Vive la différence!

Antologia de contos de escritoras brasileiras é um vasto mundo de intimismo, nostalgia, humor e explosão dos instintos
Márcia Lígia Guidin, organizadora de “Contos de escritoras brasileiras”
01/02/2004

Homens e mulheres não são apenas homens e mulheres, são na verdade criaturas de múltiplos sexos. Observe-os de perto e você enxergará isso com a clareza típica dos visionários. Essa divisão analógica revela que a outra, a obsoleta divisão binária dos sexos, já devia ter sido enterrada há séculos. Mas idéias e comportamentos, por mais ultrapassados que sejam, jamais desaparecem para sempre. Em vez disso, permanecem latentes, em sonolenta conspiração. A leve mudança na direção do vento traz de volta a peste que a razão, sempre menos inteligente do que costuma aparentar, julgava erradicada. A antologia Contos de escritoras brasileiras, organizada pelas pesquisadoras Lúcia Helena Vianna e Márcia Lígia Guidin, tem muitos atrativos: é quente, é rápida, é raivosa. Mas apresentar a ficção de prosadoras de muitos sexos é talvez o principal deles. Tempos atrás, após a cerimônia na igreja maridos e mulheres recém-casados corriam a ajustar suas diferenças. Hoje, assimiladas as revoluções femininas do século 20, mulheres e mulheres já fazem o mesmo, tanto que a tirada de Yves Montand (diz a lenda que o cantor e ator francês roubou o chiste de Anatole France) foi levemente modificada: “Mulheres e mulheres são diferentes. Viva a diferença!”

No detalhe da acrílica de Vânia Mignone, usada na capa da antologia, o vermelho predomina, e a associação com o sangue foi a primeira que me ocorreu. Com o sangue vertido pelas mulheres de todos os tempos, no sentido figurado e principalmente no sentido literal. Sob o título a mulher de camiseta branca e olhar firme segura um pequeno baú negro. Segura-o bem abaixo do ventre, na altura do púbis, da vagina, enfim, do aparelho reprodutor, defendendo-o duplamente com o baú e com a saia longa e também vermelha. Tudo aqui, incluindo os 32 contos selecionados, é vermelho, preto e branco. Essas, aliás, são também as cores da censura compulsiva a que os escritos das mulheres foram submetidos até há bem pouco tempo. Freud, que havia vasculhado cada palmo da alma humana, confessava não saber quase nada do continente negro — vejam só como o vienense chamava a sexualidade feminina. Território de enigmas e sortilégios, completamente fechado ao macho da espécie. Defendendo esse território, na antologia da Martins Fontes, aí estão veteranas que admiro desde a minha adolescência, como Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, e veteranas que não admiro tanto assim, mas sem esconder o merecido respeito, como Rachel de Queiroz. Briga feia, a dessas mulheres com as tábuas da lei. A partir de 1930: tiveram de afastar o interdito, fazer com que recuasse o máximo possível. Por volta de 1950: partiram para conquistar e defender a cidadela da literatura vigiada. Essas foram as contribuições das três autoras que, na minha opinião, guiam o grupo antologiado.

Meu primeiro gesto, na noite de autógrafos aqui em São Paulo, foi comparar a escalação das organizadoras com a minha própria. Nessa hora senti falta na antologia de pelo menos nove atacantes que merecem jogar em qualquer seleção brasileira: Cíntia Moscovich, Claudia Lage, Fernanda Benevides de Carvalho, Livia Garcia-Roza, Luci Collin, Tércia Montenegro, Vilma Arêas e Zulmira Ribeiro Tavares, vivíssimas, e a já falecida e amaldiçoada Maura Lopes Cançado, que soube transformar a própria esquizofrenia em prosa de primeira. Capitaneando esse time, Hilda Hilst, sempre ela. Logo em seguida, meu segundo gesto foi jogar esse lugar-comum — o raciocínio pernóstico, do tipo “olha como eu sou mais bem informado do que vocês”— na vala comum. Todo brasileiro tem a sua escalação, todo brasileiro se julga o técnico ideal. Em nome do bom senso pulemos essa etapa, deixemos para lá o longo e maçante parágrafo em que eu justificaria cada escolha, cada autora da minha lista. Golpes desse tipo devem ser guardados para o abdômen e a virilha das antologias de gosto duvidoso, desorganizadas para acolher os amigos.

Para publicações como esta da Martins Fontes vale mais o uso da lupa, que vai em busca dos detalhes e das filigranas, e da sensibilidade, que fornece os elementos necessários para que a filosofia do projeto seja entendida. A presença de autoras mais antigas, como Adalgisa Nery, Carmen Dolores, Eneida de Morais e Júlia Lopes de Almeida, por exemplo, vale mais como documento, como registro histórico. No conto de cada uma dessas senhoras há a graça do pitoresco, da leveza polida e inocente. Infelizmente não há aqui o que sobra na literatura de Clarice e Lygia e de boa parte da turma mais nova: vigor e provocação. O modo diacrônico de organização, que estabelece o valor de cada autora comparando-a apenas com os seus contemporâneos, mostra-se frágil. Isso prova que, nos estudos literários, de quando em quando a diacronia precisa ser posta em pânico, como alertou Haroldo de Campos. Já o modo sincrônico, ao pôr lado a lado contos tão distantes no tempo e no espaço, como o cruel Taxidermia, de Miriam Mambrini, e o estereotipado A gargalhada, de Adalgisa, revela o abismo que separa os dois mundos. Ambos os contos trazem um indivíduo neurótico e violento, exibindo sua face necrosada (eis a vingança das mulheres). A diferença está toda na solução literária, na visão de mundo de cada autora. Quando comparados os contos de ontem com os de hoje, começamos a perceber que por volta de 1950 algo de fundamental aconteceu na contística feminina. A óptica real é sempre a do tempo presente. O ideal não é ler Júlia Lopes de Almeida e Clarice Lispector pelo crivo de seus contemporâneos. O ideal é estilhaçar os nichos, os escaninhos, e reler Júlia Lopes pelo crivo de Clarice.

Toda antologia carrega a sua bandeira. Seja ela vermelha, preta e branca, como é o caso desta aqui, ou de qualquer outra cor, o fato é que a primeira coisa que salta à vista, ao folhear o livro, é a trama ideológica do seu estandarte. O eterno choro dos misógenos descontentes repetirá: “Por que publicar uma antologia de contos escritos só por mulheres? A boa literatura não está amarrada às diferenças de sexo, raça, credo ou posição social”. Logo na abertura do volume, a fim de desarmar o esperado ataque, as organizadoras refletem sobre essa questão espinhosa. Da mesma maneira agiu Nelly Novaes Coelho na introdução ao seu necessário Dicionário crítico de escritoras brasileiras. Não vou repassar agora todos os argumentos, não há espaço. Quem acompanha com seriedade esse debate, conhece a minha opinião, formulada nas duas antologias que organizei para a editora Boitempo (Geração 90: manuscritos de computador e Os transgressores). A produção dos excêntricos, dos autores que durante séculos viveram à margem, fora do centro do poder, precisa ser distinguida, sim. As antologias de contos escritos por mulheres são tão necessárias hoje quanto as antologias de contos escritos por gays, negros, marginais. “Antes eram os homens que diziam como nós éramos. Agora somos nós.” Aí está, nas palavras de Lygia Fagundes Telles, a síntese da justificativa. Os homens da equação são, é claro, os aristocratas europeus brancos e heterossexuais.

Mas no frigir dos ovos e dos ovários, penso que a polêmica não deva se sobrepor aos próprios contos. Gastar mais linhas com ela, em prejuízo da resenha do conteúdo maior da antologia, seria crime de lesa-majestade. Porém agora é tarde, como podem ver já fui longe demais. Deixei-me enredar por certo esquematismo viciado e não falei do essencial, do que há de melhor nos Contos de escritoras brasileiras: os próprios contos. Para salvar se não todas as aparências ao menos duas ou três, que fique registrado que, com ou sem a sua bandeira, essa antologia é das melhores que já se publicou. Porque nela estão as várias anatomias e os vários sexos da mulher: o intimismo e a nostalgia, o humor negro e a explosão dos instintos, o depoimento longo e sinuoso e o seu oposto, o discurso cru e violento. Ou seja, o uso da lupa e da sensibilidade mostra claramente que não existe a Mulher, o que há são os infinitos matizes do feminino. E na diferença mora a delícia. Isso é confirmado ao se comparar narrativas tão contrastantes quanto La pietá, de Cecilia Prada, e Feliz aniversário, da Clarice. Amor pelas miniaturas, de Edla van Steen, e Assombração, de Heloísa Seixas. Rondó, de Ivana Arruda Leite, e A estrutura da bolha de sabão, da Lygia. A irresistível Vivien O’Hara, de Márcia Denser, e Muslim: woman, de Marilene Felinto. O homem de luva roxa, de Marina Colasanti, e Marcolina-corpo-de-sereia, de Nilza Amaral.

Antes do último ponto final vale a pena mencionar a maneira perversa com que muitas das autoras — entre outras, Carmen Dolores, Clarice Lispector, Dinah Silveira de Queiroz, Ivana Arruda Leite, Lygia Fagundes Telles, Marina Colasanti, Miriam Mambrini, santo Pai a lista é imensa! — torturam suas personagens masculinas, frágeis e neuróticas. Como eu já disse, eis a vingança feminina.

Autoras presentes na antologia (CONFIRMAR)

Adalgisa Nery
Adélia Prado
Carmen Dolores
Cecilia Prada
Clarice Lispector
Dinah Silveira de Queiroz
Edla van Steen
Eneida de Morais
Flávia Savary
Helena Parente Cunha
Heloisa Seixas
Ivana Arruda Leite
Júlia Lopes de Almeida
Julieta de Godoy Ladeira
Lucia Castello Branco
Lygia Fagundes Telles
Márcia Denser
Maria Caprioli
Marilene Felinto
Marina Colasanti
Miriam Mambrini
Nélida Piñon
Nilza Amaral
Olga Savary
Patrícia Galvão (Pagu)
Rachel de Queiroz
Rachel Jardim
Sonia Coutinho
Sônia Peçanha
Vilma Guimarães Rosa

Contos de escritoras brasileiras
Org. Lúcia Helena Viana / Márcia Lígia Guidin
Martins Fontes
382 págs.
Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho