Viagem para fora da roda do meu quarto

Botar o pé na estrada? Por livre e espontânea vontade? Não é comigo
01/09/2004

Botar o pé na estrada? Por livre e espontânea vontade? Não é comigo. A indústria do turismo deve achar repulsivas as pessoas como eu. Durante toda a minha adolescência eu admirei muito os viajantes e os exploradores. Principalmente os do cinema e os dos livros: Ulisses, Marco Polo, Colombo, Vasco da Gama, Robson Crusoé, doutor Livingstone… Mas quando chegava a minha vez de abandonar o torrão natal, que fiasco. O desânimo e a inércia tomavam conta de mim. Não importava se na viagem eu fosse sozinho, bem ou mal acompanhado: com os amigos ou a família. Não importava se a excursão fosse para Foz do Iguaçu ou Paris: minhas pernas ficavam subitamente paralisadas pela preguiça. De lá pra cá nada mudou: detesto fazer e desfazer as malas, odeio os aeroportos e os frigobares. Durante muito tempo isso me deixou em apuros comigo mesmo. Preferir ficar em casa a ir visitar o avô em Lisboa ou os profetas do Aleijadinho, em Congonhas, fazia eu me sentir mais aleijado do que o dito-cujo. Fazia eu sentir a incômoda culpa dos socialmente desajustados. Afinal, as pessoas do mundo moderno (principalmente os jovens) têm a obrigação de gostar de viajar. Pelo menos é isso o que os jornais, as revistas, a tevê e o cinema dão a entender. Pelo menos é isso o que as agências de propaganda e as de viagem, o bom gosto e o senso comum costumam disseminar. Essa minha sensação de culpa só desapareceu graças à literatura. Quem não gosta de viajar (tenho certeza de que não estou sozinho neste mundo de argonautas) e já leu a Viagem à roda do meu quarto, do Xavier de Maistre, vai me entender. Quem já leu Às avessas, do J-K. Huysmans, e se lembra do capítulo onze, também vai me entender. Quem já leu O púcaro búlgaro, do Campos de Carvalho, enfim… Ontem mesmo, lendo para a minha filha o Hans Staden do Monteiro Lobato, encontrei o seguinte conselho do pai do protagonista ao seu filho, antes da inevitável despedida: “Boa romaria faz quem em casa fica em paz”. Grande conselho.

Quando o Claudiney Ferreira telefonou e começou a fazer o convite, a minha primeira reação foi instintiva: recusar. Mas não recusei. Para dizer a verdade, eu de imediato não disse nada, talvez porque estivesse meio petrificado. Esperei-o terminar de formular a proposta. Catorze dias longe de casa. Catorze dias perambulando pelo norte do país. Belém, São Luís, Macapá, Manaus, Boa Vista, Rio Branco, Porto Velho. Sete hotéis, diversos aeroportos (tecnicamente, viajar na classe econômica de qualquer empresa aérea é pior do que viajar de ônibus durante o mesmo número de horas) e dezenas de corridas de táxi. Mas certos detalhes me impediram de recusar prontamente o convite: o cachê, por exemplo. Minha religião me proíbe recusar trabalho remunerado (desde que não envolva favores sexuais). O Claudiney é jornalista e um dos consultores do Instituto Itaú Cultural. A sua proposta era que ele e eu, mais o editor e tradutor Felipe Lindoso, nos juntássemos à caravana do seminário Rumos, que já estava na estrada levando a cabo o plano de visitar todas as capitais brasileiras. A caravana era composta até então exclusivamente por profissionais ligados ao mundo da música popular brasileira e do jornalismo cultural. Nosso trio não trataria desses dois temas, mas de literatura. Ou, mais precisamente, da questão do livro e da leitura no Brasil. Topei, mas meio a contragosto. Catorze dias…

Um dos segmentos do programa Rumos intitulava-se Literatura-Audioficções. Tratava-se de um concurso que premiaria e divulgaria as melhores adaptações, para o meio fonográfico, de contos ou crônicas inéditos ou de autores consagrados. Os textos literários depois transformados em peças sonoras de qualidade poderiam, a partir desse concurso, ser veiculados em rádios, CDs e pela internet. Essa iniciativa me agradou desde o início. Principalmente porque se a moda pega, se as rádios e as gravadoras voltam a entreter o seu público com essa antiga forma de narrativa (lembram-se das radionovelas?), podemos soltar rojão. Pois as inevitáveis articulações que a gravação de uma audioficção exige — o intercâmbio criativo entre escritores, roteiristas, atores, produtores e técnicos de som — passarão a acontecer regularmente, para a alegria do bolso dos profissionais envolvidos. Além da questão do livro e da leitura, era importante que o concurso Literatura-Audioficções também fosse apresentado nos nossos debates. Foi pensando nisso que o Claudiney e o Felipe sugeriram que eu escrevesse um breve texto para ser transformado numa audioficção. Assim o dileto público de Belém, São Luís, Macapá, Manaus, Boa Vista, Rio Branco e Porto Velho teria um bom exemplo de adaptação criativa. Boa parte desse público, por não ter vínculos com os cursos de Rádio e Tevê das faculdades de Comunicação ou com os estúdios de gravação, certamente jamais ouvira uma peça radiofônica na vida. O objetivo era motivar o maior número possível de pessoas a participar do concurso. Pensei sobre os problemas que estavam na nossa pauta e no dia seguinte apresentei aos meus dois colegas:

Literatura é o tchan!
Você sabia que tem gente que não gosta de ler? Sabia? Não? Você sabia que tem gente que não gosta de ver tevê? Não sabia?! Pois tem sim. O Brasil é grande e está sempre em obras, sempre em construção, sempre em reforma. Por isso tem gente de todo tipo. Tem quem gosta de ler e não gosta de futebol. Tem quem gosta de carnaval e não gosta de política, apesar de a política ser um carnaval. Tem quem gosta de teatro e não gosta de cinema. Tem quem gosta de videogame e não gosta de videoclipe. Tem de tudo. Literatura, música, telenovela, feijoada, bobó de camarão: tudo é cultura, é tudo questão de gosto. É, de gosto que se discute. Quê? Não sabia? Que gosto se discute? Se discute, sim! Ninguém nasce gostando disso ou daquilo, aprende a gostar. É claro que aprende! Ou é obrigado a gostar desde pequeno. Veja por exemplo esse sujeito aí. É, esse aí na sua frente. Não o gordinho, o outro, o magrelo. Conheço o galalau desde pequeno. Adora ler e escrever. Já publicou vários livros. Sabe onde foi que ele aprendeu a gostar de literatura? Em todo lugar. Nos livros, sim. Mas também na tevê, no teatro, no futebol, na música popular brasileira. O Brasil é rico em tudo isso. Mas às vezes o magrelo aí fica meio puto da vida. É, puto com o pessoal que gosta mais de futebol, de tevê, de carnaval do que de literatura. Às vezes ele acredita que… Não, ele tem certeza: no Brasil quase ninguém lê, quase ninguém leva livro pra casa. Às vezes ele fica puto com isso. Ele quer conversar sobre os novos escritores e o fulano só quer saber da nova novela das oito. Ou do novo campeão do Brasileirão. Ou da nova página da internet. Ou da nova loira do Tchan. Nada contra a nova loira do Tchan, ela até que é, digamos, muito formosa. Ô se é! Dá gosto ver a danada dançar. Mas qual é o problema de se gostar de muitas coisas ao mesmo tempo? Tevê é legal, mas livro também é! A loira do Tchan é legal, mas loira demais chega uma hora que enjoa. Nessa hora um livro não é uma boa pedida? Não é não? Um romance, uma coletânea de contos, uma de crônicas? Claro que é! Vamos botar mais livro pra sambar nesta festa, gente! Pode apostar que a festa só vai melhorar. Os descontentes vão desfazer a cara feia, vão sorrir, mostrar os dentes. O galalau aí vai ficar muito mais animado. Ah, se vai! Eu sei, eu conheço o gajo desde pequeno.

Como podem ver, Literatura é o tchan! é um texto curto e bem-humorado sobre a relação (ou a falta de uma relação mais íntima) dos brasileiros com os livros e com a leitura. Trata-se de um diálogo em que a segunda voz foi suprimida. Não há aqui nenhuma indicação de tempo ou de espaço, o narrador vai desfiando o seu discurso como se conversasse com alguém que não sabemos quem é, se homem ou mulher, jovem ou velho, etc. Fiquei muito surpreso com a adaptação feita pelo Claudiney e pela Babi, também do Instituto. O meu narrador único se transformou em três passageiros de um ônibus, os tópicos do seu discurso foram divididos em várias partes e em seguida desenvolvidos com leveza e jogo de cintura. A situação ficcional tornou-se completamente outra, mas o texto original está todo lá. A sua essência foi preservada. Isso quer dizer que a experiência funcionou muito bem como exemplo de uma adaptação inteligente e criativa. Ou seja, esse exercício demonstrou que traduzir um texto para a linguagem do rádio, transformar uma ficção em uma audioficção é muito mais do que simplesmente ler o texto em voz alta, com efeitos acústicos e uma trilha sonora mais ou menos bem escolhida. É recriar e potencializar, com os meios disponíveis num estúdio de gravação, a estrutura e o jogo de forças do ponto de partida, que é o texto literário.

O fato de o concurso Literatura-Audioficções estimular a adaptação de textos para peças sonoras é alentador. As adaptações de todos os tipos, quando feitas de maneira criteriosa, são sempre bem-vindas. O público da literatura mais sofisticada já está acostumado a ver os seus livros prediletos também nas telas de cinema, por exemplo. Ou na telinha da tevê, na forma de minisséries. Mas até onde eu sei esse público ainda não teve a chance de ouvir esses mesmos livros no rádio. É aí que entra a audioficção. Esse formato, mesmo derivando de outro mais antigo (o das novelas radiofônicas), tem tudo para enriquecer ainda mais os textos adaptados. Desde que a adaptação seja feita com criatividade e discernimento.

Belém, São Luís, Macapá, Manaus, Boa Vista, Rio Branco e Porto Velho. Para os meus padrões de eremita urbano, essa foi uma viagem longa. Tal jornada pelas nossas capitais equatoriais mexeu muito com alguns dos meus preconceitos de escritor meridional. E isso foi ótimo. Logo ao voltar, trocando figurinhas com outros escritores que costumam viajar bem mais do que eu, percebi que o contato direto com os poucos leitores do Brasil real e oral é sempre uma experiência traumática. Mas isso não deve ser motivo para que o escritor fique trancado no seu escritório a vida toda, protegido da violência física e psicológica que acontece na rua, na praça, na estrada, onde quer que haja mais de um indivíduo. A síndrome do isolamento, que acometeu o narrador do De Maistre e o do Huysmans, deve ficar só no plano ficcional. Afinal, esses dois romancistas, diferentemente dos seus protagonistas, viajaram muito durante a vida. Sair da toca de vez em quando é fundamental para qualquer artista. Sempre que participo de debates sobre literatura (a minha ou a dos outros), eu me divirto, mas também me assusto. Meus modelos pré-fabricados às vezes não resistem e vão caindo um a um assim que eu percebo, olhando demoradamente para as pessoas da platéia, que o Brasil é muito diferente, é muito maior do que essa miniatura de país que a gente vê na tevê ou lê nos jornais e nas revistas.

Acompanhar a caravana foi muito cansativo, mas teve seus momentos memoráveis. Epifanias de bolso, pequenas, mas marcantes, relampejaram por exemplo no Ver-o-Peso e na Casa das Onze Janelas, em Belém. No beco da Catarina Mina e nas ruas centenárias ladeadas por casarões azulejados, em São Luís. Nos igarapés e no Mercado Municipal, em Manaus. No Horto Municipal, em Rio Branco, e na estação ferroviária Madeira-Mamoré, em Porto Velho. Em Macapá, a revoada de andorinhas ao entardecer e o banho no rio Amazonas, às sete horas da manhã do dia seguinte, ocupam lugar de destaque nos anais deste modesto desbravador. O mesmo eu digo do jantar em homenagem ao Prestes, em São Luís, e do jantar na casa da irmã do Felipe, em Manaus. A polêmica levemente etílica travada no boteco em frente ao Teatro Amazonas, polêmica que deixou o Prestes, o Marcelo e eu exaltados por pelo menos quinze minutos, precisa ser retomada qualquer dia desses. O papo impagável sobre discos voadores, com o Prestes e o Kiko Ferreira no aeroporto de Macapá, também. Ainda em Macapá, eu devia ter registrado em vídeo a visita, com o Pena Schmidt e o Natale, ao bairro de palafitas que um dia fora um quilombo. A viagem maluca a Santa Elena de Uairén (Venezuela), com o Felipe e o Claudiney, atravessando a ensolarada desolação da savana de Roraima, é algo que não vou esquecer tão cedo. O mesmo vale para a apresentação do grupo Teo das Artes, que declamou para nós e para o público, na geométrica Boa Vista, E agora José? ao som do violão.

Costurando essas idas e vindas, duas leituras bastante estimulantes encurtaram as infindáveis horas de vôo: O Brasil pode ser um país de leitores?, do Felipe, e Livros demais!, do poeta mexicano Gabriel Zaid. Quem ainda não leu, leia. Esses dois livros tratam, sem lengalenga e de maneira instigante, da cultura livresca e do estranho mercado editorial que a alimenta. O título do nosso encontro era Literatura viva: leitor atuante. Tanto o trabalho do Felipe quanto o do Zaid (“A leitura de livros está crescendo aritmeticamente, a escrita de livros está crescendo exponencialmente”: essa sentença do mexicano tem mexido comigo até hoje) me ajudaram a alcançar o patamar mais coerente a partir do qual eu pudesse apresentar algo consistente durante os nossos colóquios.

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Na metade da viagem, fui interceptado pelo convite do editor do caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, que me pediu um breve texto sobre o meu pior medo. Belo desafio. Muitos medos me acompanham cotidianamente: de assalto, de seqüestro, de demissão, de acidente grave, de perder o amor pela vida… Mas decidi escrever sobre o temor mais antigo, justamente sobre esse que trago comigo desde a adolescência. Por ele ser o mais velho de todos, desconfio que seja o pior. Na verdade, nunca parei para pensar muito sobre essa questão, com medo de que a análise fria e objetiva fizesse desabrochar novos temores (a mente humana é excêntrica demais para o meu gosto). Esse breve depoimento escrito num dos muitos cibercafés do Norte ficou como mais uma lembrança da viagem para fora da roda do meu quarto:

Abismo
Medo de dar vexame, de aparecer em público só de cueca e pantufas? Não. Medo de perder a hora e o avião, de ficar para trás na excursão? Não. Muito pior do que isso: tenho medo é de despencar da ponte. Pavor de mergulhar no abismo, sem o direito sequer de assistir ao resumo da minha própria vida. Não pratico rapel nem bung-jumping, não salto de pára-quedas. Detesto o movimento vertical ascendente e mais ainda o descendente. Cair com elegância e dignidade não é comigo. Já despenquei de cinco ou seis pontes, mas foram tombos pequenos. Queda de pinguela. Machucou um pouco, confesso. Mas eu teria me machucado muito mais se tivesse continuado lá em cima. Se tivesse atravessado a ponte, então, nem se fala: fratura exposta na certa. Morro de medo de despencar das grandes pontes, é isso. E mais ainda de explodir junto com elas. Quem nunca explodiu uma ponte que dê o primeiro tiro de morteiro. Não sou de muitas palavras, não tolero invasão de privacidade. Sou tímido, reservado, caseiro. Mesmo assim procuro manter as minhas pontes sempre limpas e bem-conservadas. O trânsito está sempre livre, jamais fiz uso de cancela ou barricada. Só explodo uma ponte quando percebo do outro lado uma movimentação pouco amistosa: uma palavra nada cordial, uma ofensa explícita, um gesto desleal. Nessa hora me escondo no meu minúsculo território e aperto o detonador. A nuvem de poeira me cega. Adeus, ponte. E o medo reaparece. O pavor. Morro de medo de despencar da ponte. Morro de pavor de cair de todas as minhas pontes ao mesmo tempo. De ficar sozinho no meu minúsculo território. Noite sim noite não, sonho com isso: as últimas pontes indo pelos ares num súbito acesso de fúria. Num rompante amargo e belicoso: tchau pra vocês, bye-bye. A mulher, os filhos? Hasta la vista. Os amigos? Adeus, camaradas, au revoir. Todos os laços afetivos indo para o beleléu. Freqüentemente sonho com isso: depois de explodir todas as minhas pontes caio na escuridão dos solitários anônimos. No deserto dos loucos e dos insensíveis. Acordo apavorado. Salto para fora da queda onírica disposto a aceitar o pesadelo como um aviso: dinamitar pontes sem despencar no abismo é para os profissionais. É para os profetas e os terroristas. É para quem gosta de cortar a vida pela raiz e jamais morreu na tentativa.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho