Hotéis à beira da noite, de Per Johns, é um romance sobre viagens. Há viagens físicas, mas as mais importantes são aquelas que acontecem na cabeça do protagonista, Coriolano Warming, chamado anteriormente de Hans Magnus. Acompanhando o fluxo de idéias de Warming/Magnus, vamos penetrando na trama do livro para não sair mais, querendo chegar logo ao fim e descobrir o que exatamente aconteceu. Infelizmente, ou de propósito, o autor não dá nenhuma resposta de mão beijada ao leitor. É necessário algum trabalho para conseguir percorrer as travessias propostas por Johns.
Há dois caminhos que são seguidos simultaneamente pelo protagonista e, conseqüentemente, pelo leitor. Um caminho é o mais simples, em que Warming/Magnus viaja de uma cidade a outra do mundo, escapando de pessoas que possam significar para ele alguma conexão ao seu passado. O objetivo do protagonista, que viaja com duas pequenas malas, muito dinheiro no bolso, um passaporte falso e mais nada, é romper em definitivo todas as ligações com seu passado e, até mesmo, com seu presente. Ele quer se isolar do mundo, ser intocável, e por isso mora de hotel em hotel, onde o dinheiro abre portas e cala as perguntas. Esse caminho está bem definido, segue-se com facilidade ao longo do livro.
O segundo caminho é mais complicado, pois envolve a torrente de pensamentos de Warming/Magnus. Quando Johns fala da viagem física, a linguagem é elegante, precisa, direta. Quando entramos na cabeça do protagonista, temos algo mais parecido com uma prosa poética, em que o delírio, o imaginário e o onírico ditam o tom da narrativa. Podemos estar parados em um quarto de hotel, olhando para o horizonte, mas na cabeça do protagonista passam rios e rios de idéias, pensamentos e reflexões. Não à toa Johns usa uma palavra criada por James Joyce, riverrun, palavra que abre o enigmático e inclassificável Finnegan’s Wake. É um desfiar sem fim de pensamentos, rápidos, que não retornam, apenas seguem em frente.
Em outro ponto, o protagonista declara peremptoriamente: Fui!
A partir da segunda parte do livro, o protagonista se desdobra em outros três personagens, seus alter egos, que irão lhe dando a direção a seguir. Warming/Magnus sai do Brasil em busca de um norte ao mesmo tempo físico e mental. É uma viagem de volta às raízes de si, mesmo que ele não saiba exatamente onde elas podem estar. Para o leitor, é necessário muita atenção para não se perder. Em alguns momentos conseguimos até descobrir o que fez o personagem abandonar tudo — ele era um funcionário público corrupto que, após juntar fortuna com subornos, resolveu sumir no mundo e tentar se purificar —, mas não sabemos como ele fez isso, quando fez, com quem, quanto. Não há datas na narrativa, apenas instantes e memórias. Parece que há uma mulher na vida do protagonista, mas não nos é dado a saber se foi sua namorada, noiva, esposa, amante ou o quê, nem qual a exata importância dela na vida de Warming. O personagem realmente não tem âncoras com nada, e o leitor vai junto com ele à deriva pelo mundo. Há uma idéia de direção, de rumo, mas não se sabe bem qual é o ponto de chegada, ou se ele existe mesmo.
Para complicar, a parte final do livro traz uma série de textos curtos, que o autor define como um lampejo poético, que joga alguma luz sobre o caminho do personagem, mas traz ainda mais necessidade de reflexão e interpretação para o leitor. Como Johns disse num encontro no PEN Clube do Brasil em maio de 2011, “essas pequenas prosas tenham o pequeno ou grande inconveniente de terem que ser pescadas no mar revolto de uma prosa rascante”. Para que elas façam sentido ao leitor, é necessário relembrar o percurso de Warming/Magnus. O mistério em torno do personagem continua, mas pelo menos podemos compreender melhor o seu pensamento naqueles momentos, sem que seja necessário voltar ao passado do protagonista.
Esse é um grande mérito de Hotéis à beira da noite, e do autor. O passado do funcionário corrupto não precisa ser recuperado, basta essa informação de que ele quer se livrar dele. A busca pela perda da identidade externa e a procura pela essência da própria identidade, do que de mais verdadeiro ele possui, é suficiente para se construir um romance instigante, de difícil classificação. Em alguns momentos pode haver um excesso de prosa poética, em outros uma falta de mais detalhes práticos, mas não se pode negar o magnetismo que Warming/Magnus exerce sobre o leitor. Se você se deixar conquistar, vai querer descobrir mais sobre ele e qual será o fim das viagens. Ao longo do caminho, nenhuma resposta será simples. Nem mesmo os eventuais usos de línguas estrangeiras em frases ou poesias curtas prejudicam ou chegam a ser pedantes, pois é um conhecimento que pertence tanto ao autor — brasileiro de pais dinamarqueses — como ao personagem. A melhor dica é deixar-se levar pela torrente, e ver aonde vai dar.