nos era contada com tanto lirismo. O enredo versava sobre um homem que vivia entre a realidade e o surreal. No desfecho de sua vida, ocorre a reconciliação com o filho, coisa que parecia improvável, e a transformação de seu corpo num grande peixe que nada para longe. Em O albatroz azul esse lirismo é retomado, com alguns pontos de contato.
Um desses encontros é o final de um ciclo. É como se diante de todos os vaticínios e presságios a vida esperasse o tempo que fosse necessário para que tudo se realize. No filme, a reconciliação de pai e filho; no livro, a preparação de Tertuliano para seu neto, para que ele tenha uma vida de acertos. Retomando o ponto de contato com o surreal, ou melhor, o espiritual, Tertuliano percebe que sua vida está no fim, e que há outra vida ao lado da de Raymundo Penaforte. Somente quando ele descobre que essa era a vida de sua mãe — vida essa que (lembrando Manuel Bandeira) podia ter sido, mas não foi — é que o ciclo se fecha totalmente. Todas as conclusões tiradas, Tertuliano se prepara para partir. É iniciado brevemente por um holandês empedrado que o leva a certos pensamentos filosóficos e a partir daí dorme. Numa mistura entre espaços reais e oníricos, Tertuliano tem a impressão que seu corpo começa a voar e percebe que se tornou um imenso albatroz azul, “singrando as alturas de que doravante será morador”
O livro de João Ubaldo Ribeiro, mais do que um simples contar de histórias, é um texto que nos leva a grandes reflexões existenciais a partir da singeleza da vida. Construído sobre os silêncios do pensamento e a certeza de que a morte é mais uma etapa da vida, o lirismo e a poeticidade pululam a cada página. Em construções artesanais da prosa, além do fôlego que se mantém do início ao fim, entendemos porque, em mio a uma pós-modernidade de escritas vazias, de violências e sexualidades gratuitas, o baiano é hoje uma das referências da grande prosa brasileira.