Vôo assimétrico

Carta-ensaio para "O vôo da madrugada" de Sérgio Sant’Anna
Sérgio Sant’Anna não escolhe caminhos triviais, como o cinismo omisso, a complacência sentimental ou o denuncismo simplista Foto: Bel Pedrosa
01/11/2003

Prezado Sérgio,

Então, e ainda, O vôo da madrugada. O número três (que já havia regido a estrutura dos livros Breve história de espírito, de 1991, e O monstro, de 1994, ambos compostos por três textos longos) mais uma vez dá o tom, traduz seu desejo de perfeição e, simultaneamente, seu ceticismo em relação a ela, seu subversivo, e altamente dinamizador, fascínio pelas assimetrias. Sim, seu Vôo é assimétrico. Talvez se lido isoladamente, sem se levar em conta que ele se insere num percurso literário, isso possa parecer um defeito. Mas a diferença entre as partes do livro (que, curiosamente, num nível sub-reptício, também se imbricam) é demonstração do domínio de habilidades narrativas diversas, que você vem cultivando durante esses anos todos (três décadas!), e que se manifestam de forma mais enfática em um ou outro livro de sua bibliografia, também poderosamente assimétrica.

No meu jogo pessoal como leitor de sua obra, vejo, na parte I de O vôo da madrugada, o experimentalismo elegante, sedutor e inteligente do clássico O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, livro publicado em 1982, e dos contos de A senhorita Simpson, de 1989. É claro que os estupendos (não há como evitar a hipérbole) Um conto abstrato, Um conto obscuro, Saindo do espaço do conto, reunidos em O vôo, são derivações bem-sucedidas, mais orgânicas talvez, do inaugural e mineralíssimo Conto (não conto), do livro de 1982. No âmbito da literatura brasileira, tornou-se impossível voltar a enunciar ingenuamente a palavra conto. Conto, a partir de então e ainda mais agora, será sempre “conto”, com o efeito suspensivo das aspas. Pode haver algo mais duchampiano? Pode haver maior conquista para alguém que ama Duchamp e a potência crítica da arte?

Mas na primeira parte de O vôo da madrugada também se encontra, como no conto-título de O concerto de João Gilberto… (em que se vivia para narrar e se narrava para viver), o aproveitamento literário das oscilações entre obra e vida, experiência privada e tornada pública através do registro textual — em gradações variáveis de ficcionalização. Rapaz, rapaz, confesso que, nessa primeira parte, apesar de estar habituado à sua audácia escritural, e de, durante a leitura, vir reconhecendo pistas biográficas disseminadas em vários textos, as quais se explicitam de modo natural e belo nas Invocações, não supus que, não pensei que, não acreditei que você fosse capaz de escrever algo como A barca da noite, texto que encerra a seção. Só de imaginar os momentos em que sua mão rabiscava aquelas palavras, sou tomado por arrepios, menos em função dos eventos narrados (nada desprezíveis, decerto, pois se trata da voragem da morte em sua manifestação mais crua, pois que confrontada ao livre-arbítrio humano) e mais pela premência avassaladora, que ali se revela, de torná-los literatura. Minha perplexidade, que se converte em reverência, se explica por eu ter sido solapado, de maneira absurdamente direta, pela magnitude que você atribui à literatura, à potência de sua impotência e vice-versa. E aí vem o “conto” propriamente dito (não disse que as aspas se tornaram irreversíveis?) e é tudo tão simples: uma barca que se afasta com a mulher amada, e esse sujeito que, ao mesmo tempo, vai e fica, dividido em dois, ou melhor, em três, pois ele é também, forçosamente, um leitor.

Muito se tem falado da presença da morte no livro. Claro, mas o que interessa é observar com quais traços você a desenha. E aí, meu prezado, seu trabalho é de fato único. Há uma generosidade que se manifesta na proporção direta do assombro com as situações. Generosidade de reconhecer as ambigüidades dos seres humanos (duas cenas impactantes, porque colocam em xeque qualquer pretensão de se julgar comportamentos: os sentimentos despertados pela menina que se prostitui no conto que dá título ao livro, e a mãe que se deixa possuir pelo filho drogado em Um conto nefando?). Generosidade também de validar o poder auto-regenerador, ainda que insignificante para os olhares alheios, das narrativas que os seres mais desalentados criam de si mesmos e para si mesmos (como a velhinha, a histérica e o enrustido de, respectivamente, Formigas de apartamento, O embrulho da carne e Um erro de cálculo).

Você não se compraz meramente em mimetizar realidades humanas terríveis, muito menos escolhe caminhos triviais, como o cinismo omisso, a complacência sentimental ou o denuncismo simplista, muito comuns na produção literária atual no Brasil, com sua escatologia urbana adolescente. Talvez você seja hoje um dos poucos escritores de fato adultos da literatura brasileira, e isso nada tem a ver com ser pretensamente “sério”, mas com encarar o que a literatura oferece e os limites que ela impõe, o que inclui encarar também o que nós, brasileiros, temos de mais infantil. Você mesmo não passa de um menino desamparado, e saber disso traz uma lucidez aguda, a generosidade não complacente de um olhar amadurecido tanto pela dor quanto pelo prazer — dupla pedagogia vivida intensamente, muitas vezes de modo fatal, por sua geração, a dos anos 60. Por tudo isso, a morte em seu livro é tão perturbadora (sobretudo porque ela é, em mais de um sentido, sua). Focalizada segundo um prisma desafiador, ela se revela como pulsação vital.

Na segunda parte de O vôo da madrugada, intitulada O gorila (por sua vez também dividida em três partes), ressurge o Sérgio Sant’Anna galhofeiro, impiedosamente sarcástico, desbocadíssimo, eletrizado como em Amazona, de 1986 (e um pouco como em Confissões de Ralfo, de 1975). Nessa outra linhagem do seu trabalho, trata-se de fazer girar velozmente as vozes e o caleidoscópio das taras e das inúmeras pequenas e grandes iniqüidades que infestam nosso quotidiano mesquinho. Sim, há uma espécie de crítica cultural esboçada ali. Gosto especialmente das partes 1, Alguns telefonemas (quando esse literal circo de vozes, trapaças e desejos se arma), e 3, Drama e melodrama (quando a busca de uma verdade só gera mais e mais enganos, perversamente adotados como verdades, pouco importam as conseqüências). Na parte 1, o Gorila é uma encenação, na 3, um enigma insolúvel. Na parte 2, que você intitula, provocativamente, de A xoxota sugadora, vejo problemas que tiram a força do conjunto. A personagem que se auto-intitula “O Gorila” é apresentada diretamente, segundo uma ótica quase piedosa. Além disso, o texto envereda por uma longa fala — cujo tópico da xoxota misticamente fenomenal não chega a ganhar função na narrativa — de um representante (típico porque agregado) de certa “elite nacional” presunçosa e cínica. Parece que voltamos aos anos Collor, e a volta, depois de todo o preço que estamos pagando com nosso próprio couro, não tem a menor graça. Assim, na parte 2, o “Gorila” parece a alegoria de uma inocência romântica (a depravação ingênua) em contraponto à mais alta sordidez (a efetiva depravação). Penso que esse binarismo, associado à explicitação da identidade do “Gorila”, compromete a riqueza do painel, dessa panorâmica da mediania afetivo-erótico-existencial brasileira que o texto sugere.

Finalmente, e pela primeira vez de modo tão nítido, já que adensada através de uma trinca de textos magníficos, a faceta do ensaísta vem à tona, na última seção de O vôo, nos Três textos do olhar. Não deixa de ser significativo que é justamente quando você flerta com outro universo de signos ¾ no caso, as artes visuais e plásticas, que já haviam sido exploradas em especial no romance Um crime delicado, de 1997 ¾ que esse viés, propriamente escritural, pois dependente sobremaneira do manuseio preciso da palavra, aflora. É muito curioso, e em certo sentido assustador, que, apesar de toda a história da arte moderna, não exista, no Brasil, uma tradição consolidada de experiências com mistura de gêneros. No que diz respeito à prosa, então, nem se fala: a tradição realista (com uma ou outra pitada de invenção) segue onipresente. Você é uma das honrosas exceções, sobretudo se se pensa no vastíssimo campo aberto pela aproximação entre narrativa e ensaio. Seus “textos do olhar” são simplesmente irretocáveis. Neles fica patente que o escritor é, sobretudo, um agente do pensamento, e nesse sentido ele não se distingue do filósofo ou do cientista (ou de outros artistas). Sim, o material da literatura é basicamente a especulação; claro que, como seus textos comprovam, daquela que se volta para a apreensão e a expressão sensoriais. Assim, o efeito poético é garantido, e a argúcia intelectual reveste-se de um poder de encantamento irresistível. São textos apaixonadíssimos, inclusive pelas próprias possibilidades da manufatura verbal, que vai se tecendo com um grau de refinamento e elegância impressionante mesmo numa obra como a sua, usualmente marcada por tais atributos. E aqui não posso deixar de mencionar como seu desenho de mulher é especial, sem qualquer resquício da misoginia também comum na literatura brasileira. Suas mulheres são autônomas, sábias, de um erotismo que não se dissocia da inteligência e da mais comum humanidade. Não é por acaso que a protagonista de A figurante (belo paradoxo, não?), ciente de que em geral são os homens que devassam as mulheres, transgride sua condição de retratada para devassar, com uma volúpia que não se interessa por preferências sexuais, o homem que a retrataria. E o escritor, reverentemente, eterniza esse instante.

Bom, Sérgio, então é isso. O vôo pode ser lido como síntese de sua obra, algo que só observo, com intensidade semelhante, no romance-teatro A tragédia brasileira, de 1987 (que, sem dúvida nenhuma, merece reedição caprichada), fonte da qual emanam suas obsessões e também as estratégias literárias que você adotou e vem desenvolvendo de maneira tão conseqüente e original. Ler seu Vôo é uma experiência alentadora. O livro reativa a crença nas potencialidades da literatura. Demonstra que é viável produzir retratos complexos do humano, a partir de uma aposta incondicional no que ele pode ter de melhor: inteligência, senso crítico, generosidade, capacidade de produzir a partir da constatação de seus limites. Enfim, seu livro é fundamental. Através dele sinto reafirmada, mais uma vez e com plena força, a grande admiração que nutro por você.

Um grande abraço.

O vôo da madrugada
Sérgio Sant’Anna
Companhia das Letras
247 págs.
Luis Alberto Brandão

É professor da Faculdade de Letras da UFMG. Autor de Um olho de vidro: a narrativa de Sérgio Sant’Anna (2000), entre outros.

Rascunho