Algumas obras de arte são indissociáveis da vida de seus autores. Sobretudo no caso de trabalhos que refletem existências marginais e experiências tão extremas que a expressão artística se torna uma válvula de escape e um ato de libertação. Assim ocorre, por exemplo, com a produção enquadrada no que ficou conhecido como Art Brut ou Arte Outsider, produzida por pessoas de fora do meio artístico, a exemplo dos internos em hospitais psiquiátricos. No Brasil, os trabalhos mais conhecidos desse tipo de arte são do artista plástico Artur Bispo do Rosário e da poeta Estela do Patrocínio, ambos internos da Colônia Juliano Moreira, onde passaram a maior parte de suas vidas. Como destaca a psicanalista e doutora em filosofia Viviane Mosé, que publicou um livro com a transcrição das falas de Estela, a poesia da interna era singular porque “organizava a tensão gerada entre ordem e ausência de ordem de forma delirante, móvel, fundada na afirmação de sua fragmentação”.
Delirante, móvel e fundada na afirmação de sua fragmentação é também a escrita de Raphael Vidal em Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez, seu primeiro romance. Não que o escritor se insira entre os isolados da sociedade. Ao contrário, pelo que li, Vidal parece estar para a vida social do Rio de Janeiro como a agitação na região portuária para o Morro da Conceição, onde ele mora e dirige a Casa Porto, fusão de restaurante, boteco e centro cultural. Mas fica evidente que o autor conhece “de dentro” a realidade periférica que retrata, a cada frase ele se inscreve em meio aos seus protagonistas, figuras que vivem à margem e se encontram em constante estado limítrofe: os moradores de rua, os desocupados, os que não se encaixam, os abandonados em correria pela cidade, essa “gente que não sabe sofrer por faltar comparação com o contrário”. Ou, como ele diz em uma entrevista, trata-se de uma “parcela da nossa população da qual não guardamos nenhuma memória, nem números: os brasileiros que sobrevivem abaixo da informalidade”.
Com uma linguagem fundamentada na oralidade carioca, percussiva e de ritmo lancinante, o autor, quase como um DJ, monta uma espécie de megamix narrativo no qual os fragmentos das histórias se inserem uns nos outros, sobrepondo-se em alta velocidade para compor uma justaposição de instantâneos do dia a dia dos personagens. Assim é construído um caleidoscópio de relatos e retratos por vezes difícil de identificar até mesmo para o leitor mais experiente e ambicioso. É como se a escrita estroboscópica de Raphael Vidal lançasse apenas curtos flashs sobre a contínua movimentação de seus anti-heróis, tornando visíveis as realidades daqueles que normalmente atravessam o nosso campo de visão sem ser vistos e que deixam, quando muito, a lembrança difusa de um vulto que cruzou rapidamente o nosso caminho.
O coro dos excluídos
Os personagens deste curto romance são então os representantes desta camada social quase invisível, os que não têm história. Há o menino da favela que solta pipa de cima de uma laje e o “quase homem” (esse mesmo menino na passagem do tempo?), que, mal crescido, já…
entendia seu lugar. Desenrolava seu trocado, lustrava, polia, cuspia, as moedas no bolso, nada mal. Tudo nos trinques pra esquecer das lembranças. Rodava biroscas, balcões, muquifos. Inferninhos. Pinçava com o olhar, curioso, rondando. Certo de que aquilo tudo valia para um prato.
Há a travesti cuja memória de menino (mais uma vez, o mesmo?) se perde no limbo “em que se transformou o passado”. Ou o bêbado, “chumbado, tonto. Mamado”. O louco, o abandonado, rasgado, sujo, jogado, estirado, duro, teso, liso. Ou o jogador, o errante, o velho que perdeu tudo, o que não servia para nada, o instrumentista.
Todas estas figuras podem ser lidas como existências individuais, mas também como diferentes versões de uma mesma realidade. E fica-se com a impressão de que a intenção do autor é mesmo não definir os contornos exatos de seus personagens porque incontornáveis são os destinos daqueles que retratam. Assim, os rostos que emergem e desaparecem das páginas do livro em sucessão vertiginosa aparecem como máscaras, os protagonistas somam vozes numa espécie de coro dos excluídos.
Aliás, na minha opinião, o romance só desenvolve sua verdadeira força quando lido como o canto de um coro teatral à moda do teatro grego: a fala de um corpo homogêneo, não individualizado que comenta a realidade com uma voz coletiva, revelando ao leitor o que os personagens não podem ou não sabem dizer, como os seus medos e desejos ocultos.
Dentre estas vozes sobressaem-se a do “menino” e a da “travesti”, que, no entanto, também podem ser apenas dois lados do mesmo espelho. O menino está no começo e no fim do livro. A travesti perpassa as estações desta narrativa intrincada e esfíngica como uma Ariadne perdida no próprio labirinto. O que a conduz, assim como aos outros personagens, é a necessidade desesperadora de encontrar uma saída. E é aí que seu destino se realiza como incongruência: quanto mais eles correm para encontrar uma porta de escape, mais se veem emparedados.
Morte
O que une todas essas figuras, sejam elas de fato portadoras de histórias individuais distintas ou apenas diferentes planos do mesmo corpo fragmentado em sua constante mobilidade, é a sensação de insignificância diante da finitude. E é, paradoxalmente, esta consciência de que a cada passo avançamos para mais perto da morte, é a iminência da paralisia final que parece impulsionar os personagens a continuar correndo e prosseguir lutando.
A morte, evitada e desejada, é punição e redenção num só movimento de chegada, é o território onde toda a busca termina, o “lugar para cair e fechar os olhos de vez”. Lendo-se este pequeno mas denso livro com atenção, nota-se que é dela que se fala o tempo todo. É ela, a morte, que está por trás do cerol feito pelo menino para “derrubar as voadoras” alheias, ela está por trás da pipa que se perde, está na resignação do homem, “cuspido pela liberdade, largado de apego”, na perseverança cansada da travesti “abusada, (…) fingindo ser a dona da banca com o traçado no meio copo”. A finitude está na penumbra do quarto, onde “sobre o colchão há alguém atormentado, encoberto, encolhido como um feto ainda no ventre materno”, ou nas flores que voam fazendo um espetáculo ao lado do velho caído, “lambendo pedra”. A morte é a companheira do “moleque de rua cheio de fome e de sede”, do início ao fim:
Aquele moleque cheio de fome e sede adulteceu e fez morrer. Ainda se escuta o nome dele pela janela, voando as sílabas pela escadinha que dá na rua. Desistiu, não há nada mais: o bonde passou e ele caiu nos trilhos. Esperou o Zé Maria vir buscá-lo pelo pé. Lamentou o tédio de aguardar a morte sem ao menos um pito. E, quando ela chegou, restou apenas carne: sua história já escapara, ao lado dos seus mais chegados, pois que todos morrem com a vida que se renova. — A de sétimo dia é quinta-feira.
Na morte, as pontas se unem e o destino do menino que é um coro se realiza. Sua vida é representativa para todos os que, como ele, morrem diariamente, insistindo em viver.