Vista mágica

Com "A janela de esquina do meu primo", leitor brasileiro tem acesso a um E. T. A. Hoffmann distante do fantástico
E.T.A. Hoffmann, autor de “A janela de esquina do meu primo”
01/07/2010

Legibilidade ou ilegibilidade? Ver ou não ver? Como se dar conta das mudanças das novas configurações do espaço urbano, no início do século 19? Como decodificar as manchas e massas polifônicas, à primeira vista amorfas, que começavam a tomar conta de novos espaços públicos como, por exemplo, a rua. Essas são algumas das questões tratadas pelo alemão E. T. A. Hoffmann no conto A janela de esquina de meu primo.

Obra até então inédita no mercado editorial brasileiro, chega agora com uma bela e cuidadosa edição da Cosac Naify, tradução de Maria Aparecida Barbosa, ilustrações de Daniel Bueno e posfácio de Marcus Mazzari. Escrita em 1822, pouco antes da morte do autor, sob encomenda para a revista literária Der Zuschauer (O Observador), que seguia a inglesa The Spectator, A janela de esquina de meu primo traz um outro perfil de E. T. A. Hoffmann, mais conhecido pelos textos fantásticos. No Brasil, sem dúvida, sua divulgação se dá por obras desse cunho, nas quais se opera uma reordenação do inconcebível: o absurdo está na realidade concreta e não há nada mais natural que os sonhos. Percursos em que fantasia e alucinação caminham juntas, como em Homem de areia (Der Sandmann).

Escritor, compositor, caricaturista e pintor, Hoffmann não poderia deixar de registrar as transformações de seu tempo e as necessidades da nova sociedade burguesa. Esse conto é escrito entre dois grandes marcos: a reforma iluminista de Lisboa, realizada pelo Marquês de Pombal, depois do trágico terremoto de 1755, e a reurbanização de Paris feita por Haussmann, mais ou menos um século depois. Ações que intervinham diretamente na cidade e em seus habitantes. Habitante e cidade (hoje se diria metrópole ou megalópole) têm uma forte relação de simbiose, a cidade como texto fala de quem transita por ela e a habita, da mesma forma que o habitante “encarna” marcas desse espaço que o envolve e acolhe.

É a história de um primo escritor que por uma “obstinada doença” perdeu a força nos pés e recebe, numa manhã, a visita de seu primo, o narrador do conto. Uma trama que dialoga claramente com outros artistas, como Paul Scarron, Horácio, Daniel Nikolaus Chodowiecki e Jacques Callot, mencionados, direta ou indiretamente, ao longo do texto.

Um estudo do espaço
O primo escritor vive num prédio de esquina que dá para a grande Praça Gendarmenmarkt, em Berlim, edifício que também foi a moradia de Hoffmann. É assim descrita a habitação pelo primo visitante, logo no início da narrativa:

“(…) a morada do meu primo está localizada na região mais bonita da capital, ou seja, em frente à praça do mercado, rodeada por construções suntuosas, em cujo centro se ergue o colossal edifício do teatro, genialmente concebido. É um prédio de esquina o que o meu primo habita, e da janela de um pequeno gabinete ele abarca num lance de olhos todo o panorama da grandiosa praça”.

Essa sucinta descrição já dá uma idéia de como ele vê e analisa todo aquele espaço que se abre diante da janela de esquina. Uma visão ampla e magnificente, que delimita objetos macros e imponentes. Isso pode ser confirmado pelos adjetivos e expressões região mais bonita da capital, construções suntuosas, colossal edifício do teatro. Um olhar, ou estudo do espaço, diferente daquele feito pelo primo escritor. E é nessa diferença que está o fulcro do conto e todo o seu desenvolvimento, para recuperar as perguntas colocadas no início dessa resenha.

Devido ao seu estado de saúde, e com muitas limitações, a única distração do primo é a janela do apartamento. Ali, daquele espaço limitado, mas também ilimitado, ele tem contato com o mundo exterior; um ponto de observação, sem dúvida, privilegiado. Um grande consolo diante de tantas impossibilidades. É contemplando, decodificando, ressemantizando e recodificando aquela paisagem fluídica e mutável que o primo escritor passa horas de seu dia. Uma comédia da vida humana, formada pelos inúmeros anônimos, de diferentes classes, que, como se acompanhassem uma sinfonia, se harmonizam num vaivém que, por sua vez, dá o tom perfilante do todo: a multidão.

Se a visão do narrador é aquela, macro, global, dos objetos, da multidão e das grandes construções que ocupam determinados espaços, sem porém se deter nos detalhes — o seu olho vê, mas não enxerga —, a do primo escritor é penetrante, dilacera a imagem totalizante a sua procura por detalhes. Se o olhar do primo narrador pode ser comparado a algo de “estático”, o do primo escritor, ao contrário, está sempre em movimento. É, portanto, fragmentado e clivado como são as percepções de uma cena qualquer numa rua ou num mercado. Nesse caso, a discussão, quase uma aula sobre a arte do olhar, se dá por meio da análise dos acontecimentos matutinos do mercado daquela praça. A visão analítica da multidão, todo o seu macro e microcosmo, só é possível mediante o uso de um instrumento que contribui para o processo de reconhecimento dessa imensa massa amorfa, caracterizada pela sua policromia. Tal instrumento é a luneta, fundamental para a observação e o estudo do alto da janela. É ela, de fato, que permite reconhecer traços, formas, cores mais ou menos nítidas, além de deduzir as infinitas situações desse contexto, a partir das gesticulações, expressões e tantos outros sinais antes invisíveis.

Pluralidade
As frases “olha para fora” e “o olhar propicia o enxergar nítido e um olho que realmente enxerga!” são os eixos norteadores de todo o diálogo entre os dois personagens que dominam o conto. Desvendar os espaços públicos, identificar quem os ocupar e imaginar o que são e por qual motivo se encontram ali é o que faz o primo escritor. O mercado, para ele, é uma trama formada por muitos fios que “caminham” e se entrelaçam; é, enfim, um cenário rico e fértil para a imaginação com toda a diversidade e a pluralidade de pessoas, sons, visões, brigas, encontros, surpresas. Todavia, além de identificar esses detalhes e observar atentamente, o primo escritor tece o que pode estar por trás daquelas imagens fugazes: quem são? Que história têm? O que fazem ali? Ou seja, a partir do momento em que o olhar fixa o objeto por meio da luneta, passa-se para a criação de diferentes histórias, que se encontram e se mesclam na moldura maior que é a feira, observada pelos dois personagens. Como diz o primo visitante: “Essa invenção, caro primo, faz jus a seu talento de escritor”.

Esse conto é um exemplo de como a cidade aos poucos assume um novo papel, no qual as relações com seus habitantes são mais intensas. A direção do olhar muda e agora o que está em foco é o espaço ao redor e o que nele está contido. A observação mais atenta e a reflexão do objeto selecionado aumentam a interação entre cidade e habitante. A metrópole não só interage com os indivíduos que nela habitam, mas também os representa em suas ruas, praças e monumentos, constituindo-se num interlocutor mediante suas construções e formas.

A cidade como texto e o texto da cidade serão escritos e decifrados por tantos outros escritores, como Edgar Allan Poe, em Homem da multidão, por exemplo, quase duas décadas depois. Aqui, também, há um observador, mas que se mistura à multidão para melhor decifrá-la, já que da mesa do café londrino, a vidraça embaçada impõe-lhe dificuldades no perscrutar. Assim, esse observador integra-se à grande massa, em franca perseguição a um anônimo. Como em Hoffmann, num primeiro momento, a multidão apresenta-se sem forma, como algo bem confuso, mas, na medida em que o olhar é treinado e focado, algumas imagens se delineiam até que o protagonista começa a seguir um indivíduo identificado nessa massa e passa a ser movido pelo desejo de indagar, pela curiosidade que aquele desconhecido desperta nele. O mercado configura-se, portanto, num exemplo da nova dimensão do espaço público urbano que começa a propiciar novas relações no século 19.

Por fim, é importante lembrar que a produção de Hoffmann, ainda no século 19, tem uma repercussão entre grandes escritores da literatura mundial como Baudelaire, Balzac, Nodier, sem falar na relação que pode ser estabelecida, ainda, com Poe, já citado, e com as primeiras obras de Dostoievski.

A janela de esquina do meu primo
E. T. A. Hoffmann
Trad.: Maria Aparecida Barbosa
Cosac Naify
80 págs.
Ernest Theodar Amadeus Hoffmann
Nasceu em Konigsberg (Alemanha), em 1776. Órfão, é criado pelo tio, que o inicia na carreira jurídica. Demonstra desde cedo interesse pelas artes: literatura, pintura e música. Por causa do trabalho, é transferido para várias cidades, e vive um período de intensa atividade profissional, junto à administração prussiana, mas também em outras frentes, como a organização de uma orquestra e a composição de obras e sinfonias. Com a ocupação de Varsóvia pelos franceses, em 1806, ele retorna a Berlim em 1807, ainda ocupada pelas tropas de Napoleão. Transfere-se depois para Bamberg, onde trabalha com crítica musical, pintura e dramaturgia. Em 1813, depois de passar por Dresden e Leipzig, volta a Berlim, onde entra em contato com o grupo romântico. Em 1816, é nomeado conselheiro da corte de apelação de Berlim. Seguem-se os anos mais intensos da sua produção literária: escreve Fantasias à maneira de Callot (1815), O elixir do diabo (1815-16), Noturnos (1817), coletânea que inclui o conto Der Sandmann, Contos dos irmãos Serapion (1819/21) e Princesa Brambilla (1821). Morre em 1822, em Berlim.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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