Viver para contar

Em "Contar tudo", de Jeremías Gamboa, acompanhamos a vida de um escritor-personagem em busca de sua própria voz
Jeremías Gamboa, autor de “Contar tudo”
04/02/2016

Como começar a contar uma história? De onde partir? São essas as perguntas que geralmente inquietam quem se aventura diante de uma página em branco. A angústia dos escritores na tentativa de descobrir (e tentar domar) seu próprio processo criativo é tema recorrente na literatura. O escritor-personagem, que revela de forma apaixonada o que sente ao contar uma história, e quais caminhos e estratégias usa para escrever, é aquele que também contribui para alimentar certa aura de mistério que rodeia os autores. Afinal, o que é preciso fazer para escrever? Há quem diga que só alguém com uma vida cheia de aventuras ou tragédias seria capaz de narrar as melhores histórias. Pobres daqueles de vida comum, de origem humilde, cujas vidas aparentemente não são interessantes. Mas as vidas e os dilemas comuns não seriam também matéria rica e frutífera para a literatura? Assim como Jeremías Gamboa, acredito que sim.

Os questionamentos sobre a escrita motivam toda a narrativa do escritor peruano Jeremías Gamboa no romance Contar tudo. A necessidade quase vital de escrever, consciente de que possui uma história “verdadeira” para contar, mas não encontra os caminhos certos para fazê-lo, é o que alimenta a vida desse escritor-personagem em formação na busca por encontrar a sua própria forma de escrever. Pode-se dizer, citando o romance, que se trata da história de “um homem que não tem nada, exceto uma história que lhe pertence e a vontade de contar tudo. De uma vez por todas”.

Mesmo ao tratar das angústias de um jovem peruano recém-saído da faculdade de jornalismo em busca da própria voz para o livro que tanto sonha escrever, Contar tudo desconstrói a aura inacessível que muitas vezes paira sobre o ato da escrita, ou pelo menos a questiona. Ao narrar o processo de formação do protagonista, Gabriel Lisboa, um rapaz pobre que vive em Lima longe dos pais e conta com a ajuda dos tios para custear as suas despesas, nos deparamos com uma perspectiva mais humana diante do sonho de se tornar um escritor. Afinal, estamos perante um jovem comum, de origem humilde, e acompanhamos todos os percalços, assim como as oportunidades, que ele encontra e que contribuem para o seu amadurecimento. São as histórias da vida de Gabriel que se transformam na matéria do romance que ele acaba por escrever e que está diante de nós.

A vida na universidade
A insegurança de Gabriel Lisboa é fruto, em parte, de sua condição social, tão diferente dos demais alunos ricos que frequentam a Universidade de Lima, algo que alimenta a sua sensação de não pertencimento. Mas, por sua dedicação e esforço para manter as excelentes notas, Gabriel consegue uma bolsa de estudos que lhe possibilita concluir os estudos, mesmo trabalhando nas férias para ajudar os tios com as despesas da casa. A possibilidade de estágio em um dos principais jornais de Lima, ainda que sem nenhuma remuneração inicial, descortina um novo universo cultural para o jovem estudante. Na primeira parte do romance, somos apresentados ao dia a dia da redação de um jornal, com todas as suas dificuldades e encantos. É com o jornalismo que Gabriel Lisboa começa a ganhar confiança para escrever e também para viver algumas experiências na companhia de seus novos amigos, poetas e universitários que lhe apresentam o cenário cultural, musical, literário e artístico de Lima.

Com o tempo, no entanto, Gabriel começa a perceber que a rotina intensa da redação do jornal, espaço que aos poucos foi conquistando com talento, também lhe impede de se dedicar ao livro que sempre sonhou escrever, mesmo sem saber por onde começar. Os colegas mais velhos da redação partilham com ele o sonho frustrado que carregam de não terem escrito os livros que desejavam quando ainda eram jovens. Alguns deles serão fundamentais na formação de Gabriel, principalmente por incentivá-lo a acreditar e a afirmar que quer ser um escritor.

Entre amigos
A juventude também é o tema do romance, pois, para além das angústias pela escrita, há a angústia e as inseguranças dos jovens que estão se descobrindo e tentando se encontrar e se afirmar diante do mundo. O grupo de quatro amigos do qual Gabriel faz parte encontra nessa amizade a força e o apoio necessários para atravessar os problemas enfrentados pelos jovens da geração dos anos 1980. Reunindo-se frequentemente nos “conciliábulos”, eles compartilham seus escritos, seus primeiros amores e separações, suas inseguranças e medos diante do futuro que, entre os vinte e trinta anos, para muitos ainda parece incerto. Nesse sentido, o romance de Gamboa pode ser lido como uma ode à amizade que atravessa a juventude e se mantém, apesar do tempo, tornando-se um elemento constitutivo do que somos, do que seremos. É com nostalgia e certa dose de melancolia que toda uma geração talvez se identifique com as histórias desses quatro amigos e da cumplicidade, até mesmo nas loucuras, que compartilham entre si.

Após uma fase intensa na qual vivencia sua juventude em Lima ao lado dos amigos, Gabriel decide largar o trabalho no jornal e dedicar todo o seu tempo à escrita. Mas isso também não tornará o processo mais fácil. Entre a descoberta do primeiro amor e a primeira decepção amorosa, diversos outros sentimentos e conflitos perpassam a vida do protagonista, que não consegue escrever nada e se mantém angustiado diante da página em branco, a ponto de se questionar se pode mesmo ser escritor.

Com o tempo e muitas histórias depois, Gabriel retorna ao espaço da universidade como auxiliar de um professor de escrita criativa que lhe apresenta o universo acadêmico, agora sob uma nova perspectiva. É então que finalmente as palavras certas de apoio encontram o escritor e são um alento. Com isso, ele aceita as suas histórias como são, abandona o medo e os julgamentos, diminui a ansiedade e a cobrança que alimentava e o impediam de escrever e se permite acreditar apenas no sentimento legítimo que trazia dentro de si, algo que se mostra libertador.

Sinto que o livro que eu queria escrever não é este. Este foi como uma resposta, uma reação inocente a coisas que me aconteceram na vida e para as quais não tenho outra resposta, exceto escrever. Sinto que o livro que eu escrever depois partirá como o primeiro, que eu decidirei o que quero escrever, e sinto que os anos, a experiência, certas coisas que vivi me permitirão finalmente fazê-lo sob outra atitude, sob uma certa calma. É meio terrível, sim, mas ao mesmo tempo há algo maneiro, algo desafiador, em estar metido nisso há tantos anos e que até agora nada tenha saído bem, não acha?

Entre fronteiras
O grande apelo do romance, contudo, parece ser o pacto ambíguo entre a ficção e a autobiografia que ele por vezes sugere. Certa confusão entre o eu ficcional e o biográfico, isto é, entre o personagem e o autor, que evidencia que o tema geral é o escritor-personagem, aquele que se debruça não sobre as questões políticas e filosóficas do mundo, mas sobre a literatura e o próprio fazer literário. Nesse sentido, Contar tudo tem como elemento central o narrador, Gabriel Lisboa (nome tão sonoro quanto o de Jeremías Gamboa), já que é através do seu ponto de vista que acompanhamos os anos de vida que ele descreve, desde o ingresso na Universidade, o início do trabalho jornalístico, a luta para encontrar o fio que o conduzirá às linhas dignas de se tornarem o livro que ele tanto almeja. Em suma, é a relação do escritor-personagem com o mundo, ainda que seja uma relação um tanto egocêntrica por se tratar apenas de seu olhar sobre o mundo. Além disso, a sua convivência com os três amigos traz para o texto a nostalgia de todos aqueles que já passaram pelos seus trinta anos, e tudo isso acontece tendo como trilha sonora as músicas de Lou Reed e Caetano Veloso.

Contar tudo
Jeremías Gamboa
Trad.: Joana Angélica d’Ávida Melo
Alfaguara
536 págs.
Jeremías Gamboa
Nasceu no Peru, em 1975. É formado em Comunicação pela Universidade de Lima e mestre em Literatura Hispano-americana pela Universidade do Colorado. É jornalista, professor e escritor. Em 2007, lançou o livro de contos Punto de fuga e decidiu se dedicar totalmente à literatura. Contar tudo é seu primeiro romance.
Paula Dutra

É professora, tradutora e doutora em Literatura pela UnB.

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