Para quem conhece minimamente de perto o universo das letras, o nome de Segismundo Spina vem fácil à mente como grande estudioso da língua e da literatura portuguesa, visto que produziu importantes trabalhos relacionados ao medievalismo lusitano, a Os lusíadas e à própria história do idioma (além dos estudos sobre poesia clássica e sobre Gregório de Matos).
Por isso é motivo de surpresa a aparição de Poesias, livro com o qual o professor emérito da USP mostra-se poeta em 31 poemas escritos ao longo de sua trajetória, que ele divide em dois períodos: pré-acadêmico e acadêmico, tomando como referencial o seu ingresso na universidade, na década de 1940.
Curiosamente, o livro de Spina não exibe a marca comum das obras literárias produzidas por professores universitários: a consciência teórica voltada para a experimentação da linguagem poética. Não se entenda com isso que Poesias tem problemas de construção, pois em os todos os poemas vê-se um denso apuro formal.
Apesar do veio altamente técnico, é como um volume de veleidades literárias, pescadas por Spina ao longo do tempo e publicadas somente agora (quando ele já é um octogenário), que o livro será melhor compreendido e apreciado. Justamente a despretensão, que por um lado pode fazer recair sobre ele certo olhar desdenhoso, será o fator que dá a ele maior interesse, pois Segismundo não escreve para acadêmicos. Ele escreve para leitores de poesia em geral, e, considerando o contexto artístico de hoje, isso é algo importante e original, como se vê em Introdução: “Vá lendo os cantos meus; porém, digo em verdade,/ Não hesito em dizer que o meu leitor não há-de/ Nos meus versos buscar alguma coisa rica”.
E a partir daí desfilam textos impregnados por um sentimentalismo muito próprio dos românticos, achando grande ressonância com os temas poéticos mais prezados pelo pensamento brasileiro comum: a família, a saudade, a religião e o amor: “Eu não posso entender, juro por Deus!/ Aqueles lábios que eu beijava tanto,/ Aqueles olhos que eu beijava em pranto,/ Não me pertencem mais, já não são meus”, diz Rasgue os meus versos…
Noutro lance, a vocação romântica de Segismundo Spina é bem mais patente, e busca no derramamento de adjetivos a tradução dos motivos que levam as vistas ao arrebatamento pelo espetáculo da natureza, como exemplifica O amanhecer de um crepúsculo:
Estava linda a tarde, o sol caía
Entre as calvas encostas da colina;
Como as faces de pálida menina
A lua do outro lado aparecia.
A natureza, em paz, nem se movia
Como tão bela tarde florentina;
Pouco a pouco na tela branca e fina
O lápis de um pintor reproduzia.
O quadro terminou, quando na altura
Garboso e fulgurante o sol se erguia,
Atrás deixando a sua linda irmã;
E mais bela porém foi a pintura:
Tão perfeita ficou, que parecia
Um crepúsculo dentro da manhã.
Entre as ironias, a citação a um ex-governador de São Paulo ― o polêmico Paulo Maluf ―, um debate de provocações (todas em forma de soneto) com uma companheira da faculdade, louvações ao pai e à mãe e homenagens a pessoas da família afetiva do autor, salta-nos um poema distinto, que aborda com brilho a treva da injusta distribuição de renda: trata-se de Nos bastidores da democracia.
Ela é grande, soberba, indefinida,
É exuberância, é prodigalidade;
Nela fulge o faro, da cristandade,
Como se fora a Terra Prometida.
Sangra porém no meio uma ferida:
Se fulge a pompa da prosperidade,
Para cada palácio da cidade
― Mil crianças sem pão e sem guarida.
Uns ― indigentes, outros ― plutocratas;
Ricos, plebeus, escravos, autocratas,
Todos são de uma única matéria;
Como é triste, meu Deus, esses contrários,
Tanto dinheiro e tantos argentários
E famílias morrendo na miséria.
Complementa o livro um breve estudo do autor sobre um interessante poema de Gregório de Matos, intitulado O Marinícolas, prova de que Spina não objetivou com essa publicação o ingresso vigoroso em nossa história poética. Mas a obra realiza um feito admirável na medida em que busca seu lugar cativo não necessariamente nos seminários acadêmicos, e sim na sensibilidade do leitor.