Vida que segue

Nos contos de "Perifobia", Lilia Guerra enxerga na periferia matéria literária que não se limita a denúncias sociais
Lilia Guerra, autora de “Perifobia” Foto: Thaís Cristina
01/08/2025

O gesto crítico de ler Lilia Guerra como descendente literária de Carolina Maria de Jesus seria insosso se não fosse o evidente movimento da autora de se colocar neste lugar. A aproximação entre as duas não se deve ao mero fato de ambas serem mulheres negras que escrevem sobre a periferia de São Paulo, mas à presença de referências textuais e paratextuais a Carolina nas obras de Guerra.

Se a capa de O céu para os bastardos, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2024, lembra a imagem da autora mineira, nos contos de Perifobia, é recorrente personagens com variações do nome Vera Eunice. Ora é Vera Eunice, ora é Eunice ou ainda o simples Nice — o nome da filha de Carolina batiza diferentes mulheres nas narrativas de Guerra, estabelecendo um vínculo simbólico entre as duas autoras. Nesse sentido, Guerra, seus personagens e sua periferia têm ascendência literária específica: a obra de Carolina Maria de Jesus.

No entanto, não são as imagens do quarto de despejo ou da fome amarela que predominam nos contos de Perifobia. Apesar de presente, a exclusão social se coloca como pano de fundo para histórias que investigam diferentes dramas humanos. A maternidade, a paternidade, o amor em suas variadas facetas — todos temas de narrativas que representam moradores da periferia para além de sua posição social. O maior feito de Guerra está aí: compreender a potência humana de seus personagens e não só as agruras sociais enfrentadas por eles.

Originalmente lançado em 2018 e finalista do prêmio Rio de Literatura, em 2019, Perifobia é um livro de contos com certo aspecto de romance inacabado. Em parte, isso se deve à recorrência de personagens ao longo das diferentes narrativas. Como Guerra tem afirmado em entrevistas, interessa-lhe a estratégia de mesclar histórias como forma de mostrar que a vida segue apesar de problemas não resolvidos. Dessa maneira, seus personagens transitam não só entre contos, mas também entre livros.

Contudo, a estratégia presente em Perifobia é mais elaborada do que a reincidência de personagens. A primeira metade do livro enfoca o mesmo grupo de indivíduos, os contos unidos por um fio narrativo. Antes da relação entre os personagens tornar-se explícita, entretanto, já é perceptível o encadeamento das narrativas. O primeiro conto, Rascunho de Amaro, por exemplo, encerra com uma reviravolta relacionada à maternidade e o tema acaba por ser central no conto seguinte, Artigos de luxo, com novos personagens. Essa segunda narrativa, por sua vez, termina com uma reviravolta a ver com o abuso sexual infantil — temática aprofundada no terceiro conto, Entre roseiras e jabutis, mais uma vez com personagens diferentes.

Nesse sentido, Guerra costura as narrativas iniciais de forma que não haja somente diálogo entre elas, mas também dependência. A primeira metade do livro narra a história de amor entre Tiago e Isabel — as crianças de Artigos de luxo e Entre roseiras e jabutis, respectivamente. O enredo é desenrolado aos poucos, com as relações entre os personagens se revelando com cada conto. A dependência entre as narrativas fica evidente em como, por exemplo, para entender a reação de Isabel ao segredo de Tiago no conto Patuá, o leitor precisa ter lido sobre sua infância em Entre roseiras e jabutis e saber da própria relação da personagem com o abuso infantil.

Aspecto inacabado
Se, por um lado, a costura entre os contos pode ser um ponto positivo do livro, com o leitor surpreendido com os modos que o personagens se entrelaçam, por outro, é também responsável por certo aspecto inacabado da obra. Visto que a primeira parte se aproxima de um romance não levado a cabo, os personagens por vezes parecem esvaziados. Com diálogos superficiais, o atrito posto pela narrativa entre Isabel e Tiago é resolvido sem drama. Desse modo, o enredo elaborado na primeira metade do livro seria melhor aproveitado no âmbito do romance, com mais espaço para explorar a história do casal assim como seus ramos.

Os pontos mais altos da obra encontram-se quando Guerra abandona a história de Isabel e Tiago. Uma fresta na janela, por exemplo, explora a temática da violência doméstica sem desconsiderar a habilidade do leitor de conectar os pontos por si mesmo:

Conforme a barriga crescia, aumentava também a agressividade dele. Grávida, escorreguei na cozinha pela primeira vez. O braço direito ficou roxo. Fui proibida de ir ao médico até que os hematomas desaparecessem e acabei faltando a várias consultas do pré-natal.

Sem didatismos, Lilia Guerra confia que o leitor entenda que a narradora em primeira pessoa esconde o abuso sofrido nas mãos do marido. Ao longo do conto, a violência física é descrita como quedas, tombos, batidas — mas é perceptível que são desculpas criadas pela personagem. “Ele queria que eu permanecesse à disposição”, ela diz em dado momento, “para cair sempre que ele achasse necessário, sem correr o risco de que alguém notasse”. A imagem de estar à disposição do marido para cair — isto é, mentir para protegê-lo — captura a perversidade do abuso físico e psicológico.

Já os contos A dita e Izildinha plasmam certa beleza de relações duradouras. No primeiro, o ciúme gerado pela repentina mudança no comportamento da companheira é posto em xeque quando o motivo nobre de seus sumiços é revelado. O segundo, por sua vez, explora a guerra silenciosa travada por um casal devido a uma gata, mostrando as concessões feitas na vida a dois para ver o outro feliz.

A música também tem presença forte em Perifobia. Além de ser uma constante no cotidiano dos personagens, cada conto inicia com trechos de sambas. Sábado de Aleluia e Uma rua no passado, por exemplo, são unidas no que ambas têm epígrafes de Minha, canção de Cartola. A repetição da música se deve a como Sábado de Aleluia e Uma rua no passado tematizam a memória do que se foi, seja devido ao Alzheimer ou à passagem do tempo.

Porém é outra letra de Cartola que vem à mente ao final da leitura de Perifobia. “Finda a tempestade”, canta o carioca, “o sol nascerá”. Talvez seja esta a epígrafe cabível para um livro que enxerga na periferia matéria literária que não se limita a denúncias sociais. Pois no universo plasmado por Lilia Guerra há vida, com todas as suas angústias e suas felicidades. E a vida sempre segue, apesar de tudo.

Perifobia
Lilia Guerra
Todavia
156 págs.
Lilia Guerra
Nasceu em São Paulo (SP), em 1976. É autora de O céu para os bastardos — romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2024 —, Rua do larguinho, Amor avenida, entre outros. Trabalha como auxiliar de enfermagem na capital paulista.
Allysson Casais

É doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense.

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