Nosso petróleo. Nossa selva amazônica. Nossa música popular, nossa literatura. Nosso aquífero, nossa língua, Nossa Senhora! Somos tão possessivos. E é engraçada a conjugação no plural quando o Eu é rei. Mas onde quero (tentar) chegar é no valor das coisas, do mundo e da gente. O romance de que estamos a tratar aqui, em seu título original em francês, Nos richesses, significaria imediatamente Nossas riquezas. Na edição brasileira ganhou o título As verdadeiras riquezas, escolha de tradução que já desloca o sentido de posse, favoravelmente.
Ouvi uma vez a história de um homem que amava literatura e ficou cego — não, não é Borges. Esse homem que amava as letras escutava a filha e outras pessoas lerem para ele e declarava seus livros no imposto de renda. Nos quadradinhos relativos aos bens, onde se costuma incluir carros, casas, apartamentos, fez questão de declarar livros — companheiros aos olhos, depois aos ouvidos. Ou pela presença.
Estamos tratando de um romance que apresenta não coleções de armas de fogo ou cabeças de animais caçados, mas os livros como um valor; a presença de uma livraria-editora-biblioteca fundamental para habitantes de um bairro de Argel, capital argelina, na beira africana do Mediterrâneo.
As verdadeiras riquezas, à leitura desse romance da escritora Kaouther Adimi, parece mesmo o título mais adequado possível, pinçado pelo sentido geral e pelo nome da livraria mesmo — Les Vraies Richeses —, que é central no livro, fundada por Edmond Charlot. Personagens e lugares históricos passeiam nessa peça de ficção, implodindo o real.
O que é real?
Existiu um homem chamado Edmond Charlot, ele fundou a livraria que também emprestava livros, como biblioteca, e foi editor, o primeiro de Albert Camus. Foi um sucesso e foi um fracasso, vendeu muito, lançou autores importantes, faliu editora, perdeu livraria, nunca saiu desse negócio complicado entre amor, papel e contas a pagar.
O romance traz um personagem que o atravessa, mas não tem força para ser chamado de principal. Ainda bem. As histórias que se cruzam, todas, são muito marcantes. O entrelaçamento é o que pode haver de mais real na ficção: a vida é emaranhada. Esse personagem é Ryad, jovem que viaja da França à Argélia para fazer um trabalho braçal chamado de estágio, que valeria para sua formação na faculdade. Na prática, precisa desmontar uma antiga livraria, livrar-se do que há dentro, pintar as paredes, consertar e entregar para que ali fosse aberta uma loja de sonhos — os doces, de comer.
Mas tem um argelino que trabalhava ali, Abdallah, a cercar Ryad, observando seu trabalho de reforma e destruição. Tenta convencê-lo a não jogar fora os livros. O rapaz mal entende, não é leitor, mal reconhece os nomes nas lombadas. Mas vai se aproximando, sendo seduzido. Detalhe: a livraria havia sido transformada em biblioteca pública pelo governo argelino, mas numa dessas mudanças de cargos a que estamos muito acostumados no Brasil, decidiu-se pela venda — o Estado afinal não tem tempo para essas coisas. E o acervo? Ignorado, tratado como problema, lixo.
As verdadeiras riquezas é um livro sobre o valor dos livros, que a autora demonstra tanto pela dedicação por parte de alguns dos personagens quanto pelas atitudes de desprezo de outros.
Manual de leitura
Esqueça o manual. Sei lá como se deve ler um livro, a leitura é mais prática, convívio que envolve o hábito da releitura, mais do que um passo a passo. Este romance percorri com ajuda da mais instável e gigantesca enciclopédia da humanidade, o Google. Edmond Charlot, a livraria, essa rua “Hamani, antiga rue Charras” em Argel… retomar algo da história da França com a Argélia, que desfia as cordas que sustentam nossa admiração pelo país (admirar um país, aliás, é algo estúpido em si: o que é um país?). Mas também poderia ter lido na chave da ficção exclusivamente, sem nenhuma consulta. Nesse caso, que personagem sensacional esse Edmond Charlot!
As escolhas narrativas de Adimi chamam a atenção. Talvez demais, porque chegam a atrapalhar. Mas essa impressão está bem longe de alguma certeza. Uma delas é um narrador onisciente que representa uma coletividade, os moradores dos arredores da livraria Les Vraies Richesses — fundada por Edmond Charlot em Argel, em 1936. Esse narrador é as pessoas nesse lugar, ao longo dos tempos: representam o povo argelino, que naquela data estava submetido ao governo francês, invasor, colonialista. A escolha permite à autora transmitir muito do sentimento e do ponto de vista argelino sobre o domínio francês. Ao mesmo tempo causa estranhamento quando este narrador sabe o que se passa no pensamento e na vida de Ryad, em 2017, quando vai cumprir sua ingrata missão de limpar o imóvel onde funcionara a livraria. Talvez isso crie um problema de verossimilhança, um estranhamento que atrapalhe, ainda que de forma não consciente. Talvez, repito.
Outra escolha narrativa é o diário de Edmond Charlot que permeia todo o livro, dando o ponto de vista do editor e livreiro ao longo de algumas décadas, nos aproximando das minúcias do trabalho, das angústias e alegrias no mundo dos livros. Leio sem saber se este diário é uma transcrição fidedigna ou romantizada. Sem essa informação, tomo a segunda opção como verdadeira. Mas a pulga faz festa atrás de minhas orelhas.
Pelo diário a gente vivencia a realidade editorial no século 20. Tem a relação de Charlot com autores que viriam a se tornar famosíssimos, como Camus e Saint-Exupéry, sua relação com o sucesso das edições, ao mesmo tempo o fracasso nas finanças, dificuldades em comprar papel, criando saídas com o material possível de impressão e costura — órgãos do livro, suas veias, vísceras, aquém e além do texto e da alma. Diria por isso que é uma delícia especialmente para quem atua no meio editorial hoje em dia. Mas esbarro de novo na origem dos dizeres de Charlot neste livro: são o que escreveu ou o que imaginou a escritora? Isso muda a apreensão do leitor?
Esta resenha é claramente falha pela impossibilidade de analisar a qualidade da tradução. Nelson de Oliveira, pelos argumentos que expõe no livro Bangue-bangue de bolso, condenaria esta análise por tal motivo. Mas há um fenômeno evidente que é o livro em si, em português, que por si fala, sem comparações, com o leitor comum. Nessa condição é feita a análise de um texto traduzido também. E nessa condição, lamenta-se uma quantidade grande de pequenas imperfeições de revisão. O problema desses erros, mesmo quando são óbvios, é que plantam dúvidas desnecessárias no leitor. Quando há uma construção menos óbvia do texto, a gente tende a considerar que pode não ser bem aquilo. Ou seja, atrapalha. Tão fundamental, é chato a gente se lembrar do trabalho de revisão quando ele falha. Tão fundamental, devia ter mais valor tanto moral quanto prático ($$$) para as casas editoriais e seus gestores, em geral.
Feitiço
O mais importante é que se alguém perguntar se este livro vale a atenção, digo que sim. São poucas páginas para tanta significação: os sofrimentos das pessoas no tempo da guerra; os sofrimentos causados pelo domínio totalitarista da França sobre a Argélia nas pessoas, no dia a dia dos argelinos tanto em Argel quanto em Paris; os fazeres da literatura e da publicação de livros, por meio de Charlot; a importância da preservação da história nas cidades; a importância das casas de livros, tanto livrarias quanto bibliotecas, para a vizinhança; a responsabilidade das decisões ou inações de executivos e políticos, entre outras questões que a cada leitor vai ter dimensões diferentes (e dimensões diferentes em cada leitor de acordo com seu momento na vida). Lembro de novo do amigo saudoso João Carlos Marinho: “O que importa é a vida do livro”, referindo-se a defeitos narrativos de grandes clássicos. As verdadeiras riquezas da literatura estão nesse livro de Adimi.