Os textos desse novo livro de Maria Esther Maciel, O livro de Zenóbia, vinham sendo publicados esparsamente em jornais e revistas de literatura, quando então eram lidos como o que se tem chamado correntemente de “poema em prosa”, devido à sua forma de escrita que se afasta da habitual linguagem poética, mas apega-se a certo lirismo, a uma peculiaridade de escrita que busca o poético de forma expressiva em frases de efeito, na escolha rebuscada das palavras e temas, sem muita preocupação de se transformarem em narrativa, encontrando na ambigüidade o seu lugar.
Reunidos agora em livro, o tom desses textos mudou, pois formam pequenos conjuntos de 4, 5, 6 ou mais textos, à maneira de fragmentos, tal como capítulos temáticos que, por sua vez, formam o conjunto maior à maneira de uma biografia ficcional, tencionando fazer o registro da vida de uma mulher do interior, sugerida como poeta e biógrafa de santas. Mantém-se nos textos a intenção de alcançar algum lirismo, inspirado, sobretudo, na vida singular dessa Zenóbia, uma mulher sensível, de gosto refinado, expresso em receitas culinárias, conhecimentos de botânica e livros prediletos, entregue à sua vida rotineira, sujeita tanto aos prazeres como aos dissabores da convivência com outras pessoas numa comunidade em que os problemas da vida urbana ainda não estão presentes minando ou mesmo impedindo o convívio. O resultado é um mergulho na cultura interiorana de Minas Gerais, de onde se retiram hábitos culturais, acrescidos de listas de nomes de ervas daninhas, peixes, cidades, aves… que ecoam certa familiaridade vinda da leitura de Guimarães Rosa, porém em outro registro, despovoado das rudezas da presença masculina.
É interessante essa nova experiência textual de Maria Esther Maciel, que afinal se distancia muito dos poemas contidos em Triz, de peculiar experimentação, proposição estética e escrita percuciente manifesta na escolha cuidadosa das palavras. Comparados, O livro de Zenóbia no geral se despreocupa dos formalismos de linguagem, graças à opção por uma prosa lírica. O que ainda transparece de formalismo resta nas listas de nomes, colocadas ao fim do livro em forma de apêndice, destoando das narrativas que as precedem quanto à forma, mas perfeitamente afins com o conteúdo do livro e o universo imaginário da personagem. Essa prosa, entregue a um encantamento que uma ou outra vez transparece ingênuo, às vezes piegas, é, porém, sempre fiel à proposição de ser “uma incursão no universo feminino”, tal como promete a editora em seu release, a que se pode acrescentar ser ela uma mulher de sensibilidade aguçada, permitindo inúmeros devaneios que enveredam o leitor por receitas, sonhos, amores ou animais domésticos caros a Zenóbia.
Nesse livro também estão refletidos aspectos recentes das leituras ensaísticas feitas pela autora: recém-publicadas noutro livro da mesma editora Lamparina, A memória das coisas — Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, são de leitura imperdível, pois formam um brilhante breviário de estéticas contemporâneas ao analisar o “uso criativo dos sistemas de classificação do mundo” presentes num artista como Arthur Bispo do Rosário ou num cineasta como Peter Greenaway, entre outros. Dessas leituras encontramos n’O Livro de Zenóbia a opção pela fragmentação do texto e pelas listas de classificação já mencionadas, como das “Ervas daninhas”, dos “Peixes perplexos”, das “Cidades raras”, dos “Temperos e ervas de cheiro”, das “Aves em perigo”, das “Orquídeas e bromélias”, das “Palavras preferidas” e dos “Livros de cabeceira”, cujo título é uma remissão direta a um dos mais instigantes filmes de Peter Greenaway.
Como leitor, residiu aí, nessa opção de escrita pela fragmentação pontual, minha maior insatisfação. É que o mundo de Zenóbia nos é apresentado sempre de forma pontual, fragmentária, transmitindo a sensação de que a escrita permanece sempre na superfície, limitada pelos flashs de instantes da personagem, sem que se faça um mergulho no que poderia ser uma prosa embriagada de lirismo que se desenrolasse como um novelo sem fim.
Narrativas que começam com o espanto de nos dizer que “Quando Bepo cruzou a rua, em frente à loja de queijos, a única coisa que ele não viu foi a bicicleta que o lançou para fora de seu próprio pêlo”, são transformadas num fato e arrematadas por frases conclusivas que deixam no leitor essa sensação de que poderiam se distender proustianamente mais. Claro, é esse o preço da fragmentação cada vez mais exorbitante de nosso tempo, de expor uma fratura, uma nostalgia de algo que é praticamente cada vez mais inviável de se praticar porque nossas vidas são moldadas de tal modo que o tempo determina a própria sensibilidade e forma de expressão.
O problema, em verdade, portanto, é do leitor, e o texto, assim, se comprova eficiente ao transmitir o que é a vida hoje, uma somatória de fragmentos, de sensações e experiências (ou ausência delas) que demandam classificações como forma de buscar sentido, reconhecimento de si, de tal modo que “o trágico é o seu pathos, o seu idioma subterrâneo”, tal como o é para Zenóbia.