Escolha a esmo um livro de Enrique Vila-Matas e será alta a probabilidade de encontrar histórias de personagens às voltas com o ocaso. Basta remontar aos contos de Suicídios exemplares e ao excelente romance Doutor Pasavento para notar o quanto a literatura do catalão está impregnada pelo desaparecimento. A predileção pelo tema poderia naturalmente resultar em uma arte marcadamente pessimista. No entanto, este não é o caso de Vila-Matas. Embora mergulhados em crises de toda ordem, seus personagens despertam de chofre a empatia do leitor — ora pelo caráter inusitado das situações às quais se submetem, ora pela fina ironia que converte em humor seus mais variados dramas. Samuel Riba, o editor aposentado de Dublinesca, não foge à regra. De imediato, salta aos olhos o modo divertido com que são narradas as angústias e manias do protagonista, obcecado em promover o funeral da “galáxia de Gutenberg”.
Mas não caiamos na armadilha de acreditar que tal otimismo seja sinônimo de ingenuidade, sobretudo no que se refere ao emprego da forma. Na contramão de muitos escritores contemporâneos, cujos romances embolorados parecem ainda reféns do século 19, Vila-Matas incorpora à sua escrita a crise dos modelos narrativos tradicionais ao fazer do hibridismo uma de suas marcas principais. Trocando em miúdos, ele sabe o quanto há de ingenuidade em crer na auto-suficiência dos gêneros bem como na soberania do narrador — daí a adoção de uma voz narrativa pouco confiável e a elaboração de uma prosa que flerta com o ensaio, o diário e o romance tradicional. Ocorre que, para Vila-Matas, a consciência do esmorecimento dessa tradição literária significa antes o ensejo para novas formas narrativas e não o simples atestado de óbito da literatura. Deste modo, não há pessimismo pois o que está em jogo não é o desaparecimento do romance, mas sim de sua forma canônica, ou seja, das características que o consagraram enquanto a “epopéia burguesa”.
Em Dublinesca tal fenômeno é patente. Logo nas primeiras páginas, o leitor encontra uma espécie de “teoria geral do romance” elaborada por Riba, segundo a qual o romance do futuro estaria ancorado em cinco elementos fundamentais: “intertextualidade; conexões com a alta poesia; consciência de uma paisagem moral em ruínas; ligeira superioridade do estilo sobre a trama; a escrita vista como um relógio que avança”. Ciente, porém, da mutabilidade desse gênero, o protagonista logo abandona sua teoria: “Porque, vejamos, pensou Riba, se o sujeito tem a teoria, qual a razão de querer fazer o romance?”. Naturalmente o episódio não é gratuito: ou o leitor pactua com a natureza imprecisa daquilo que encontrará nas próximas páginas ou simplesmente abdica da leitura. Conforme veremos, o próprio Dublinesca refutará alguns elementos dessa teoria.
O primeiro deles — a intertextualidade —, porém, será obedecido à risca; até demais. Sabemos o quanto seria inverossímil aproximar-se de Riba sem lançar mão de alusões literárias ou comparações com grandes obras da literatura, afinal trata-se de um renomado ex-editor. Tais referências são bem-vidas quando a serviço da ironia, do humor, ou seja, quando agregam algo à construção do personagem. No entanto, há momentos em que tais alusões (à literatura, ao cinema, à música, às artes plásticas…) são gratuitas e isso sufoca o leitor. Alguém poderá alegar que a exagerada intertextualidade serve exatamente para evidenciar no personagem o seu gosto excessivo por citações, inclusive as gratuitas; ainda assim, não precisaria tanto para convencer o leitor. Por sorte não é o que prevalece. Tampouco é exigido do leitor um refinado conhecimento de literatura para que ele possa apreciar o romance. Vejamos.
Enredo atraente
Acaso tomássemos unicamente como base o quinto elemento da teoria de Riba (“ligeira superioridade do estilo sobre a trama”), Dublinesca não poderia ser considerado um “romance do futuro”. Ao ler o livro, decerto haverá aqueles mais atraídos pelo estilo, mas, de modo geral, é o enredo que fisgará a maioria dos leitores. Como bem observou Leyla Perrone-Moisés em artigo publicado na Folha de S. Paulo, “isso acontece porque mesmo aqueles que não têm um repertório de leituras tão vasto quanto o do autor nem perdem o sono pensando no fim da literatura são seduzidos por suas extravagantes personagens, por uma trama cheia de suspenses, por um humor refinado que se sobrepõe, com delicadeza, a experiências dramáticas”.
Mas, afinal, qual é a trama? Fossem passíveis de resumo, os romances seriam inúteis. Enxugar ou mesmo parafrasear o enredo seria aniquilar o princípio organizador de toda ficção — o narrador. Mais vale então analisá-lo, ainda que a empreitada não seja das mais fáceis, conforme corrobora o próprio autor (em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Vila-Matas afirmou que “o grande mistério desse livro é saber quem é esse narrador”). Embora o foco seja em terceira pessoa, notamos o encurtamento da distância entre narrador e personagem, o que destrói a onisciência e instaura uma desconfiança permanente.
Desde o princípio, Riba acredita ser observado de muito perto por um homem misterioso: ora pensa ser um rapaz de paletó, ora um escritor iniciante parecido com o jovem Beckett. A certa altura imagina inclusive ser o protagonista de um romance escrito por esse jovem: “Imagina que, de repente se aproxima tanto desse principiante que acaba sentando em cima dele, tapando-lhe a visão, asfixiando-o de tal modo que o pobre jovenzinho fica vendo apenas uma grande mancha confusa, na realidade um fragmento do paletó escuro do editor escrito”. Tal passagem é emblemática pois reflete a complexidade narrativa do romance: o discurso indireto implica a existência de um narrador que registra os pensamentos de Riba; pensamentos cujo tema é exatamente a falibilidade do suposto narrador. Ora, mas se quem narra é o tal jovem inexperiente e inseguro, como este poderia ter acesso a tais pensamentos? Haveria então uma outra voz? Quem narra afinal? De fato é um mistério. No entanto, essa imprecisão não resulta em um romance áspero, impenetrável. Ao contrário. Da mistura de vozes e discursos narrativos, surge uma prosa ágil capaz de dissuadir até mesmo os mais céticos com relação à possibilidade de se escrever romances no século 21.