Ainda que se tente negar, há preconceitos ineludíveis ao leitor contumaz diante de um livro de estréia. Ao reconhecer nele uma coletânea de contos ou de crônicas, de pronto vai surgir a desconfiança de que o autor é mais um seduzido pela falsa idéia de que as formas curtas são mais fáceis que o romance — isso sem falar da poesia que, no mesmo sentido, é a mais perigosa das portas de entrada na literatura. Uma editora desconhecida leva a pensar numa edição paga, e lá se vai um ponto a menos na opinião de quem preza a chancela de uma casa editorial de renome. Se, além disso, o autor assinar ainda a capa, o projeto gráfico e a editoração, baterá forte a suspeita de que a obra não passa de um capricho de alguém que levou a sério a velha máxima de que só conhece a completude na vida quem plantou uma árvore, gerou um filho e escreveu um livro, mas teve de se virar sozinho para realizar este último quesito. Noutras palavras, um artesão com pretensões de ser artista.
Vibratio, primeiro livro de Catarina Pereira, nasce desafiando preconceitos. A coletânea de dezenove contos curtos é recém o terceiro título lançado pela editora carioca Cais Pharoux, e a própria autora é quem assina a capa, o projeto gráfico e a editoração. O resultado é uma bonita capa preta, concebida sobre xilogravura de Horácio Soares e com detalhes em vermelho e branco, embalando um miolo em papel de gramatura privilegiada que, das ilustrações à escolha da tipologia, revela elegância e bom gosto. Num terreno onde há muito o profissionalismo dita as regras e onde cada vez menos leitores se dispõem a garimpar um eventual grande talento escondido atrás de uma edição que pareça de alguma forma amadora, a edição não faz feio, bem pelo contrário.
O livro se divide em três partes. Em cada uma delas, os contos vêm ordenados com base na idade das diferentes protagonistas, todas femininas. Cada parte emula assim um ciclo de vida, iniciando sempre com uma história de infância e encerrando com uma de velhice. Há na contracapa um desenho emblemático em vermelho que vai depois se repetir em preto-e-branco nas páginas de abertura de cada uma das partes. Lembra uma sobreposição de gráficos de batimento cardíaco ou de ondas — de algo que vibra, enfim. Densas e contidas no início, as linhas vão se expandindo no decorrer da primeira metade em movimentos mais amplos, alguns circulares, que passam uma idéia de intensidade mas também de caos, para depois suavizarem paulatinamente em busca de um fluxo mais contínuo. As linhas ao final, embora ainda sinuosas, correm quase em paralelo, e algumas desaparecem pelo caminho. O desenho tem assim tudo a ver com o título do livro e sua concepção.
Mas o toque esotérico termina aí. Ao chegar finalmente a Perfume de jasmim, depois de cruzar com a bela epígrafe de Cecília Meireles — “meus olhos estarão sobre espelhos, pensando nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes” —, o leitor vai comprovar que a autora tem os dois pés bem firmes no chão. O conto que abre o livro, um dos melhores do conjunto, traz a história da menina e sua primeira menstruação narrada com leveza, bom humor e a precisão de quem sabe desde o início exatamente aonde quer chegar. Se o desfecho não chega a ser um soco no estômago, ele traz uma suavidade incômoda calcada no binômio dor-prazer, algo inevitável na trilha da descoberta do sexo.
Leveza, bom humor e objetividade são traços do estilo de Catarina Pereira que vão se repetir no decorrer do livro, refletindo à perfeição o caráter das personagens: são quase todas mulheres bem-resolvidas ou em vias de se resolver, e sempre seguras do que querem na vida, mesmo quando isso estiver longe de ser conquistado. Os relacionamentos amorosos são recorrentes como tema, e eles revelam aquilo de que os homens já suspeitavam: elas conseguem ser muito mais frias, ardilosas e determinadas do que se mostram à primeira vista. Nas questões afetivas, são elas quem de fato dão as cartas e controlam o jogo. “Feiticeiras pós-modernas”, segundo a ótima definição de João Paulo Vaz na orelha do livro, que resume: “por muito tempo, o desejo da mulher foi ameaça. O demônio no corpo. Todas as personagens (…), de uma forma ou de outra, fazem acordos com seus demônios”.
Vibratio é um livro consistente, bem estruturado e cuja unidade temática não tira a possibilidade de surgirem boas surpresas durante a leitura, em especial sempre quando aflora o humor irônico e afiadíssimo da autora. O livro termina com o leitor já querendo saber do próximo. E esta é a prova mais eloqüente de que Catarina Pereira atingiu plenamente seu objetivo.