Os poemas terminam antes de terminar. Essa é a matriz do pequeno e sedutor Hoje como ontem ao meio-dia, que toma o título de um verso de Francisco Alvim. Terceira obra de Heitor Ferraz, que antes publicou Resumo do Dia e A mesma noite, representa a madureza de um estilo que encontrou na simplicidade uma forma de identificar o excesso de deslugar da vida contemporânea. Tudo parece não acontecer e acontece, sem pressão ou embaraço. “Aqui, perdoem,/ não há nenhum pensamento.” Os poemas concentram-se no espaço inútil, na monotonia ativa, de longa espera no hospital, açougue, cafés e viaduto. Armado de sutilezas, o escritor captura o tempo doméstico, recluso, em meio ao fluxo impessoal da grande cidade. Há descrições que se detêm no ritual de um homem frente a sua torta de morangos ou a que traça a evolução do leite da panelinha de Manuel Bandeira às garrafas de plástico. Alguém pode perguntar: afinal, o que ele quer dizer? Nada, porque o nada já é bem movimentado. Com um domínio raro, denuncia seus vizinhos com sintética lábia: “Em três quarteirões/ seis salões de beleza/ uma delegacia.” A coloquialidade lúdica pretende perversa. Sob a fachada inofensiva de relatórios, o poeta extravasa a tensão dos passeios, deslizando entre os sinais da morte (“Todas essas horas são curtas e aguardam a invariável sirene/ que estoura vermelha e azul no muro das casas”) e a sexualidade latente (esta, sempre expressa na figura dos seios, fetiche também dos livros anteriores do autor). A memória coletiva não deixa rastro, muito menos o legado pessoal prospera entre filhos, divórcios e jóias enterradas. Ferraz montou um guia de avenidas, um caderno de logradouros e escolhe aleatoriamente seu destino. As andanças são desorganizadas, equiparando lembranças da infância às observações gratuitas. A voz poética soa como a de um Baudelaire aposentado, decupando o “sussurro das sandálias lixando as pedras da rua” e reproduzindo “um certo prazer/ irregular de quem anda/ se mistura, e funde”. Os poemas terminam antes de terminar. Há uma fatalidade que neutraliza a explicação. Nem tudo o que é vivido pode ser explicado. Heitor Ferraz é um dedo-duro do invisível.