Viagem ao mar dos nomes

Em "Conversa em família", a cultura sólida se sobrepõe à fantasia e o estilo assenta-se lado a lado com a inteligência
Bolívar Lamounier vai muito além da simples genealogia familiar
01/08/2004

Em verdade, o grande temor de quem passou a vida inteira a cuidar de textos alheios nas redações de jornais e revistas jamais foi o, digamos, “arrebatamento estilístico” dos focas. O pavor nos assaltava, isto sim, à vista das resmas que abrigavam teses acadêmicas de colaboradores fortuitos.

Disfarçados de grandes intelectuais, baluartes da mais genuína erudição, chegavam embusteiros, aldrabões, endromineiros, charlatães, parlapatões, sacos de vento, para utilizarmos a sinonímia do mestre Abel Barros Baptista, professor da Universidade Nova de Lisboa, onde ensina literatura brasileira.

O considerado leitor deste Rascunho há de concordar que muitos, muitíssimos, nunca saberão o exato significado de uma “abordagem do viés de

seletividade com escolha de variável contínua”, por exemplo. O professor Abel assevera, num assaz memorável artigo intitulado Catar feijão ou escrever mal? que a ação de denunciar o embusteiro, impugnando-lhe a linguagem por artificialmente difícil e deliberadamente obscura, acaba por o abrigar e proteger, porque é o único combate no terreno intelectual em que a incompreensão reclama o estatuto de argumento válido; e ninguém tem legitimidade para contestar aquilo que confessa não compreender.

Por tal e legítima razão, nós, os copidesques de jornais e revistas, clamávamos por um texto do professor Bolívar Lamounier, raro intelectual de formação acadêmica capaz de escrever como ensina João Cabral de Melo Neto no poema Catar feijão, dedicado a Alexandre O’Neill e referido por Abel Barros Baptista:

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco; palha e eco.

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Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar as palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

Líamos com a atenção que o conteúdo exigia, dávamos um título e pronto, era só gritar “desce!”, para que o verbo do autor encontrasse as oficinas. Infere-se então que, nos seus textos, Bolívar Lamounier serve apenas o feijão-com-arroz da sobrevivência intelectual, desprovido de quaisquer louçanias que tornam saborosa a linguagem? Jamais! Nos artigos que permearam sua vida de competente cientista político, ainda nos anos 60, e principalmente agora, na maturidade, com este já clássico e essencial Conversa em família, o professor nos tem oferecido um autêntico banquete das mais pertinentes palavras, banquete no qual a cultura sólida se sobrepõe à fantasia e o estilo assenta-se lado a lado com a inteligência.

As raízes perdidas
Sem recorrer a tecnicismos, o livro mostra o sentido e o alcance da obra de clássicos como Fernand Braudel, Karl Marx, Max Weber, Thomas Marshal e, entre os brasileiros, Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Mário de Andrade e outros, como explica o professor nesta preciosa introdução não só a clássicos, mas também à obra de importantes autores contemporâneos como Simon Schama, Susan Reynolds, Thomas Sargent & François Velde.

Conversa em família também pode (e deve) ser visto como “livro-palimpsesto”. Segundo o dicionário Aurélio, palimpsesto vem do grego e significa “raspado novamente”. O professor ensina: “Em razão de seu preço, o pergaminho era usado duas ou três vezes, mediante raspagem do texto anterior. Assim, o termo se estende a manuscritos nos quais se descobre, ‘em alguns casos a olho desarmado, mas na maioria dos casos recorrendo a técnicas especiais, a princípio por processo químico, etc., a escrita ou escritas anteriores’. Ao afirmar, portanto, que este livro é como um palimpsesto, quero dizer que tem vários níveis de significado. O próprio título refere-se a uma conversa sobre meus antepassados reais, mas também a uma reflexão sobre a família universal, ou seja, sobre toda a humanidade, a história universal.”

Pelo Tejo vai-se para o mundo, disse Alberto Caeiro n’O guardador de rebanhos e tal asserto consuma-se na obra de Bolívar, quando este parte de sua aldeia, Dores do Indaiá, em busca das raízes perdidas no tempo. Lamounier é o sobrenome a estudar e o professor visita os “antepassados imaginários” na primeira parte do livro, quando as velas manda dar ao largo vento nessa viagem ao “mar dos nomes”. O ilustrado capitão examina focos etimológicos e fios condutores. Havia concebido Conversa em família como simples relato genealógico, a imaginar viagem sossegada, todavia o projeto inicial perdeu-se no terremoto que devastou Lisboa em 1755.

Quem conhece, porém, o autor e sua paixão pelos desafios de qualquer pesquisa garante que ele não foi, de modo algum, “surpreendido” pela esborralhada lusitana; sabia o que o esperava e aproveitou a dificuldade para traçar um admirável painel sobre a evolução histórica do Ocidente. Na “orelha” do livro a cientista social Maria Teresa Sadek já anuncia: “A pretexto de decifrar seu nome de família, Lamounier discorre sobre o feudalismo e a Revolução Francesa, a teologia da pobreza, a evolução da moeda e dos Estados nacionais, as especiarias e a era dos Descobrimentos”.

Está, desse modo, decifrado o antetítulo da obra: Moinho, Esmola, Moeda, Limão, vocábulos que se encontram na etimologia francesa de Lamounier.

Moderna Sherazade
Pesquisador experiente e moderno, Bolívar também se vale de fontes eletrônicas para melhor realizar sua viagem ao “mar dos nomes” e assim demonstra o potencial da internet para o estudo e o desenvolvimento intelectual. A literatura brasileira pode orgulhar-se de memorialistas de primeiríssima grandeza, como Joaquim Nabuco, Afonso Arinos de Melo Franco, Joaquim Salles, Pedro Nava, lembra o professor, para quem o advento da internet transformou inteiramente a memorialística, “pois a viagem pela memória passa a desfrutar de recursos até há pouco inimagináveis”. É verdade: o pesquisador-internauta viaja por uma infinidade de fontes, agora acessíveis a um simples clique do mouse.

“O livro evidencia que a internet é mesmo uma moderna Sherazade que permite interligar uma infinidade de assuntos”, festeja esse navegador dos novos tempos, liberto de ovéns e enfrechates. “Na verdade, Conversa em família é bastante original no gênero memorialístico, sendo provavelmente um dos primeiros a recorrer amplamente a essa técnica de ‘digressão proposital’; uma ‘arte da fuga’, digamos”. Só aparentemente, contudo, essa digressão se desenvolve a esmo, pois interliga numerosos temas sem perder o fio da meada e o professor Bolívar adverte que, como nas Mil e uma noites e na internet, uma coisa puxa outra, que puxa outra, etc. Todavia, ao contrário de Sherazade, aqui as histórias não são fictícias: “São situações ou processos históricos reais, analisados e interpretados com base no que as ciências humanas têm de melhor a oferecer”, explica. “Portanto, há no livro uma ordem que constantemente se desorganiza — ou o contrário, uma desordem que a todo momento se reorganiza a partir de um fio condutor.”

E não se deve esquecer que há um precioso acento literário neste Conversa em família, ao conduzir e estimular a curiosidade do leitor pela produção cultural de diferentes áreas e épocas históricas. A jornada aos laços de sangue faz pouso e aguadas na história, nas ciências humanas, na literatura e vários idiomas. Pode-se aqui, em consonância com o autor, evocar não apenas Sherazade, mas também Proust e sua singular mescla de memória e história.

O professor nos ensina ainda: desde que perdeu seu antigo ranço “aristocrático”, a genealogia se ampliou notavelmente como hobby em todo o mundo e é um dos que mais se desenvolvem atualmente. “Ampliação, portanto, que não é só numérica, mas também social”, afirma ele; “a genealogia des-aristocratizou-se, deixou de lado sua antiga pretensão de ‘nobreza’ (melhor dizendo, abrigo de pessoas que tentavam se ‘nobilitar’ por meio da antiguidade ou da origem social de suas famílias, intuito quase sempre ridículo). A genealogia transformou-se assim em gratificante convívio com os antepassados e com a história”.

Na sempre autorizada opinião de Bolívar Lamounier, ao cultivar a memória dos antepassados as pessoas ajudam a conservar a memória histórica do país. No livro, há certa originalidade a esse respeito, o que torna Conversa em família uma leitura obrigatória para os amantes da genealogia. “Embora seja mais uma ‘meta-genealogia’ que um livro de genealogia em sentido estrito”, adverte o professor, “o livro deverá despertar o interesse dos genealogistas tanto experientes quanto principiantes, pois demonstra o uso da etimologia e da história como formas de situar os antepassados nos ambientes em que viveram”.

Lendo e aprendendo
Aprende-se muito com a “arte da fuga”, a digressão jamais desenvolvida a esmo nas páginas de Conversa em família. Acomode-se o leitor junto ao capitão nesta viagem a barlavento e saiba que:

A respeito do vínculo entre onomástica e história:
“Os nomes e sobrenomes não surgiram do nada, nem se formaram num mundo à parte. Surgiram no caudal comum da história, ganhando forma a partir das mesmas realidades e demorando séculos para se fixarem, da mesma forma que os demais vocábulos que compõem as línguas atuais. Estudar a formação e a evolução dos nomes é portanto uma maneira de nos introduzirmos na corrente mais ampla da linguagem e da história.” (p.21)

Sobre o episódio da Vendéia, na Revolução Francesa:
“Não apenas adultos combatentes, mas também velhos, mulheres e crianças foram fuzilados, mutilados, ou, como em Nantes, lançados ao rio aos magotes para que se afogassem, e passados pelo sabre quando parecessem capazes de escapar.” (p. 85)

Sobre o Romantismo:
“Deus de duas faces, uma voltada para o passado, outra para o futuro, assim é o Romantismo. Assim como há um romantismo medievalizante, ou pelo menos passadista, nostálgico, há um outro fáustico, prometéico, identificado com o progresso e com a técnica.” (p. 93)

Como as especiarias deram origem a hábitos sociais modernos:
“Na primeira metade do século 16 o chá tem sua vez e na segunda metade se difundem o café e o chocolate. Rapidamente, a limonada foi destronada pelo café em popularidade; não tardou para que a butique do limonadier ganhasse o nome de Café, com maiúscula.” (p. 209)

Uma ponta de ironia em relação aos sociólogos e historiadores convencionais:
“Se a Inconfidência tivesse saído vitoriosa, sua mescla de intelectuais, servidores públicos, militares e empresários provavelmente seria saudada como fator positivo, sinal de realismo e envolvimento orgânico entre diferentes segmentos sociais. Como fracassou, o diagnóstico habitual é que a derrota estava de antemão determinada pelo acanhado horizonte ideológico desses grupos.” (p. 277)

Sobre o bandeirante Pamplona, no século 18 mineiro:
“Pamplona não era o tipo de parceiro que eu recomendaria a um antepassado. [Ele foi] um bandeirante fora de época — um ator que chegou ao teatro quando a peça já se encerrava.” (p. 307)

Sobre o declínio do Império:
“Ao iniciar-se o último quartel do século 19, o tom da crônica política brasileira variava entre o azedume e o enfado.” (p. 303)

Um quê de iconoclasmo, ao comentar o famoso texto de Mário de Andrade sobre as Modinhas Imperiais:
“Realmente, com amigos assim, a modinha não precisava de inimigos. Cheio de dedos, o ensaio de Mário de Andrade deve ser entendido em função do momento em que foi escrito. Na ótica do nacionalismo cultural e do modernismo que então despontavam, parecia existir um conflito insanável entre a arte do povão pobre e preto e a de origem culta, branca e européia. O samba e a valsa iam acabar brigando. Mas não brigaram. O “reino” do Brasil superou pouco a pouco seu velho complexo de inferioridade e grande parte de sua xenofobia. A música popular cresceu e contribuiu enormemente para a consolidação da identidade nacional.” (p. 352)

A respeito do contraste entre a canção sentimental brasileira e o tango argentino:

“Naturalmente, os temas de rompimento e perda, decepção e traição, abundam também na canção sentimental brasileira. Mas a representação da experiência amorosa que as organiza e lhes confere sentido parece-me radicalmente diferente da que encontramos no tango. Trata-se de uma representação essencialmente naturalista, isto é, de uma visão da experiência amorosa como um processo contínuo, que percorre fases previsíveis, como um organismo que nasce, cresce, atinge a plenitude e decai. Diferentemente do que ocorre no tango, [na canção brasileira] o desamor e a separação, sendo um desfecho natural, não carecem de explicação: ocorrem porque hão de ocorrer, da mesma forma que a juventude dá lugar à maturidade e esta à velhice.” (p. 367)

24 de agosto de 1954
Na página 391, Bolívar Lamounier abre uma pequena fresta ao memorialismo propriamente dito e o primeiro parágrafo contém um episódio da História do Brasil que marcou a infância daquele que, mais tarde, pôde estudá-lo e compreendê-lo à luz da Ciência Política:

“Difundiu-se o hábito de acompanhar as novelas e, nos fins de semana, os jogos de futebol — mais até os do Rio de Janeiro que os de Belo Horizonte. E também permitia estar a par da vida política, é claro — como ocorreu a mim mesmo, aos 11 anos. Fui à cidade comprar uns cortes de tecido para fazer calças: pela primeira vez, eu mesmo os escolheria. Achava-me na Casa Lacerda, a principal loja do ramo na cidade, quando percebi certo alvoroço e logo vi as pessoas se juntando num canto, tentando entender o som rouco que saía do rádio. Era a manhã do dia 24 de agosto de 1954. O presidente Getúlio Vargas acabara de se matar com um tiro no peito.”

E, finalmente, esta evocação à infância em Dores do Indaiá:

“Dos onze filhos de Levindo e Ana, dez nasceram quando eles ainda residiam em Estrela: José Osvaldo, Maria da Conceição, Celina, Maria de Lourdes, Mozart, Teresinha, Violeta, Luís, Celeste e Arsonval. Só eu, o décimo primeiro, nasci e cresci na casa que Levindo adquiriu em Dores, em 1940. Lembro-me bem dela. Ficava fora do limite urbano, mas colada à cidade. De nossa porta à primeira rua — onde para nós a cidade começava — seriam talvez 200 metros, não mais que isso. Por dentro era pequena e simples: uma casa típica da classe média rural mineira. Por fora, tinha certo encanto. Pelas cinco da tarde, quando retornava da cidade após as aulas e via de longe o conjunto, era com muito carinho que o apreciava: à esquerda, uma fileira de cinco ou seis altas mangueiras; bem junto à casa, abrigando-a contra o sol, um pé de ‘sabãozinho’; ao fundo, perto do curral, uma bonita moita de bambu gigante.”

Que Bolívar Lamounier é um brilhante professor e cientista político, como bem demonstra a produção de sua generosa lavra, todos já sabíamos; agora, com Conversa em família, acrescente-se mais esta palavra a seu currículo: Escritor. Assim mesmo, com maiúscula; é mais apropriado.

Conversa em família
Bolívar Lamounier
Augurium Editora
432 págs.
Moacir Japiassu

Escritor. Autor de “A santa do cabaré” e concerto para paixão e desatino

Rascunho