O rasante do mamaluco-beleza: Tempos atrás, enfastiado com a morosidade do nosso mercado editorial, armei a seguinte traquinagem: a Coleção 100 (Sem) Leitores, que abrigaria apenas livros sofisticadíssimos e invendáveis. A tiragem de cada título da coleção? “Cem exemplares para cem leitores não menos exemplares”, esse era o nosso lema. É claro que, por falta de traquejo do falso editor, a coleção durou pouco (teve apenas oito títulos). Entre os originais que deviam ter sido publicados e não foram, estava O mamaluco voador, misto genial de novela histórica e crônica veladamente irônica. Desde a sua concepção, em 1995, esta pós-moderna e mais do que inventiva narrativa de Luiz Roberto Guedes já sobrevoou dezenas de casas editoriais. Sobrevoou, fez sinal, mas não foi convidada a pousar. Aos editores profissionais deve ter faltado coragem ou talvez uma pista para aeronaves de grande porte, dessas que carregam toda uma civilização. Felizmente, para a sorte de todos nós, nada disso faltou à Travessa dos Editores.
Manuscrito antigo revela primeiro noviço voador da Terra Brasilis: O mamaluco voador passa por ser um manuscrito jesuíta, datado de 1569, que teria sido leiloado em Osaka, Japão, em 1991. A revista Ultramar, publicação de certo Instituto Cultural Portugal-Japão, teria divulgado trechos da suposta carta autógrafa do padre Manoel da Nóbrega (1517-1570), em sua edição de outubro de 1991. Destinada ao padre Pero Pereda (1516-1589), em Goa, a missiva revela a existência de um aeronauta pioneiro no Brasil do século 16: o noviço Anrrique Braz, mamaluco nascido na capitania de Pernambuco. Filho de um ex-frade franciscano (“fogido de Cabo Verde por ter pecado contra a chastidade”) e de uma índia cristianizada, o noviço Braz será acolhido por Nóbrega na Companhia de Jesus, por ver nele um promissor obreiro da vinha do Senhor. Esse é o início da peleja de Anrrique Braz com sua metade índia para tornar-se um fiel soldado de Cristo. A carta do padre Nóbrega narra pari passu essa jornada.
Aventuras & desaventuras no Novo Mundo: Sob a capa (e a espada) da aventura, o texto relata os eventos testemunhados pelo padre Manoel da Nóbrega à frente do Colégio de Jesus. Com base em documentos históricos (volumosa correspondência dos primeiros jesuítas do Brasil, fons et origo desta novela epistolar), O mamaluco voador nos dá notícia do dia-a-dia na colônia: a prática missionária, os “maos custumes dos gentios”, a invasão dos hereges franceses no Rio de Janeiro, as mortandades praticadas por “yndios yrredemptos”, as crueldades perpetradas contra os gentios “polos maos christãos”, e os trabalhos, as fomes e as fadigas sofridos pelos soldados de Cristo em sua missão de ganhar almas para o céu. A veemente narrativa em primeira pessoa nos expõe a ideologia religiosa e secular dos jesuítas, estreitamente associados aos objetivos temporais do colonizador: o domínio da terra, a exploração de riquezas naturais e a “sobjeição” dos gentios, “polo amor de Christo ou pola força das armas”.
O mameluco malaco assume sua sina: Em sua desmedida carta ao “boom irmão Perico”, Nóbrega rememora o jovem noviço mamaluco, “de bon parecer e ben-falar”, que à primeira vista lhe pareceu um digno obreiro da vinha do Senhor. Por sua natureza “meyo yndia” (ou inteligência perquiridora), o mamaluco contestará a escravização dos indígenas e sua aculturação forçada. Com sua constante enunciação de dúvidas e disquisições, suas especulações sobre o espírito da justiça e as renitentes interpretações dos Evangelhos, Braz terminará por exasperar o bom padre Nóbrega. Sua exuberância, suas “jograrias”, sua alegria pagã e sua mente antidogmática farão dele a antítese do soldado de Cristo, cujos deveres primordiais são o zelo, a humildade, a obediência e o desprezo do mundo. No plano terreno, as façanhas heróicas do mamaluco lhe valerão um rol de apodos consagradores por parte dos índios: Yapucan (o Risonho), Guirapajara (o Senhor do Arco), Yaretê (o Senhor da Águas), O Matador de Jaguaretês, O Senhor da Fala e muitos outros. Até receber seu derradeiro batismo — Guirapaxé — e o anátema de Nóbrega.
Lutas & latinórios: Depois da tomada da fortaleza de Villegagnon pela armada de Men de Saa, o índio Filipe Tapirassú, irmão de Anrrique Braz, se apossa de certo “baú de frandres”, tomado a um francês morto. Nesse baú será encontrada a planta de como construir a “machina volatrix” de Joham Simon Volterre. Anrrique Braz e seus artesãos índios darão forma ao engenho de Volterre, uma grande guirapepó (asa na língua brasil). No dia de Santa Ana, 26 de julho, o mamaluco faz um vôo bem-sucedido sobre o mar de Tamambuca, ocasião em que ganhará a alcunha de Guirapajé, pássaro-feiticeiro (ou Guirapaxé, na grafia castelhana de Nóbrega). Será sua derradeira façanha no seio da Companhia de Jesus: expulso por Nóbrega, entrará pelo sertão com todos os índios da povoação sob seu mando. A metade índia de sua alma vencera a peleja contra a metade cristã, no entender do padre Nóbrega, finalmente convicto de que abrigara entre os seus um espião do Inimigo: um ardiloso servo de Sathanaz.
Viagem à estratosfera da linguagem: Farsa, contrafação ou fábula mordente, a noveleta lança mão do portoguês quinhentista, erigindo um constructo arcaizante de forma inteligível, pontuado por citações bíblicas em latim, devidamente elucidadas em notas de rodapé. A aparente dificuldade dessa linguagem é logo superada: a massa de eventos, perigos, combates, proezas, feras e “maos custumes dos gentios” tem o dom de trazer o leitor para dentro da colônia. E da cabeça de um jesuíta do século 16. A pretexto de divertissement, essa crônica muito bem urdida e fundamentada nos apresenta um anti-herói nativista de primeira hora, primeiro fruto de uma nascente cultura mestiça, e proporciona matéria para reflexão. Os quinhentos anos do Brasil, comemorados recentemente, constituem o momento perfeito para revisitar o nosso passado (ainda que forjado).
Baudelaire dos trópicos: Boa praça, bom papo, refinado sem ser pedante, sempre simpático e agradável. Autor de travessas estripulias para as crianças e os jovens. Poeta de primeira, o Calendário lunático que o diga. Quando flagrado de esguelha, sob determinadas condições de pressão e luminosidade, Luiz Roberto Guedes, sempre de preto, esguio, risonho, o cocuruto quase calvo e o pouco cabelo que lhe sobrou escorrendo até os ombros, lembra um poeta finissecular. Decadentista até a medula, o gajo, pero sin perder la ternura jamás. Fã incondicional do quarteto de Liverpool, meticuloso com as palavras, sem jeito algum para os rapapés e os qüiproquós da vida social literária (daí a dificuldade em ter sua obra publicada). É por essas e por outras que, se a História tiver o mínimo parentesco com a Justiça, O mamaluco voador já nascerá clássico, ao lado do Catatau, de Paulo Leminski, e das Galáxias, de Haroldo de Campos.