Viver o luto e encorajar a vida

No romance de estreia "Apague a luz se for chorar", Fabiane Guimarães dialoga com uma longa tradição literária que trata da morte e doença
Fabiane Guimarães, autora de “Apague a luz se for chorar”
01/08/2021

No dia seguinte à morte de sua mãe, o semiólogo Roland Barthes (1915-1980) começou a fazer anotações em fichas postumamente organizadas em ordem cronológica e publicadas com o título Diário de luto. Os breves apontamentos, feitos às vezes a lápis, em folhas de papel standart cortadas em quatro partes, acompanham Barthes ao mesmo passo em que ele escreve algumas das obras mais importantes de sua trajetória — O Neutro, A câmara clara e o curso A preparação do romance. Poderia citar outras produções do período, mas o que quero dizer é que as anotações de Diário de luto fazem sombra sobre os textos de Barthes dedicados a pensar a engenharia da escritura ou as possibilidades da representação disparadas pelos signos escrito ou visual. Diário de luto, espécie de desabafo e confissão, acaba por nos colocar diante do teórico desnudo em sua própria inquietação sobre nossa capacidade de expressar uma experiência tão particular, a vivência da morte de alguém que amamos.

O romance de estreia de Fabiane Guimarães, Apague a luz se for chorar, nos apresenta uma das faces do dilema barthesiano à qual podemos acrescentar outras, a possibilidade de representação literária. Em uma segunda chave de leitura, podemos pensar também sobre o papel da crítica literária diante de livros cuja matéria de trabalho artístico é a morte, quando a experiência mais próxima que temos acesso é o enlutamento — ou seja, como escrever e como falar sobre quem escreve a respeito de uma experiência que se conhece apenas a partir de uma dobradura. Uma terceira e última via, não menos importante no momento histórico que vivemos, é o quanto somos capazes de assimilar dessa narrativa no ato de leitura, para além da temática da morte, no momento em que todos parecemos habitar um cemitério comunitário.

Aparências enganam
Narrado em capítulos alternados, Apague a luz se for chorar projeta as vozes de dois protagonistas, Cecília e João, e de mais outros personagens que dão relevo à trama, como a vizinha dos pais de Cecília, Luzia, o meio-irmão da protagonista, Caio, e mais adiante os pais de Cecília, Raul e Margarete. A morte faz sombra sobre cada uma das vidas que se cruzam a partir de escolhas tomadas pelas personagens, mas não limita os temas explorados pela escritora, envelhecimento, sexualidade e paternidade, para citar alguns.

Cecília é a filha adulta que retorna a uma pequena cidade no interior de Goiás após a morte concomitante dos pais. A protagonista transfere a dor do luto, alguma dose de culpa por não ter acompanhado mais os pais em vida, para a busca desenfreada em descobrir como eles de fato morreram. Ela não acredita na coincidência de morte conjunta e desenvolve um enredo paralelo, por suspeitar que o casal pode ter sido assassinado.

Em outra ponta, o veterinário João cria sozinho o filho Adam, com paralisia cerebral, enquanto trabalha em um canil, organizando uma feirinha de adoção de animais sadios e sacrificando bichos escanteados de Brasília. Ele também fatura com uma outra forma de ganhar dinheiro, neste caso indevidamente, sequestrando cachorros nas quadras da capital e simulando ser o bom-moço que os encontra e quase rejeita as recompensas que seus donos dispensam a quem acha os bichos de estimação.

João divide-se, portanto, entre o filho, um corpo com o qual ele procura se conectar apesar das dificuldades, e a morte dos animais por ele sacrificados. Além de ser o personagem cujo enredo é um dos mais imagéticos, é também quem carrega mais densidade psicológica na trama, o tipo que se espera que reapareça logo na alternância dos capítulos.

Do lugar em que nos posicionamos, parece impossível não aludir o luto coletivo que vivemos desde março de 2020, mas que parece em escalada conforme os números de mortos por Covid-19 ultrapassam os 500 mil e seguem em curso livre, com a vacinação em câmera lenta. Para alívio do leitor, que procura na literatura um escape, ao mesmo tempo em que o contexto atual pode contaminar a leitura do romance, em um movimento reverso, o livro pode nos dar alguma matéria para criarmos esperança, uma vez que os personagens acabam por encontrar a saída onde menos esperam.

Não que a literatura resolva qualquer coisa, nem se pode esperar algo assim dela, mas ela pode sim alimentar nossa imaginação quando mais precisamos dessa faculdade humana, quando mais necessitamos imaginar um mundo pós-pandemia no horizonte. Assim, os personagens de Fabiane Guimarães, ao encontrarem uma chance de recomeçar quando todo o percurso do romance indica o contrário, nos lembra do nosso próprio poder de imaginação do mundo que esperamos construir, seja este um mundo íntimo ou de grandes transformações que esperam muitas mãos para erguê-las. Nos dois casos, estamos implicados no problema.

Compreensão da morte
O romance também manuseia velhos ou já conhecidos elementos da narrativa. Destaco a personagem que viaja, regressa e, nesse retorno, precisa acomodar a arrogância de quem viu o mundo mais que os outros e agora está em uma situação de enfrentamento. É a narradora que passa a somar dois estados agora conhecidos, o que conheceu ao viajar (no caso, mudar de cidade) e o que nunca se moveu, o seu lugar de origem. Nesse ponto, a cidade escolhida pelos pais para envelhecer e morrer cumpre esse papel de lugar da tradição. Mas também, como acontece em muitas narrativas, a viagem empreendida por Cecília lhe dá elementos de diferenciação dos que ficam, mas não necessariamente essenciais para tratar do drama humano.

Assim, a busca pelo motivo da morte dos pais fala muito mais da dor da protagonista, sua posição de filha, de mulher que decide mudar de cidade após um fracasso amoroso e começar de novo, do que um desejo genuíno de reparação. Por vezes, a fala da personagem dá a ver sua própria dificuldade de lidar com aquela situação, textualmente emulando uma superficialidade, como uma tentativa de mostrar o desconforto de Cecília diante do luto dos pais. Um pouco como quando se tenta enganar o terapeuta correndo por fora do tema que seria central em uma sessão de terapia.

A filha temporã de certa maneira sempre esperou a morte dos pais mais velhos, e na hora em que isso acontece ela sente o baque como qualquer filho, porque não há treinamento para o enlutamento. “Todos calculam — eu o sinto — o grau de intensidade do luto. Mas é impossível (sinais irrisórios, contraditórios) medir quanto alguém está atingido”, sentencia Barthes. Portanto, cabe dizer que embora o tema da morte seja dos mais revisitados na literatura, é inesgotável também pela nossa própria procura ininterrupta de compreensão dessa experiência.

Não à toa, morte e doença marcam a cultura e a História ao longo do tempo. A ensaísta Susan Sontag, em Doença como metáfora (2007), afirma que, ao viver a doença, o que está em questão são os usos sociais atribuídos à enfermidade. A literatura como lugar de representação participa desse jogo, como podemos observar em romances e contos do século 19, como Armance (1827), de Stendhal, e os brasileiros Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, O alienista, de Machado de Assis (1882), e O cortiço (1890) e Casa de pensão (1890), de Aluísio Azevedo.

No século 20, merece menção Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, relançado recentemente pela Companhia das Letras. No século 21 já são bem mais de uma dúzia de romances que tematizam o assunto. Essa tendência tende a ser mais encorajada pela crise sanitária atual a ponto de já podemos falar em uma “literatura da pandemia”, como tem defendido o crítico Italo Moriconi. Não se trata de livros em que a pandemia é o assunto da narrativa, mas obras em que esta acaba por ser pano de fundo, se não da escritura, da recepção atual. Portanto, Apague a luz se for chorar, mesmo tendo sido escrito há alguns anos, provavelmente será lido, ao menos nessa largada, à luz do ano de seu lançamento, impulsionando reflexões sobre a morte e o luto e tendo o momento histórico como sombra.

Apague a luz se for chorar
Fabiane Guimarães
Alfaguara
176 págs.
Fabiane Guimarães
Nasceu no interior de Goiás, em 1991. Jornalista formada pela Universidade de Brasília, escreveu a novela seriada Pequenas esposas, publicada pela revista digital AzMina. Trabalha com comunicação e direitos humanos para o Fundo de População da ONU. Apague a luz se for chorar é seu primeiro romance.
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

Rascunho