Vida e linguagem

Nos contos de "A cara da mãe", de Livia Garcia-Roza, as vozes narrativas desconhecem os limites do inusitado
Livia Garcia-Roza: narrativas curtas que primam pela síntese.
01/11/2007

A cara da mãe (contos), de Livia Garcia-Roza, gira em torno de questões aparentemente banais de âmbito familiar. Seus personagens dramatizam relações entre pai, mãe, filhos, filhas, irmãs, irmãos, amantes, maridos e mulheres, etc. São vozes que se levantam sob diversas perspectivas e vão construindo tramas sobre tramas num jogo paradoxal.

Por um lado, parece esboçar-se uma “estética da identificação”, na medida em que cada enredo é respaldado num cotidiano urbano, com marcas de uma oralidade, radicalmente, coladas na vivência de uma intimidade privada, prometendo uma regularidade da ação, num jogo de afetos e interesses. Neste sentido, o leitor se depara com um leque espelhado no qual é convidado a transitar e obrigado a buscar elementos de identificação. Afinal, o mito do “amor materno”, a dominação, a paixão, o abandono, as transferências, os complexos e os traumas deles decorrentes fazem parte, de certa forma, da vivência de todos nós.

Por outro lado, o que prometia ser espelho, à imagem e semelhança de vivências coletivas familiares, ganha força de estranhamento. A menina do primeiro conto, por exemplo, pressionada pela ansiedade da mãe em torná-la o sucesso que esta não conseguiu ser, descreve em detalhes o seu dia de concertista. Sem pretender compreender a mulher, a filha só a segue e a obedece, num primeiro momento. “A cara da mãe”, diz alguém. A menina não se reconhece. A ação, por sua vez, não depende disso. Ela narra. Narrar é só o que importa. Como diria Roland Barthes: “o mundo deixa de ser inexplicável quando se narra o mundo”. Mesmo que a narração seja uma forma precária de lidar com o desespero de não compreendê-lo.

A banalidade ensaiada no trivial cotidiano se confronta com a excepcionalidade do “como” se conta e, principalmente, do ponto de vista de quem conta. Como nas narrativas, anteriormente desenvolvidas por Livia Garcia-Roza em seus romances, as vozes narrativas desconhecem os limites do inusitado. Ousam atravessar as fronteiras de uma realidade sensível ou empírica e se lançam numa fala compulsiva, carregada em si de conteúdo problemático. Ainda provoca estranhamento qualquer discurso que lida com questões que rompem com a lógica da racionalidade cartesiana de poder e estabelecem uma outra lógica, antes sem voz e legitimidade, a paradoxal lógica do nonsense, da afetividade, dos olhares e vozes da criança, do feminino, do homossexual, do diferente.

Não basta, pois, simplificar a leitura da obra de Livia, apenas enquanto uma opção pelo universo feminino, apesar disso ser um dos seus campos privilegiados. O que se coloca em discussão é como essa fala compulsiva se constitui e desestabiliza frágeis laços de relações tanto familiares e privados, quanto sociais, de caráter público e mais amplo. Muitos dos narradores, apesar de se apresentarem, predominantemente, em relação com o outro, parecem falar sozinhos. As outras vozes que se oferecem ao diálogo são submetidas e sobrepujadas pela voz narrativa que muitas vezes usa o outro, não como sujeito em interlocução, mas como um objeto passivo, frente a um discurso monológico. Essa perspectiva não é aleatória e diz respeito, diretamente, à discrepância de interesses com que narradores-personagens são obrigados a estabelecer seus laços, dependentes de certa forma, dos papéis que ocupam em família e em sociedade.

No conto Minha irmã, por exemplo, isso é bem evidenciado. A fala do narrador, um menino que toma conta da irmã menor, estabelece já os conflitos expressos nas diferenças de interesses das condições feminina e masculina dos personagens. Enquanto o menino narra suas incríveis aventuras, a menina cuida da boneca. Estes conflitos aparecem também em outros contos com personagens adultos, como universos paralelos que circulam por todo livro. Contos como As sombras, O gato e Kelly centram seu relato no enfoque infantil de percepção do mundo e da sua maneira de lidar com as imposições e idiossincrasias dos adultos. Em contos como Meu pai, O profeta, Dor de dente, Hidroginástica, e tantos outros, a tensão se agrava através da correria desesperada de mães, filhas, mulheres, maridos, de diferentes classes sociais e idades, que mesmo quando devotados a seus filhos, pais, maridos e amantes, não conseguem, compreender ou comungar de suas necessidades mais íntimas.

Como destaca Samira Nahid, em O enredo, “por mais que não se consiga desvincular realidade e ficção, não podemos, entretanto, deixar de considerar que literatura é, principalmente, trabalho de linguagem”. E é dentro desta perspectiva que A cara da mãe precisa ser lido. Em última instância, o grande desafio enfrentado, e realizado com sucesso por sua autora, foi organizar a coletânea em narrativas curtas, que primam pela síntese, centradas num núcleo temático tão complexo como as relações humanas primordiais e afetivas. A grande conquista é, sem dúvida, o domínio despretensioso da palavra, num gênero como o conto que exige que cada palavra tenha peso, por um lado, e ganhe leveza, por outro, para ser ouvida e refletida pelo leitor, enquanto possibilidade de construção de sentidos, num espaço de predominância do absurdo, como o momento contemporâneo, em que vivemos.

A cara da mãe
Livia Garcia-Roza
Companhia das Letras
105 págs.
Livia Garcia-Roza
Nasceu no Rio de Janeiro e é psicanalista. Estreou na literatura de ficção em 1995, com o romance Quarto de menina. Depois vieram Meus queridos estranhos (1997); Cartão-postal (1999); Cine Odeon (2001); Solo feminino (2002); A palavra que veio do Sul (2004) e Meu marido (2006). Em 2005, publicou o livro de contos Restou o cão.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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