Vida: modos de brincar

O grotesco caracteriza a Geração Zero Zero da literatura brasileira. Ela existe?
Ilustração: Ramon Muniz
01/11/2004

0. “Me odeiam! Me odeiam e o que eu fiz? Só cuidei da vida deles por eles!” “Calma. Não é sua culpa.” Delia fungou e fitou as placas do teto: “Então de quem é a culpa?” “Deles. Não, não é deles. Não é de ninguém.” “Tem que ser de alguém.” “A culpa não é deles, Delia! Eu não vou dizer o que você quer ouvir. É que nossa geração… veio assim de fábrica.” “Ah! Geração. Como veio essa de nos classificarem por idade? Isso se chama horóscopo, Yuri, é sistema pra ler nosso futuro.” (No shopping, Simone Campos)

1. Em meados do século 20, Fernando Ferreira de Loanda organizou o Panorama da nova poesia brasileira. Essa antologia foi o primeiro balanço da Geração de 45. Na nota do antologista, as palavras bombásticas: “Somos na realidade o novo estado poético, e muitos são os que buscam o novo caminho fora dos limites do modernismo”. De fato, a poesia desse grupo era a renovação da tradição parnasiano-simbolista contra a qual, trinta anos antes, reagira a Semana de 22. Os pontos em comum entre os diversos poetas eram de ordem estética: a penumbra psicológica, a aversão ao prosaico, a dicção nobre e os cuidados com a métrica. Mas os pontos incomuns também não eram poucos. Para saber quais eram, basta cotejar a poesia de Péricles Eugênio da Silva Ramos com a de João Cabral de Melo Neto, a de Paulo Mendes Ramos com a de José Paulo Paes. A diferença de postura entre esses poetas hoje salta aos olhos.

2. Por mais espantoso que possa parecer, Hilda Hilst, Renata Pallottini e Carlos Felipe Moisés já foram citados, na juventude, ao lado dos poetas da Geração de 45. Espere aí, espantoso por quê? Não é próprio da juventude a movimentação, o ziguezague elétrico? Então, nada mais natural que os jovens escritores ora estejam aqui ora ali. Ora dentro ora fora das órbitas que eles mesmos ajudam a traçar.

3, Na década de 90, como nas décadas anteriores, quer você tivesse sorte ou não, era muito difícil conseguir ser editado. Principalmente se você ainda nem sequer havia estreado. O alto custo de produção dos livros fazia os editores pensarem duas vezes antes de lançar a coletânea de contos, de poemas ou o romance de autores jovens e desconhecidos. Com o advento da informatização, o custo de produção do livro caiu, o número de editoras cresceu, assim como o número de coletâneas de contos, de poemas e romances publicados. Hoje, caso não tenha a paciência necessária para suportar o lento processo de seleção das editoras, com mil dólares qualquer novato publica seu livro de estréia. Livro com cara de gente grande, livro que sai da gráfica com a mesma qualidade que o das grandes editoras. A explosão de títulos, cujos estilhaços impressos e encadernados não param de passar, é o resultado da massificação dos meios de produção. Será que no coração dessa nuvem de fogo e faísca está se formando o movimento que no futuro será chamado de Geração Zero Zero?

4. De que maneira as gerações se formam? É necessário que além de professarem a mesma fé os autores queiram pertencer a uma geração, para que esta passe a existir? Ou, ao contrário, basta que apresentem semelhanças ideológicas e literárias para que, independentemente da sua vontade, sejam incluídos em uma? O concretismo, por exemplo. Ninguém nunca se referiu à Geração Concreta, apesar de dezenas de poetas das mais diferentes procedências e idades terem seguido à risca as normas estabelecidas por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Mas todos falam na Geração Mimeógrafo. Ou na Geração Beat. Outra dúvida: o recorte meramente cronológico é suficiente para se definir as gerações? É legítimo, no âmbito do conto brasileiro, falar na Geração 90 ou na Geração 70?

5. Penso que sim. Penso que é legítimo falar na Geração 90 e na Geração 70. Até mesmo na Geração Zero Zero. Por quê? Porque o conceito de geração literária é algo tão amoldável, tão ajustável, que nem é necessário lançar mão da liberdade poética para fazer valer esses três casos. Aliás, é por ser tão amoldável, tão ajustável, que esse conceito não deve ser levado muito a sério. No frigir dos ovos o que vale é a qualidade literária, e só ela. Se tal escritor pertence ao clube A ou B, isso é secundário. O alarido dos que, sentindo-se ofendidos e ultrajados — “Não existe Geração 90! Isso é bobagem!” —, atiraram pedra nas duas antologias que eu organizei soou patético justamente por isso: muito barulho por nada. Tempestade em copo d’água. O principal das antologias são os contos e os contistas. O resto é mero capricho do organizador. Que, também ele ficcionista, defenderá sempre o direito dos escritores de misturarem fantasia e vida, vida e invenção. Literatura e liberdade ficam bem, lado a lado. A questão da Geração 90 perde todo o charme poético, toda a verve, quando é levada muito a sério. Quando a polícia é chamada a todo o instante: “Não existe Geração 90! Isso é bobagem!”. Nessa hora, concordo com Goethe: “Desconfie de todos que possuem o desejo imperativo de policiar e punir”.

6. Voltando à vaca fria: é necessário que além de professarem a mesma fé os autores queiram pertencer a uma geração, para que esta passe a existir? Para mim tanto faz. Os componentes da Geração de 45, da Geração Beat, da paulista Geração 60 (dos poetas tocados pelo surrealismo), da Geração Mimeógrafo, da Geração da Orpheu e da Geração da Presença (estas duas em Portugal) faziam questão de pertencerem aos seus respectivos clubes. Mas hoje ninguém se sente muito à vontade vestindo a camisa seja de que time for. As formas do individualismo foram se modificando ao longo das décadas. Mea culpa, mea máxima culpa. Se dependesse exclusivamente da vontade dos seus integrantes a Geração 90 jamais existiria. Mas ninguém vai me impedir de exercer a minha liberdade criativa, seja na elaboração de um conto seja na de um movimento literário.

7, Então, fazendo uso do direito que todo escritor tem de criar o seu próprio mundo, a sua própria realidade paralela, passo agora a rascunhar a Geração Zero Zero. Faço isso de maneira descompromissada. Por puro deleite. Correndo o sério risco não de quebrar a cara — isso seria dramático demais —, mas de inventar algo que de fato já existe. A roda. O café expresso. Ou a própria Geração Zero Zero.

8. A prosa produzida pelos jovens escritores, por essa moçada que estreou em livro depois da virada do século, é bastante diversificada. Nunca se publicou tanto e tão bons livros. Ao ler A morte sem nome, do Santiago Nazarian, ou Ainda orangotangos, do Paulo Scott, ou Além da rua, do Rogério Augusto, ou os Contogramas, do Flávio Viegas Amoreira, ou o Corpo presente, do João Paulo Cuenca, ou os Dentes guardados, do Daniel Galera, ou o Encarniçado, do João Filho, ou o Húmus, do Paulo Bullar, ou o Mal pela raiz, do Jorge Cardoso, ou a Morte porca, do Wir Caetano, ou O cheiro do ralo, do Lourenço Mutarelli, ou O estranho hábito de dormir em pé, do Paulo Sandrini, ou O trágico e outras comédias, da Veronica Stigger, ou Os opostos se distraem, do Rogério Ivano, ou as Ovelhas que voam se perdem no céu, do Daniel Pellizzari, ou o Pressentimento do umbigo, do Leandro Salgueirinho, ou a Regurgitofagia, do Michel Melamed, ou Subitamente agora, do Tiago Novaes, a surpresa e o espanto brigam com a mais pura inveja. Os novos autores têm apresentado, hoje, coletâneas e romances de estréia muito superiores aos dos estreantes da década passada.

9. A atmosfera comum a toda essa prosa exclusivamente urbana é a do bizarro. Que, tendo em vista apenas a estrutura formal, aparece das mais diferentes maneiras: ora em linha reta, ora em ziguezague, ora fragmentada, ora pulverizada e misturada, mas sem jamais perder a sua consistência bizarra. Isso logo de saída resolve o cabo-de-guerra entre lírica e sociedade, conforme discutido por Adorno e tantos outros. A propensão para o nefasto, para o sinistro, para o agourento, afasta desses novos autores o dilema sofrido pela maioria dos artistas desde que o mercado editorial se estabeleceu: produzir para as massas ou para a elite? Vender trezentos mil exemplares ou só trezentos? Todos eles, consciente ou inconscientemente, escrevem para a pequena elite intelectual da qual eu e você, querido leitor, fazemos parte. Porque escrever para o leitor médio, ingênuo e de gosto pouco apurado, está fora de cogitação.

10. Em todos os livros citados quem dá as cartas é o grotesco, o perverso, o escabroso, o hediondo. Nesse mundo desconcertado não há heróis nem grandes exemplos de conduta, há apenas figuras física e moralmente malformadas, mutiladas, debilitadas, abortadas, aberrantes, doentias, demoníacas. A alucinação, a demência, a malemolência, as obsessões, a falta de caráter e os piores vícios minam o espírito, destroem a harmonia, corrompem a sociedade. Os seres humanos, quer vivam na periferia quer nos bairros nobres, são criaturas pequenas, tolas, criminosas, ignorantes, sempre massacradas pelos instintos mais baixos. Pela ganância, pela luxúria, pela cólera. A absoluta convicção de que tudo é vão, de que tudo é vazio, de que as pessoas são só marionetes, de que as suas angústias, as suas alegrias e as suas ações são apenas fatias de pesadelos, é a única convicção nesse mar de insegurança e dúvida. Tanatos, senhor dos suicidas, encampou todo o território de Eros, que, acuado, resume-se agora ao sexo violento, frenético, insaciável. Se há beleza e equilíbrio no mundo, isso não é para nós. É para os hamsters, as iguanas, os animais do zoológico. Porque no momento em que nos tornamos seres racionais tudo desandou. Um filtro cinza se interpôs entre nós e a realidade, que se tornou estranha, corrupta, traiçoeira. Ao menos é o que esses jovens autores se esforçam em demonstrar.

11. Essa é a minha Geração Zero Zero. A geração do bizarro. Quem não estiver satisfeito, que crie a sua. Ou desconverse, mude de assunto. Pra que perder tempo com isso? Como eu já disse, esse passatempo beira a total irrelevância.

12. Hoje a maior plataforma de lançamento de novos autores são os blogues e as revistas eletrônicas. Muitos dos jovens, cujos livros fazem sucesso entre os críticos e os leitores refinados, começaram publicando primeiro na internet. Essa constatação possibilita outra linha de raciocínio, outra forma de juntar os pontos no céu noturno. Seguindo os links mais instigantes, não é difícil fazer surgir a constelação da Geração Web, da qual fazem parte Alexandre Soares Silva, Cardoso, Cecília Gianetti, Clarah Averbuck, Jorge Rocha, Índigo, Mara Coradello, Simone Campos e tantos outros.

13. A capacidade de subverter as próprias idéias, de rir dos outros, mas principalmente de si mesmo, era bastante louvada entre os sábios da China antiga. Sorte nossa que ainda há gente que valoriza os bons trocadilhos. A idéia nasceu na Mercearia São Pedro, depois de muitas garrafas de cerveja. Na roda, Marcelino, Joca, Bressane, Ivana… A idéia: uma coletânea de contos ambientados nos botecos de São Paulo, escritos pela ala marginal e boêmia da Geração 90. O título da coletânea? Geração nojenta. Oswald de Andrade não teria feito melhor.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho