Vinte anos depois

Enquanto "A outra voz", de Octavio Paz, seguir atual, a modernidade não terá acabado
Octavio Paz por Nilo
01/06/2010

Muito já foi dito sobre as sensíveis mudanças do pensamento de Octavio Paz — sem que, com isso, ao ser investigado por completo, ele finde incoerente. Emir Rodríguez Monegal, por exemplo, em artigo sobre o quanto El arco y la lira (1956) foi modificado nos 11 anos que separaram as duas primeiras edições, afirma que, ao não parar de mudar, o poeta-crítico mexicano também não cessou de se confirmar: “Cada nova aventura poética (ou crítica, dá no mesmo) termina o transformando sem descaracterizá-lo”.

Após 20 anos da primeira edição, é provável que outro de seus livros mais comentados, La otra voz, fosse bem diferente, não houvesse seu autor falecido em abril de 1998. Mas, ainda que sem receber intervenções, esse derradeiro Paz segue atual, ratifica seu autor como essencial ao debate sobre poesia e modernidade, e alcançará uma façanha muito, muito rara…

Seu objeto de análise, a poesia moderna, é que segue em movimento, metal que não esfria. Até por isso as reflexões ali registradas não perdem força, muito pelo contrário. Se conformada, mineralizada, e ainda assim moderna, a produção poética de nosso tempo seria a refutação de A outra voz.

Alguns retrucam, direcionam seus questionamentos para uma das marcas características de seus escritos: o fato de eles não desatarem todos os nós, não encerrarem debates, preferindo a tradição montaigniana, onde os ensaios não trazem uma visão acabada das coisas, dado que os alicerces das convicções costumam ser insuficientes para sustentá-las incólumes ao longo do tempo. Sobre seu estilo argumentativo, nada melhor que buscar Sebastião Uchoa Leite, para quem o objeto abordado por Octavio Paz

parece às vezes inconsistente, sem peso, aéreo, difícil de ser apreendido pela linguagem lógica da crítica. Paz utiliza então o método de cercar o tema sem desdobrá-lo, ramificá-lo em várias direções, detendo-se para lançar novos interrogantes, em suma, de exorcizá-lo pela linguagem poética.

Aliás, o quanto não perdemos pela resistência que tantos acadêmicos mantêm para com críticos como Paz, Cortázar, Borges, Álvaro Lins? Estreitados pelos rigores normativos e metodológicos, professores e alunos tanto se prendem a prematuras certezas, a teóricos inabaláveis, que terminam por ignorar a longeva lição de que nas perguntas, geralmente, reside a parcela mais cara ao diálogo.

Poesia como conciliação
Logo no início do segundo capítulo de A outra voz, o autor reconhece os obstáculos:

O tema que me proponho explorar — poesia e modernidade — é formado por dois elementos cuja relação não é inteiramente clara. A poesia deste final de século é, ao mesmo tempo, a herdeira dos movimentos poéticos da modernidade, do Romantismo às vanguardas, e sua negação. Tampouco fica claro o que se entende por “moderno”. A primeira dificuldade que enfrentamos é a natureza esquiva e mutável da palavra: o moderno é por natureza transitório, e o contemporâneo é uma qualidade que desvanece tão logo a anunciamos.

“Cercando” o conceito, para usar a imagem de Uchoa Leite, Paz encontra na crítica um traço diferenciador da modernidade. Crítica como “um método de pesquisa, criação e ação”. Progresso, liberdade, democracia e todas as demais chaves para o entendimento de nossa época, segundo o mexicano, nasceram da crítica (às normas, às instituições, à tradição). Esse homem moderno, porém, além de crítico, torna-se também um solitário.

No século 20, o interlocutor mítico e suas vozes misteriosas se evaporam. O homem ficou sozinho na cidade imensa e sua solidão é a de milhões como ele. O herói da nova poesia é um solitário na multidão ou, melhor dizendo, uma multidão de solitários.

Desprovido de antigas crenças, de visões totais do mundo, esmagado em suas necessidades, esmiuçado pela ciência, e, por outro lado, uma testemunha dos assombrosos avanços tecnológicos, o que lhe resta? Durante algumas décadas, utopias ainda ondeavam milhões sobre a maré do capitalismo, havia sendas que, ocasionalmente, tinham sucesso em reunir esses infindáveis solitários na esperança de outro futuro. Já naquele 1990, contudo, quando da publicação de A outra voz, o que restou ao Ser, senão a poesia? Seria inclusive Ser, não fosse a poesia?

Foi o próprio Octavio Paz quem, em Los hijos del limo (1974), dissera que poesia e modernidade são contrárias, pois o poeta se tornou um crítico da burguesia, dos valores de uma sociedade regida pelo capital, e crítico, afinal, da própria linguagem. Poesia crítica dela mesma. Como pode a arte poética, então, reconciliar o que foi separado, tirar o homem de sua solidão, criar uma fraternidade no vazio?

Se antes citamos Montaigne, também é preciso voltar a Heidegger, para quem arte era essencialmente poesia. Nesta, a Verdade se apresentava, ora clareando, ora ocultando. O verdadeiro poema não era menos que ascese, iluminação, e somente a partir da linguagem o Ser era possível. Linguagem enquanto acontecimento, não um depositório de verbos, nomes e associações arbitrárias.

Em Octavio Paz, a linguagem também é acontecimento; poesia, desvelamento; arte, lugar de conflito, convivência de opostos. E somente a partir dela o homem moderno, dividido e solitário, pode se reencontrar. A poesia tem mais que um espaço na modernidade, ela é necessária, essencial.

Por isso, posso dizer com um pouco de segurança que, enquanto haja homens, haverá poesia. Mas a relação pode se romper. Nasceu de uma faculdade humana por excelência: a imaginação; pode se quebrar se a imaginação morre ou se corrompe. Se o homem se esquecesse da poesia, se esqueceria de si próprio. Voltaria ao caos original.

Para além da metafísica
Octavio Paz confessa que sua visão não é apenas um posicionamento, mas uma verdadeira profissão de fé. E a metafísica de sua poética, mais que as redundâncias, idéias inconclusas e demais incompatibilidades com os preceitos acadêmicos, pode ser o motivo de tantos professores universitários o evitarem, ou mesmo de o jovem poeta vê-lo como teórico elitista e distante de suas demandas. A postura heideggeriana, no entanto, exige que Paz vá além da filosofia. Poesia e prática precisam estar juntas, resultando num pragmatismo que não pode ser ignorado pelo exegeta de suas obras — mormente em A outra voz.

Suas análises sobre a produção poética no século 20 não são apenas práticas, elas descascam a epiderme dos debates, geralmente tão rasos, e atinge o ponto nevrálgico: o poeta moderno, todo ele, do Romantismo às vanguardas, nasce e calcorreia pela crítica, professa a ruptura, mas ele está ou logo recai também numa tradição. Se hoje essa afirmação chegar banal ao leitor, em muito se deve ao próprio Octavio Paz, que foi dos primeiros a perceber a contradição instaurada no magma da modernidade.

A poesia moderna fez e faz a crítica da modernidade precisamente por ser moderna; seus leitores se reconhecem nela pela mesma razão. A modernidade, desde o seu nascimento, está em luta com ela mesma; nisso consiste sua ambigüidade e o segredo de suas contínuas transformações e mudanças. A modernidade emite atitudes e pensamentos críticos como o polvo solta tinta.

Talvez, para um poeta convicto de seu papel contestador, não desdenhar do autor de A outra voz, levá-lo em consideração, seja algo bem mais desolador. Com Octavio Paz, ele encontrará uma consciência crítica que pode findar assustadora ou mesmo castradora: o destino até do mais jovem e inquieto poeta é, inevitavelmente, transformar-se no antigo, na tradição a ser demolida — e isso não daqui a algumas gerações ou séculos, como os antigos bardos já reconheciam, mas em décadas ou poucos anos.

Pelo pragmatismo, avesso e complemento de sua metafísica, aos anunciadores do fim da literatura, que vivem de propagar que se lê cada vez menos, Paz lembra que esse sempre foi um hábito de poucos, de uma “imensa minoria”, como dizia Juan Jamón Jiménez. O mexicano também ratifica a falência do tempo sucessivo, da sucessão linear, dos projetos de futuro; além de atacar um dos clichês mais cultivados pelos “estudos culturais”:

Muito se fala da crise da vanguarda e por isso se popularizou, para designar nossa época, a expressão “a era pós-moderna”. Denominação equivocada e contraditória, como a própria idéia de modernidade. Aquilo que está depois do moderno não pode ser senão o ultramoderno: uma modernidade ainda mais moderna que a de ontem. Os homens nunca souberam o nome do tempo em que vivem e nós não somos uma exceção a essa regra universal. Dizer pós-moderno é uma maneira ingênua de afirmar que somos muito modernos.

E, após essas duas décadas, algo mais pode ser dito sobre o último livro de Octavio Paz, sobre aquela façanha tão rara… Não só vivemos ainda a modernidade, que se estende desde o Renascimento, entre rupturas e tradições, como também essa era moderna pode perdurar bastante, sendo a A outra voz uma baliza. Clássico que, apesar dos eventuais equívocos, terá sua permanência determinada sobretudo por isso: enquanto suas páginas soarem familiares e a poesia corrente responder às suas reflexões, a modernidade não terá se encerrado.

Octavio Paz
Nasceu na Cidade do México, em 1914. Foi poeta, ensaísta, jornalista e diplomata. Entre os muitos livros que publicou, estão Poemas (1935-1975), La piedra del sol, Ladera este, Entre la piedra e la flor, Luna silvestre, O labirinto da pedra, O arco e a lira e A outra voz. Ganhou o Nobel de Literatura em 1990. Oito anos depois, morreu de câncer, na cidade onde nasceu.
Cristiano Ramos
Rascunho