Visão de mundo do artista, patrimônio da Humanidade

A forma como cada autor encara o mundo que se apresenta
01/03/2003

A Osho e a Brecht
Ouvimos falar que determinado ponto turístico ou recurso natural, paisagem ou arquitetura, é monumento da Humanidade, tombado pela Unesco e protegido contra predação etc. Mas há também patrimônios da Humanidade que não precisam ser tombados, pois existem não de forma física, mas “apenas” conceitualmente, como as idéias, as crenças, os valores morais, o patrimônio folclórico e cultural que passa de geração a geração transmitido de pais a filhos, como as canções de ninar, os contos de fadas, os mitos.

Também temos como patrimônios as visões de mundo dos artistas. Todo artista maduro, ou seja, inconfundível, tem sua própria visão de mundo, como tem sua linguagem artística própria (basta ouvir Bethoven e sabemos que é Bethoven, como o som dos Beatles é só dos Beatles, idem Rolling Stones, como a linguagem de Guimarães Rosa é só dele, embora em certa época houvesse mais gente escrevendo como Rosa do que rosas nos jardins).

Se a linguagem própria, também chamada estilo, é a forma do artista se comunicar, a visão de mundo é sua forma de ver o que temos como incompreensível, ou seja, a existência, mistério pautado entre os mistérios do Infinito e da Eternidade.

Assim, não há como negar que Manuel Bandeira vê o mundo de forma diferente de Drummond de Andrade, embora ambos poetas da mesma época e do mesmo movimento modernista brasileiro. Manuel vê o mundo como um menino, Carlos vê o mundo como um homem multifacetado, fragmentado em várias personalidades, daí sua poética de tantas vertentes formais e temáticas, enquanto Manuel vê o mundo com poucas variantes, como quem vê de uma janela, enquanto Carlos olha de muitas janelas. No entanto, Manuel parece a seu modo compreender mais o mundo do que Carlos…

Que dizer então de Fernando Pessoa, cujos heterônimos não só se multifacetam mas até se contrapõem em visão de mundo e estilo?

E os autores que vivem a vida conforme determinadas crenças e princípios mas, na obra, os negam através da conduta de seus personagens e da apologia de idéias e posturas morais? É o caso de Balzac, conservador na vida e republicano liberal na obra. Ou o caso de Cruz e Sousa, negro, sofredor dos males do racismo, pobre, a cultivar na sua poesia “formas claras, alvas, cristalinas”… fazendo uma poesia conforme a visão das elites brancas de seu tempo.

Temos, no entanto, autores perfeitamente coerentes em vida e obra, como Pablo Neruda, a militar como comunista durante toda a vida, na política e na poética, a ponto de, quando do golpe militar direitista no Chile, ter sua casa em Isla Negra depredada e saqueada como símbolo da esquerda chilena… No entanto, os que a depredaram deixaram apenas essa triste lembrança, enquanto a visão de mundo do poeta, construída em poemas, continua a espraiar sua luz décadas depois, por ser um patrimônio intelectual da humanidade.

A visão de mundo é conjunto, ou melhor, sistema de idéias, crenças e sentimentos do artista em relação aos outros, já que, para os humanos, o mundo — e, conforme Sartre, o inferno também — são os outros. Vemos isso claramente até em pequenos textos, como nos auto-epitáfios de Brecht e Osho:

Ele deu palpites.
Alguns
nós aceitamos
(Bertolt Brecht)

OSHO
não nasceu,
não morreu.
Apenas passou
por este planeta.

Em poucas linhas, ficam evidentes a visão de mundo desses dois homens iluminados, sua compaixão, sua dedicação aos outros, sua paixão por fazer da própria vida um permanente serviço à Humanidade, cada um a seu modo, Brecht militando na sociedade através da arte, Osho militando nas mentes e corações através do amor.

Uma simples estrofe de Drummond resume sua visão de mundo, sempre multifacetada, fragmentada mas buscando unidade na humanidade:

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

 Ou em Cecília Meirelles, seu feminino, gentil e no entanto tão decidido amor pelas pessoas, pelos outros, traduzido na exaltação do mais comunitário valor, a liberdade:

Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
e que não há quem decifre
e ninguém que não entenda

Ou o amor à liberdade, em Castro Alves, já encarnado na compaixão pelos irmãos escravos:

Auriverde pendão da minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que à luz do sol encerra
As divinas promessas da esperança,
Tu, que da liberdade após a guerra
Foste hasteada dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!

Ou, ainda, em Vinicius de Moraes, a visão do amor como fundamento da vida:

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

É evidente que esse homem em tudo vê o amor, pelo amor e para o amor, e toda sua obra é uma exaltação de amor às pessoas e às coisas como extensões humanas; o amor é o eixo da visão de mundo de Vinicius, que chega a encerrar seu Soneto da Intimidade em comunhão ritual com os animais, bois e vacas duma fazenda:

(…) nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Urinamos todos juntos numa festa de espuma.

Como em Brecht é a solidariedade e a necessária luta sociopolítica:

Quem construiu Tebas das sete portas?
Nos livros, veja, estão nomes de reis:
terão os reis suado pó e pedra?
E Babilônia, tantas vezes derrubada,
por quem foi levantada tantas vezes?
Em que prédios da dourada Lima
moravam os pedreiros com seus ossos
e suas mãos, suas mãos e seus ossos?

Na noite em que, com fogos de artifício,
a Muralha da China foi inaugurada,
onde foram dormir os pedreiros chineses?

E veja Roma, os arcos do Triunfo.
Quem arquejou para toda essa glória?
Sobre o lombo de quem triunfavam os Césares?
E na Bizâncio sempre tão decantada
será que todo mundo morava em palácios?

Na lendária Atlântida, ouça os gritos,
na noite em que o mar subiu à terra,
os senhores gritavam por seus escravos.

E Alexandre, conquistou sozinho a Índia?
E César, quando saía a vencer guerras
não levava ao menos um cozinheiro?

E Felipe da Espanha chorou solenemente
quando foi a pique a sua esquadra
– mas não terá chorado mais ninguém?

A cada página, uma grande façanha.
Quem cozinhava o banquete, colega?
De dez em dez anos, um grande herói.
Mas quem pagava o pato, companheiro?

Quantas histórias, tantas perguntas…

 É evidente também a visão de mundo jesuína (conforme Jesus) de São Francisco em qualquer dos versos de sua famosa oração:

Onde houver discórdia, que eu leve a paz
Onde houver ódio, que eu leve o amor
Onde houver descrença, que eu leve a esperança…

Abrindo ao acaso uma antologia poética, eis:

Meu cérebro e coração pilhas elétricas
Arcos voltaicos
Estalos
Combinações de idéias e reações e sentimentos
O céu é uma vasta sala de química com retortas
/cadinhos tubos, provetes e todos
/vasos necessários

Será preciso dizer que Luís Aranha é autor modernista, e que professava uma visão de mundo dinâmica, científica, vertiginosa e até alucinada como era comum entre os pioneiros modernistas?

Outra página ao acaso, Mário de Andrade e sua melancólica, mas fraterna visão de mundo, refletindo sobre as águas do Tietê:

É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. (…)

Ou seja: o mundo se torna paisagem humana, refletindo as emoções e as próprias formas humanas (o peito do rio, noite afogando de apreensões, as altas torres do meu coração…). A visão do mundo transforma o mundo em extensão do autor.

Já em Rosário Fusco, também folheando ao acaso, vemos como uma visão de mundo menor, regional (que inclusive impediu o autor de se tornar referência nacional) transparece claramente:

Gosto de ouvir uma sanfona bem tocada…
Nem negros estradeiros na pinga, nem capinas,
/ nem apanhas de café,
nem o chiar tristonho de carros de boi descendo
/ a encosta
nem cantigas dolentes
das negras que lavam
nas lajes do rio.

No entanto, ao final do poema, o autor tenta elevar sua visão para uma mirada universal:

Mas a alegria e o descanso das obrigações cumpridas
e o riso – criança da satisfação das coisas…

Paulo Leminski tinha uma visão adolescente do mundo, o que fica claro na maioria (não em todos, na maioria) de seus poemas, como bem revelou o crítico Miguel Sanches Neto:

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédios
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas tem família grande,
e aos domingos saem todos passear:
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas

Ou:

podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

Deliciosamente adolescente, o mesmo Leminski, porém, cresceu conceitual ou existencialmente, curtido pelo tempo, e já ao final da vida fazia poemas mais adultos, digamos assim:

Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.
A dor, sobretudo,
parecia prazer.
Parecer era tudo
Que as coisas sabiam fazer.
(…)
Mas vice versa e vide a vida.
Nada se parece com nada.
A fita não coincide
com a tragédia encenada.
Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.

Não confundamos visão de mundo com tema ou assunto. Isto, é sobre o que o poeta fala. Aquilo, é o modo como fala, como vê, o tom, a lente ou filtro pela qual vê o mundo, com ou sem esperança, com ou sem solidariedade, com ou sem isto ou aquilo.

Você não acha um poema pessimista de Castro Alves, como não acha um poema (aparentemente) otimista de Augusto dos Anjos.

De resto, a visão de mundo é como o estilo, inconfundível em cada autor. Um é otimista, mas do seu jeito. Outro é pessimista, mas do seu jeito. E todos são humanos. E seus pontos de vista, suas visões do mundo, são nosso patrimônio de valor incalculável, pois irrepetível e inigualável. Amar a arte é amar os artistas e suas visões de mundo, que enriquecem a nossa e nos fazem mais humanos, pois podemos incorporar, selecionando e melhorando, todas suas visões.

Domingos Pellegrini

Nasceu em Londrina (PR), em 1949. É autor de O caso da chácara chão, Meninos no poder, Quadrondo, entre outros.

Rascunho