🔓 Vingança de escritor

"A segunda espada", de Peter Handke, lançado após a polêmica do Nobel de literatura 2019, concentra-se em prosa digressiva e atenta
Ilustração: Peter Handke por Oliver Quinto
01/01/2023

A epígrafe do livro é uma citação do evangelista Lucas que menciona a necessidade de os discípulos levarem consigo pelo menos uma espada quando forem viajar. Eles, porém, apresentam logo duas. “É o suficiente”, reconhece o Senhor. Ou seja, desde a abertura, a história narrada pelo austríaco Peter Handke se anuncia como violenta, ou pelo menos potencialmente violenta. Mas A segunda espada: uma história de maio, livro publicado na esteira do prêmio Nobel de literatura, que recebeu em 2019, é no fundo uma história de Peter Handke, ou seja, reflexiva, analítica, ponderada, bastante descritiva e muito digressiva, em que a violência fica restrita ao anúncio das intenções e não vai muito mais além.

“Então essa é a face de um vingador!” A afirmativa de abertura do livro é cheia de promessas. Porém, trata-se de uma forma expansiva de iniciar o romance e talvez atrair a atenção do leitor desavisado, que pode ir cheio de sangue nos olhos ao pote e ser desencaminhado a seguir para o mundo das decepções. A não ser que se trate de leitor contumaz, que acompanha a carreira de Handke desde que ele se associou ao cineasta Wim Wenders para adaptar o roteiro do livro O medo do goleiro diante do pênalti, e que nos anos oitenta do século passado mobilizava toda uma gama de discussões profundas sobre os meandros da alma brasileira, não tão distinta da alma europeia ou da alma do mundo, ou algo parecido com tudo isso. À medida que chegaram aos leitores brasileiros as traduções de textos como A tarde de um escritor foi possível perceber que Handke pertence a uma linhagem cada vez mais espessa de escritores que transitam entre ficção e não ficção, borrando a linha de fronteira de maneira ostensiva, para afirmar que tudo é um pouco mais complicado do que os rótulos convencionais deixam entrever (certo J. M. Coetzee — aliás outro ganhador de Nobel — e todo o G. W. Sebald vão por esse caminho, por exemplo). Nos últimos tempos, aliás, a editora de Handke no Brasil, que já foi a carioca Rocco e tornou-se a paulista Estação Liberdade, tem lançado vários pequenos textos de caráter ensaístico, o quarteto Ensaio sobre o dia exitoso, Ensaio sobre o cansaço, Ensaio sobre o louco por cogumelo e Ensaio sobre a jukebox. O título dessas pequenas obras não deixa dúvida a respeito da filiação de Handke com as ideias, embora certo trecho recente da vida do escritor esteja marcado por certa polêmica justamente nesse campo. Explica-se: em 2006, ele apoiou publicamente o ex-presidente do que continuou sendo chamado de Iugoslávia (uma junção de Sérvia e Montenegro), o sérvio Slobodan Milošević, e, para fazer isso, desqualificou o genocídio de bósnios de que o ditador vinha sendo julgado pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia, ao morrer, nesse ano. Handke falou no funeral, o que desceu quadrado na comunidade intelectual. Além disso, em 2014, cinco anos antes de receber o principal prêmio literário do planeta, ele tinha declarado que o Nobel devia ser abolido porque não passava de circo. Bem, os detratores evidentemente não se esquivaram da piada a respeito de quem seria o palhaço, portanto, quando ele resolveu aceitar ser recipiente do prêmio.

É sempre bom, nesses casos, saber separar o cidadão civil, geralmente um cretino, daquilo que ele consegue produzir em termos de literatura. Também nesse caso Handke não está sozinho. Louis-Ferdinand Céline, Mario Vargas Llosa e Jorge Luis Borges, por exemplo, lhe fazem companhia, por diferentes motivos, mas dentro do mesmo modelo esquizofrênico de separação entre autor e obra que o leitor às vezes se vê compelido a fazer em benefício da literatura e em detrimento à vida pedestre. Basta um pouco de leitura do novo romance de Handke para verificar como isso funciona na prática.

Justiça que tarda
A segunda espada se anuncia como história de vingança, um dos temas mais óbvios e recorrentes não só da literatura, mas de extensa cinematografia, e no entanto não se trata em absoluto disso no livro, mas do período de preparação daquilo que se anuncia como vingança. O vingador, no entanto — e o liame entre narrador e autor também é difícil de se pentear, nesse livro —, se atém a refletir a respeito da vontade de vingança, nos idos de maio, um mês recorrente na obra do escritor, talvez por ser o auge da primavera no continente europeu.

Como sempre, o livro avança não por texto contínuo, mas por blocos fixos, sem entrada de parágrafo, como se fossem realmente anotações ainda em estágio fragmentário do que será depois alinhavado como texto fluente, mas o estágio nunca é efetivamente alcançado e portanto restaram blocos de anotação sincopada, dados à condescendência do leitor. A contemplação no espelho do próprio rosto, o desejo de vingança “de longa data devida”, o discurso que chega a preparar para o momento de despejá-lo contra o oponente, tudo isso demora muito e se apresenta ao leitor em ritmo lento, ponderado, quase exaustivo, mesmo que o narrador esteja ao longo do texto em permanente deslocamento pela malha urbana da cidade, com citações a metrô, ônibus, estações, bondes, trens.

Não é a vingança em si o que interessa, nem mesmo sua motivação algo sinuosa, ou pelo menos mantida sob sigilo por boa parte do texto. O que interessa é a reflexão a respeito nem mesmo do teor da vingança, mas do momento que o escritor atravessa. Ele fala do subúrbio a sudeste de Paris onde reside, dos latidos de cachorros, da paisagem, mesmo de certas águias que sobrevoam a região:

Diante de uma delas, num meio-dia silencioso de alto verão, digo e escrevo que tive uma visão um tanto apocalíptica, ou de terror, ao imaginar que estava sobre o solo tão sozinho quanto ela, sob sua mira, a mira daquela águia gigantesca, como último ser humano, visível através da claraboia celeste, aqui, sobre a superfície terrestre.

É assim a prosa de Handke: meticulosa, minuciosa, a explorar um presente eterno que parece se arrastar indefinidamente, num modelo de sintaxe que cascateia entre conceitos articulados, embora distintos. O leitor deve saber que é o trajeto, a reflexão, os miúdos pormenores o que mais interessa. Se tiver essa disposição, tudo bem, a obra o supre com elegância e de maneira contínua com reflexões que a certa altura parecem intermináveis.

O narrador, portanto, permite ponderar a respeito da ausência de barulho dos contêineres de lixo na madrugada, ou barulhos que surgem à distância mas são mais ou menos indistintos, para depois introduzir uma velha história bíblica a respeito de um homem arrastado pelos cabelos para longe de seu lugar de nascimento, por Deus ou por outra força superior. Ele tem certa inveja do sujeito, “desejava ser agarrado por trás, pela minha cabeleira, levado pelos ares, graças a alguma força misericordiosa, para longe”. Do lugar em que estava? Não exatamente, apenas do aqui e agora. Sem ter quem o puxe, puxa-se ele mesmo pelos cabelos, dirige primeiro a violência contra si, antes de assestá-la a alguém distinto. Depois comenta a respeito dos vizinhos, ou da mulher que entrega cartas e que anuncia para breve a aposentadoria. Trivialidades da vida cotidiana, enfim, com as quais ele parece se deleitar grandemente. Pode ser o ruído de um graveto, o detalhe visual de uma cena, o despertar da imaginação: “Aqui e ali, também ali e mais ali, abria-se a perspectiva de um novo início, felizmente indefinível, mas, ainda assim, alguma perspectiva, graças à qual o ar fresco haveria de soprar”. Mas afinal, está a se perguntar o leitor mais aflito, é de esperança que se trata? De olhar minucioso? E onde fica a danada da vingança, o derramar do sangue, a honra lavada? Calma, primeiro, tem um bar no caminho, o Bar dos Viajantes, com seu séquito mal ajambrado de bebuns contumazes, com os quais é preciso confraternizar, na companhia ainda da mulher do Departamento de Assistência Social, que também se incorpora aos deserdados do mundo, ainda nos degraus que dão acesso ao bar. E então, depois de tanto observar e descrever, ele se dá conta de que falta algo, e percebe que esse algo que falta é a continuação. Mas continuação do quê? Não está claro, talvez não precise estar, cada leitor preencha com o que achar melhor, escritores não existem para formular respostas, mas para fazer novas perguntas, do tipo inquietante, é talvez o recado subjacente do texto.

Quando anoitece, ele se dirige a outro bar, o Bar das Três Estações, onde o dono lhe mostra um paletó novo, Armani. “Respeitável”, comenta, lacônico, o escritor. A televisão está ligada, exibe um jogo da liga inglesa, ou espanhola, e ele também se atenta à clientela. Depois conclui, a respeito de si: “Eu tinha o hábito de sempre desviar os olhos dos acontecimentos internos para os externos, tão distantes quando possível, menos para os céus do que para o chão e a terra”. E então a conversa deriva para a vingança. É preciso matar uma pessoa. Ele joga conversa fora, sugere ao léu que poderia pagar um bom dinheiro para algum interessado que se encarregue de matar alguém por procuração.

É nesse ponto que o leitor chega à informação do que ele deseja se ver vingado. Uma pessoa ofendeu sua mãe, por meio de palavras. O ato solicita nada menos que vingança. Mas o interlocutor, de origem árabe, portanto supõe-se que conheça os pormenores mais violentos que envolvem vinganças, lhe adverte e sentencia: “Você mesmo é que tem de fazer isso”. Um novo anúncio é feito: a vingança é contra uma mulher. Quando alguém se adianta e se oferece para executar o serviço, o escritor recua, diz que estava apenas de brincadeira. Mas evidente que não desistiu da ideia da vingança. Volta para casa, dorme, reflete mais um pouco. Está decidido. Quando vai sair novamente, pensa a respeito de que livro levar consigo, Os trabalhos e os dias, de Hesíodo? Um Simenon? O Evangelho Segundo Lucas? Não, livro algum pode ser levado como companhia, afinal, para essa modalidade de tarefa.

A hesitação a respeito da presença ou ausência de um livro numa potencial cena de crime deixa claro que esse sujeito jamais vai cometer vingança, por mais que se creia resoluto e determinado. Esse é claramente o sujeito da palavra, não da ação. Lá adiante se fornecem mais detalhes a respeito do que efetivamente aconteceu e despertou a suposta fúria do narrador. Trata-se de uma mulher que escreveu artigo de jornal contra o escritor, mas trouxe para dentro da discussão a mãe, e isso, há de se convir, não se faz. Acusa-a de ter festejado a anexação da Áustria pela Alemanha, de ter sido membro do partido nazista. Não é acusação simples, como se constata. Acresce-se, para quem conhece a vida pessoal do escritor, que sua mãe cometeu suicídio, no início da década de setenta. E não há motivo aqui para se separar narrador de autor, nada indica que essa separação convencional deva estar em cartaz, no caso. Não era uma acusação menor ou lateral, na reportagem, porque houve também uma fotomontagem que localiza a mãe dele numa multidão que recebeu Hitler em júbilo, em março de 1938, no centro de Viena.

A caminho da exaustão
Ainda assim, é difícil acreditar na execução da vingança, dada a natureza digressiva do autor e sua demasiada demora em colocar o plano em prática. Ou bem, não a vingança convencional, não o derramamento de sangue, a morte brutal, violenta, não esse tipo de violência, mas outro, a violência das palavras, a recusa por exemplo a nomeá-la, a conceder-lhe um nome dentro da narrativa. Em outras palavras, o que está em andamento é uma típica vingança de escritor. “Para ela, a malfeitora, assim como para seus semelhantes, não havia lugar na história, nem nessa nem em qualquer outra”, ele anota, enquanto sonha que o lápis da mulher vai se partir em dois e isso a impedirá de seguir tomando notas. Ele nem mesmo a confronta. Basta essa vingança elegante, a contrapelo das expectativas anunciadas.

O que parece claro, à parte as controvérsias políticas em que Handke tem se engajado nos últimos anos, é que o mesmo modelo de prosa se solidifica nele, cada vez mais. Muitos vão chamar a isso de ter estilo (e é preciso mantê-lo em exercício). Mas a verdade é que essa redundância sistemática, a certa altura, provocará cansaço, mesmo no leitor mais benevolente, que julgava encontrar em passagens de A tarde de um escritor ideias realmente originais, como aquela que menciona o papel de uma “escuta adicional” que surge em decorrência de lançar o olhar para dentro de si, e que o leva a propor um modelo de simbiose entre a escuta e a coescrita, “como uma tradução, na qual a questão era usar uma secreta fala original em lugar de um modelo visível”. Naquela época, parecia haver consistência no texto e no que ele pretendia dizer. O de agora se ressente de outra coisa. Parece resultar de uma reciclagem persistente de si mesmo e, quanto mais acumula prêmios, comendas, títulos de doutor honoris causa, mais difícil é perceber o que é realmente talento, o que é cansaço (lembre-se do título de um dos livrinhos da série Ensaio sobre). O cansaço não é só de uma época, é do próprio escritor, do limite e do esgotamento de suas ideias a respeito do mundo, mesmo que apareçam sob a nova capa da controvérsia política. E o fato de ser política aponta para talvez os limites mesmo da atuação da literatura num mundo que cada vez mais parece precisar menos (ou se iludir de que é assim) de literatura. Nem a tradução se oferece mais para salvá-lo de um mundo em ruínas.

A segunda espada: uma história de maio
Peter Handke
Trad.: Luis S. Krausz
Estação Liberdade
176 págs.
Peter Handke
Considerado um escritor de vanguarda no fim dos anos 1960, o austríaco Peter Handke participou de grupos de escritores e chegou a manter uma editora com outros colegas na Alemanha, para onde havia se mudado. Aliás, ele se mudou bastante, de cidade dentro de um mesmo país, ou de país. Além de Alemanha e Estados Unidos, morou, aliás mora, na França, embora tenha passaporte iugoslavo desde o fim da década de noventa. Colaborou com Wim Wenders em vários roteiros, inclusive do seu livro O medo do goleiro diante do pênalti, mas também nos originais Movimento em falso e Asas do desejo. Envolto em controvérsias ao exibir posicionamentos políticos, ele ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2019 por “explorar a periferia e a especificidade da experiência humana”, conforme a declaração da academia sueca que concede o prêmio. Antes disso, acumulou várias outras premiações, inclusive muitas que levam nomes de escritores, como o prêmio Georg Büchner (1973), o Thomas Mann (2008), o Kafka (2009) e o Ibsen (2014).
Paulo Paniago

É jornalista, escritor e professor. Venceu prêmio Cidade de Belo Horizonte com  Quando termina. Publicou também os ensaios de  Outra viagem: Machado de Assis e a revolução da literatura brasileira e o romance Com meus dentes de cão.

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