Há anos que o Prêmio Sesc faz um admirável trabalho para revelar novos autores. Dele já saíram nomes como André de Leones, Luisa Geisler, Rafael Gallo e Sheyla Smanioto — isso para ficarmos apenas em um exemplo ou outro de como a honraria tem bem alimentado a literatura nacional. Então, é normal que esperemos por escritores proeminentes e bons livros a cada nova edição da honraria. Os premiados em 2016 foram Franklin Martins com Céus e terra na categoria Romance e Mário Rodrigues com Receita para se fazer um monstro na categoria Contos. Foi este que li há pouco.
Nas narrativas breves acompanhamos um inicialmente garotinho que se define como mandacaru porque só tem espinhos e deserto à sua volta. Apesar disso não ser explicitado, é ele, em diferentes fases da vida, que protagonizará todos os contos do livro — podemos perceber isso principalmente pelos detalhes que se cruzam em momentos distintos da existência do moço. E o personagem é mau, muito mau. A cada nova história, uma trama que se encaminha para um desfecho quase sempre cruel.
Eu poderia ter afogado o Nego Laércio ali mesmo pra me livrar de sua presença incômoda. Mas não sou tão mau assim. Naquela pescaria levei outra substância além da manipueira. Separei dois caritos e um chupa-pedra e uma tilápia e os empanturrei da substância. Quando Nego Laércio veio à tona — sem pegar nada: óbvio — eu disse: Toma. Leva isso pra tua família. E vê se eles gostam mais de você. Ele pegou os peixes — agradecido — talvez lágrimas ou água do rio nos olhos — e fomos embora. No dia seguinte: toda a família dele foi parar no hospital. Eles não morreram. Só tiveram urticária. Era uma pegadinha e não uma chacina. Já disse: não sou tão mau assim. E quase tive um amigo.
Tudo ali funciona para que o protagonista externe sua malvadeza e mostre-se indiferente à dor que qualquer coisa do mundo que o cerca possa ter. São histórias que se repetem mudando apenas os agentes e as situações. Lidos um ou dois contos, lidos todos.
A força da narrativa de Rodrigues, com sua linguagem seca, bruta, que abre mão de vírgulas e privilegia pontos, dois pontos e travessões, o que às vezes provoca certo estranhamento com pontuações idiossincráticas, precisa ser destacada. Os contos realmente causam impacto, mexem com o leitor. A maldade do personagem incomoda em muitos momentos, em outros há certa culpa por sentir empatia com aquele que causa tanta desgraça. Outro mérito: alguns coadjuvantes que aparecem aqui e ali, como o Papa, um sujeito que frequentava a maternidade durante as noites para comer as sobras das papinhas de bebês, tendo naquilo sua única refeição diária. No capítulo no qual as histórias falam sobre crueldade com os animais, em muitos momentos me peguei pensando “vai se foder, cara, pra que fazer isso com o coitado do bicho?”.
Um dia ganhei a Crush e o bolo de rolo em dobro. Trouxe um só cururu. Só um. Desdenharam. Mas fiquei impassível. Botei o cururu no meio da calçada. Ele ficou parado me encarando. Peguei a chimbre de aço. Na verdade: uma bolinha tirada de dentro de um rolimã. Abri a boca do sapo e joguei-a lá. O calor rompeu o papo do cururu e a bola caiu de novo na calçada. Fui aplaudido por todos. Então vi como é bom ser original. Como é bom pensar o que ninguém havia pensado. E é isso que faço até hoje. Faço o que ninguém nunca pensou em fazer. E isso é bom. Porém sinto falta dos aplausos às vezes.
Em outra parte, Mário escreve passagens dignas de uma “desauto-ajuda”:
As canas que eu não roubava seguiam em suas gaiolas até a usina e lá viviam suas sinas: álcool ou açúcar ou aguardente ou bagaços e bagaços. Você deduz que faço isto com meus clientes: queimo e corto e esmago e arranco a casca com os dentes. Mas se engana. É a própria vida que faz isso conosco: ela nos queima e nos corta e nos esmaga e tira nossa essência e nos deixa apenas: bagaços e bagaços.
Crueldade que satura
No entanto, Mário peca por usar uma estrutura extremamente previsível em todos os textos de Receita para se fazer um monstro. Tudo ali funciona para que o protagonista externe sua malvadeza e mostre-se indiferente à dor que qualquer coisa do mundo que o cerca possa ter. São histórias que se repetem mudando apenas os agentes e as situações. Lidos um ou dois contos, lidos todos.
Mário ainda é afeito a brincar com as palavras — algo caro aos escritores, claro —, mas alguns gracejos acabam por enfraquecer o seu texto. “Armei a soca-tempero. Sou rápido. E foi com essa rapidez que atirei no galináceo e vi penas voarem. Nunca deixo cúmplices. E ninguém é inocente. E quem tem pena se ferra no final”, escreve em um momento. E depois: “Não utilize as penas. Pena não cabe nesta história”. Logo adiante, “O Bar do Biu não tinha mais graça pra mim. Graça havia no Bar da Kelly. Mas não era de graça”. Eu, particularmente, reveria trechos como esses.
Há quem considere que Receita para se fazer um monstro pode ser encarado também com um romance fragmentado, mas não enxergo assim. Apesar de termos o mesmo personagem em momentos diferentes da vida, compondo um bom panorama de sua trajetória, a estrutura e o encadeamento da narrativa não deixam dúvidas que é um livro de contos mesmo. Um livro de contos cansativo e repetitivo, diga-se. E, em todo caso, se fosse um romance, ainda poderíamos acrescentar o adjetivo capenga à lista.
Ao cabo, a crueldade satura, o leitor se habitua a ela e as maldades não causam mais grande impacto — exatamente como no mundo real, diga-se, e isso merece elogios.