Volubilis

Você conhece Volubilis?
01/02/2003

Você conhece Volubilis?

Volubilis é o maior conjunto de ruínas romanas do Marrocos, visitado por turistas que não formam propriamente uma multidão. Quem visita as cidades imperiais, as kasbahs fortificadas — altas e construídas de argila vermelha — das rotas turísticas do interior do país, não faz muita questão de ver os restos de um povoado remoto que Roma levantou no fundo do Maghreb, entre poeira e pó, areia e vento soprando onde faltam as colunas, as paredes, o vazio do céu cegando a vista quando você ergue a cabeça, cansado, para se recostar nas pedras quentes que parecem perguntar aos que se aventuram em Volubilis: “o que querem aqui?”

No nosso caso, tínhamos ido fazer fotos de moda, com toda uma tropa de modelos femininos, um fotógrafo e a sua assistente, o pessoal de apoio, da maquilagem e da produção, motoristas e um intérprete local, que falava bem o espanhol. Voamos do Rio para Lisboa — a fim de fazer algumas fotos de apoio, do Portugal mouro, ainda sem as modelos (talvez não servissem para nada). De lá fomos direto para Casablanca, que é uma cidade moderna, com o bazar transformado numa vulgaridade retocada para turistas que viram o filme rodado em estúdio. De Casablanca, seguimos por terra, fizemos uma viagem longa demais e descobrimos que Volubilis não estava situada próxima do nosso hotel, logo na esquina. O deserto povoado romano surgia quase do nada, numa campina dos domínios da dinastia alauíta. No século dezoito, Moulay Ismail erguera ali a sua capital cercada de 25 quilômetros de muralhas, com palácios e mesquitas feitos das pedras antigas e das novas lajes trazidas para as construções do sultão. Lemos isso nos folhetos que ajudavam a abanar as caras afogueadas de toda a equipe, e achamos que Moulay fora um louco capaz não só de matar mais de 35 mil pessoas ao longo da vida, mas de ir se refugiar tão longe, no meio do nada que já era o nada para os romanos, verde nos meses invernais (de solidão aumentada pela suspensão das caravanas). Os romanos haviam se espalhado mais do que poderia imaginar um grupo cansado quase imediatamente ao chegar às ruínas que o nome Volubilis evocava como uma coisa suave… mas cuja realidade que era rasa e inóspita: uma antiga avenida terminando num Arco de vitória contra a lonjura, sendo o resto as pedras caídas de edifícios menores que não teriam registro (por desimportantes demais?) no inventário das províncias esquecidas dos imperadores…

Então, no segundo dia de trabalho, Bianca — a jovem modelo de Santa Catarina — desapareceu atrás daquele Arco, em plena sessão de fotos do outro lado das ruínas onde outras modelos faziam poses em roupas de banho… e o trabalho todo desabou como o império do Moulay bicha (garantiam todas as bichas da equipe).

Bianca era a mais afogueada, a mais reclamona, a mais impaciente das meninas que nunca são pacientes com poeira, calor e longas sessões de fotos. Uma loura de um metro e oitenta e quatro, magra demais a meu juízo. Alguns traços de Xuxa — que ela procurava acentuar —, mais nova do que aparentava nos seus 22 anos mal alimentados na profissão que ela talvez fosse abandonar mais cedo do que as outras (sempre a meu juízo).

Escolho muitas dessas moças para cada tipo — ou tema — de coleções que as requisitam de acordo com o tipo físico, o talento, a aptidão para o trabalho que não tem nada de fácil. Sou acostumado com os seus nervosismos, as suas crises, sei ver quando uma delas não nasceu talhada para chegar ao topo, disposta a pagar o preço exigido aos que triunfam por enfrentar os desafios com as garras afiadas, a determinação crua da ambição. Parecem títulos de novelas de TV, mas é a verdade: nenhuma modelo vence, na profissão, se não for uma matadora ou então um ser de beleza rara ou muito especial.

Bianca praticamente reclamou o tempo todo, desde que pusera o pé magro nas terras africanas (onde um salto alto quebrado, logo na sua primeira foto, levou-a a uma crise de choro).

Agora, essas coisas voltam, parecem mais significativas, retrospectivamente, quando somos obrigados a falar para encher o tempo e diminuir a tensão, à espera da polícia marroquina. Depois de todas as nossas buscas infrutíferas no descampado — as ruínas se sobressaindo — e nas vilas vizinhas (onde ninguém vira uma estrangeira perdida), ficamos um tempo atarantados, no hotel, como se fosse mudar as coisas porque estivéssemos sentados, aguardando alguma notícia de Bianca, que não vinha. Revistamos as coisas dela, sem obter senão a tristeza do manuseio de roupas e pertences de uma modelo que parecia mais linda no limbo do poço do tempo onde sumira do espaço que a sua bagagem ainda ocupava, como se fosse o espólio de uma pobre princesa encantada ou morta, algo como a triste Bela Adormecida na sua pedra de vidro, como a cabeça de porcelana num acrílico que era a mascote de Karen. Por fim, a polícia entrou em cena, assumindo o caso da modelo brasileira desaparecida com um copo plástico de água na mão (a única coisa que Bianca levou para o Arco triunfal maciço que se vê em todos os postais turísticos de Volubilis).

“A cidade dos romanos” só rende boas fotografias em parcos ângulos que incluem as duas colunas mais altas, ainda de pé, e o tal Arco onde ficaram todas as roupas das demais modelos fotografando quando ela foi para lá. No Arco, não estava ninguém àquela altura (Bianca fora a primeira a posar), ninguém do apoio técnico que sempre orbita em torno das peças requisitadas por qualquer motivo. Acontece de tudo — e a toda hora. Ali em Volubilis, no primeiro dia, sandálias haviam quebrado tiras, sedas haviam se esgarçado contra as asperezas do barro de velhíssimos tijolos onde as meninas encostavam as bundas magras de Biancas louras e morenas fazendo caras e bocas, estirando pernas e fletindo os pulsos acima de chapelões brancos que eram para se usar só nas fotos, assim como as pulseiras e os anéis marcados, com adesivos, para certas imagens, previstas, do tema “Oriente Misterioso” adejando como um besouro raiado entre as centenas de rolos de filme que deveríamos imprimir nas máquinas, sob a luz dos rebatedores, caso Bianca não houvesse desaparecido no segundo dia, de repente, sumindo da face da terra como Moulay havia sumido (não tão de repente, mas sumido do mesmo modo, no tempo e no espaço que devora as dinastias, as modas e mesmo a face da Esfinge que pergunta: “para onde foram todos?”).

Quando paramos de buscar no nada, como malucos, e a polícia marroquina assumiu — uma polícia perigosa, nos avisaram — apareceu um tal tenente Hassam (e o seu assistente), no hotel cheio de choros das meninas e do trabalho parado.

O tenente Hassam falava a segunda língua (às vezes, a primeira) de todo marroquino educado — o francês das kasbahs — que só eu e o fotógrafo falávamos, porém o diretor de produção, que eu era, se tornava a pessoa automaticamente responsável pela equipe e pelo bom andamento das coisas, de modo que o tenente Hassam veio para o meu apartamento num hotel menos luxuoso do que se esperávamos. E a primeira coisa que eu disse — “uma moça, uma mulher não desaparece assim no ar” —, ele corrigiu: “num arco”.

Depois, começou por explicar que, no Marrocos, pessoas desapareciam sempre que se esperava que não fossem desaparecer etc., e que isso já lhe trouxera muito trabalho e mais ainda ao seu velho pai, que também fora da polícia e agora estava aposentado, dedicando-se ao comércio de tapetes (e estendeu-me um cartão do negócio do Hassam sênior).

“A moça é branca?”

“É, sim. O senhor viu as fotos.”

“Ela estava com os véus de mentira.”

“De mentira?”

“Não era uma muçulmana, pois não?”

Era?”

“Está desaparecida.”

“Mas não está morta.”

“Talvez não esteja.”

“Por que o senhor diz isso?”

“O quê?”

“Que ela talvez esteja… morta.”

“Eu não disse isso.”

“O que é que o senhor acha?”

“O que eu acho? Que ela desapareceu, senhor.”

“Sim, claro. Mas onde pode estar, no seu país?”

“Não sei. Não posso saber, nem adivinhar nada.”

“Mas acaba de dizer que outras moças…”

“Mulheres desaparecem em toda parte. Não só no Marrocos.”

“Mas, as outras… as que já desapareceram aqui, elas foram encontradas?”

“Algumas, sim.”

“Eram jovens?”

“Nem todas. Mas sou eu a fazer perguntas, por ora.

“Desculpe, tenente.”

“Ela se envolveu com alguém aqui?”

“Claro que não. Não teve nem tempo.”

“Veio desacompanhda?”

“Veio com a gente, com todo mundo.”

“Mas trouxe parente ou namorado, com ela?”

“É claro que não. Veio a trabalho.”

“Seu trabalho terminaria ontem?”

“Não.”

“E quando terminaria?”

“Bem, se tudo corresse bem, no domingo o trabalho estaria terminado.”

“E vai prosseguir, com as outras moças?”

“No momento, eu aguardo instruções do Brasil. E a ajuda de senhor e da polícia do Marrocos. Queremos prosseguir o trabalho com Bianca. As moças estão muito abaladas.”

“E como era a moça?”

“Como era?”

“Sim. O tipo de pessoa que ela era. Calma? Nervosa?”

Era. Era difícil falar de Bianca no passado que parecia afastá-la de nós, a cada conjugação dos verbos. Eu poderia descrever Bianca como “nervosa”? Se o fizesse, passaria a idéia — errada — de alguma moça nervosa sempre, e ela não era nervosa o tempo todo, ou mais do que Giselle e Karen, Sophia, Elisa… Todas eram nervosas em algum momento era mais — e Bianca podia estar muito calma, às vezes. Mais calma até do que as outras que eram mais calmas durante mais tempo, se é que me entendem. O tenente marroquino com certeza não entenderia. Porém, não seria capaz de lhe responder que Bianca era um moça “calma”, serena, isso não corresponderia à sua imagem definitiva nas nossas cabeças, inquieta como se mostrara num cenário como aquele do Marrocos…

Então, percebei que nada sabia dela, que a vira até nua, trocando de roupa com naturalidade sem nunca lhe ter perguntado alguma coisa mais pessoal, e não sabia se tinha mãe e pai vivos, em Santa Catarina, não sabia nada senão o seu nome verdadeiro e as suas medidas mantidas sobre estrita vigilância.

“Era… uma boa moça” — respondi, afinal, como um idiota responderia numa peça policial de segunda, encenada por amadores. — “Todos gostávamos dela”.

“Agora vamos repassar o que aconteceu.”

Olhei para aquele homem bem vestido, no seu uniforme cáqui ainda pouco amassado àquela hora da manhã:

“Não há o que repassar.”

“Sempre há. Diga-me: como ela desapareceu?”

“Bianca atravessou a ruína, em direção do Arco, e desapareceu.”

“Quem viu a senhorita Bianca pela última vez?”

“Tenente… Ninguém estava prestando atenção particular no que Bianca fazia, num intervalo de sessão de fotos. Ela já havia posado logo ao chegar, fora a primeira, vestindo os modelos de verão esportivos. Depois, botou de novo a sua roupa, andou por aqui e ali, todo mundo trabalhando nas outras peças… depois ela atravessou as ruínas, foi talvez para trás do Arco e ninguém mais a viu. Por isso que eu disse: não há o que repassar…”

“O senhor acabou de fazê-lo. Merci. Irei repassar com todos os outros, depois. O senhor poderá servir como intérprete com os que não falem francês. Se não se incomoda.”

“Claro que não. Só eu e Leon falamos francês.”

“O seu francês é muito bom.”

“Obrigado. O senhor quer beber alguma coisa?” — eu acabava de me lembrar que ele era maometano (e também de que os maometanos não eram “maometanos”, mas muçulmanos). — “Água, café?”

Era o que sempre se perguntava nas peças policiais de segunda, terceira e quarta que eu havia visto. E ele respondeu apenas balançando a cabeça, enquanto voltava atrás umas folhas, conferindo o seu caderninho de tenente de peça policial de quinta. Esperei. Tudo que havia para fazer era esperar, naquele hotel a respeito do qual eu reclamaria, quando estivesse de volta ao Brasil (com Bianca?, sem Bianca?).

“Vejo que o senhor não me respondeu se voltará a Volubilis. Com as outras modelos.”

“Como?”

“Voltará ao trabalho nas ruínas?”

“Ah… há algum motivo para essa sua pergunta?”

“É só uma pergunta. Voltará a fazer fotos lá?”

“Bem, não terminamos de obter as imagens que queríamos, em Volubilis. E há um roteiro…”

“Sabe que não é um bom lugar?”

“Como assim?”

“Conhece a sua história?”

“De Volubilis?”

“Da região.”

“Li uns folhetos sobre as ruínas romanas, o sultão Moulay…”

“O senhor parece não saber muito sobre Volubilis e o resto.”

“E deveria? Viemos fazer umas fotos de moda, nas ruínas de uma cidade romana do Marrocos. Ninguém esperava ver uma das moças desaparecidas….”

“Quem escolheu o lugar para fazer as fotos?”

“Tenente, não me diga que acha estranho fazer fotos num ambiente como aquele, com o clima de mistério que têm todas as ruínas…”

“Não, não acho estranho. Porém acho imprudente, se me permite dizer.”

“Por quê?”

“Primeiro, é uma viagem muito longa, desde o seu país até umas ruínas perdidas no interior do meu país. Depois, o senhor sabe muito pouco sobre o Marrocos, pelo que vejo. Não há ruínas no Brasil?”

“O senhor me confunde. Parece que somos culpados por ter vindo divulgar o Marrocos, como pano de fundo de uma coleção de moda de inspiração oriental…”

“Os culpados ainda não se sabe quem são, meu caro senhor. Na minha aldeia, o vento levou uma criança, a semana passada.”

“O vento?”

“Um vento mau.”

“O senhor acredita nisso?”

“O senhor não?”

“É claro que não. O vento não pode levar ninguém…”

“Tem certeza?”

Ele sorria para mim. Tive até a impressão que piscava um olho, como que explicando alguma metáfora engraçada na qual não houvesse graça alguma, na verdade. Eu, pelo menos, não achei que aquilo fosse uma piada — nem sabia o que fosse. Não conhecia os marroquinos o bastante para saber porque um oficial de polícia fingia parecer acreditar num vento que rapta uma criança de aldeia. Imperturbável, ele prosseguiu com as perguntas sobre eventuais sinais de nascença de Bianca, se ela tomava remédios controlados e até se estava menstruada (uma das amigas de Bianca veio para informar que não, não estava).

O tenente Hassam seguiu perguntando e anotando num caderninho, um homem suave, com um bigode negro e alguns fios grisalhos já formando um começo de mecha no seu cabelo meio carapinha. O caderninho ficou cheio de coisas que Hassam, tenho certeza, já ouvira e conferira sobre Bianca. Gostava, aparentemente, de ouvir as coisas de novo. Não sei se satisfeito, despediu-se com um aperto de mão firme (embora de uma mão suada, desagradavelmente).

Ficamos no Marrocos mais três dias — e deixamos o país com Bianca desaparecida (como até hoje). O que mais se poderia fazer? Havia se tornado até desagradável conversar sobre aquilo. Uma das meninas chorava o tempo todo, outra sonhava com Bianca presa num caixão de vidro, viva e gesticulando dentro do cofre transparente, que não tinha tampa. Sophia acordava gritando, e todo mundo já estava começando a se alterar, por efeito do absurdo que vivíamos: uma pessoa sumida (realmente “com o vento”), uma das nossas modelos mais bonitas, entrando sob a sombra de um arco romano e não sendo mais vista por ninguém, em lugar algum que se saiba (tivemos o cuidado de investigar até em Santa Catarina, pois Bianca podia ter caminhado até o edifício ainda de pé — era um bonito arco, de um só portal — e seguido pela campina (sem ninguém ver?) e chegado ao Brasil, meio sonâmbula (sem dinheiro, sem passaporte?)… Podia? Não, não poderia. De qualquer modo, investigamos tudo, mesmo o absurdo. Só não investigamos o maléfico “vento” do tenente Hassam, piadístico ou pio.

O trabalho em Volubilis foi terminado por outra equipe, com os custos bastante aumentados, uma vez que as modelos amiga de Bianca se recusaram a voltar às ruínas sem culpa, que as meninas passaram a “odiar” como se uma odeia a pedra onde se quebrou o pé, numa topada.

Com o tempo, a jovem modelo desaparecida sumiu também do noticiário — e eu não arrisco qualquer tipo de explicação sobre o ocorrido, não escrevi isto para demonstrar nada nem chegar à conclusão alguma sobre cidades romanas, Bianca, o vento marroquino, a moda de abduções, verão, outono, inverno.

Foi isso o que aconteceu —ou foi isso o que não aconteceu, de certo modo: Bianca, coitada, nunca voltou para casa.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho