Viagem a lugar nenhum

Resenha do livro "Crônicas de viagem", de Peter Ferry
Peter Ferry, autor de “Crônicas de viagem”
01/11/2013

Antes dos holofotes da cena literária se voltarem para Paulo Coelho, Luiz Ruffato e a polêmica das biografias, um tema que vinha novamente sendo bastante discutido era a autoficção, muito por conta do lançamento de Divórcio, de Ricardo Lísias. A edição passada (#162) do Rascunho, inclusive, trouxe o excelente ensaio A imposição do “eu”, de Luciana Hidalgo, obrigatório para quem se interessa pelo assunto.

Uma obra que poderia incitar algo nas conversas é Crônicas de viagem, de Peter Ferry. Nela, um escritor chamado Peter Ferry conta para os seus alunos de escrita criativa uma história que ganha força e passa a ser a narrativa principal do livro. Ferry diz que presenciou um acidente, e que neste uma mulher, Lisa Kim, morreu. Contudo, ele supostamente poderia ter evitado a tragédia e, por isso, carrega consigo a culpa. Decide, então, investigar quem era aquela mulher.

Em seguida, a história dessa busca se mistura com elementos da vida particular de Ferry. O relacionamento com Lydia, sua companheira, começa a degringolar por conta da fixação do parceiro por saber quem era Lisa. Também precisa se afastar das salas de aula e viajar para conseguir continuar a escrever a história — que está sendo contada para seus alunos, vale lembrar. De certa forma, o que chega aos leitores é seu tatear, a busca por ela e por como contá-la, algo que remete ao que Julián Fuks fez em Procura do romance.

E as crônicas de viagem?
Antes de nos aprofundarmos em por que o livro poderia contribuir para a discussão da autoficção, vale dizer que Crônicas de viagem não é um livro de viagem, e nem de crônicas de viagem, como seria de se esperar. Não das viagens a que a palavra nos remete, aquelas em que nos deslocamos de um lugar para o outro e vivemos durante algum tempo numa realidade distinta da que estamos habituados. É sim um romance que traz alguns relatos de viagens. O mais interessantes deles é sobre Bangkok, na Tailândia. Ferry, o personagem, fala com aparente propriedade sobre as famosas putas do sudeste asiático, parece se apaixonar por elas. Sobre a cidade, define: “Bangkok é o bordel da Ásia… A cidade inteira exala uma ligeira sordidez”.

Viaja também para duas cidades mexicanas: San Miguel de Allende e Curnavaca, onde passa um longo período porque o lugar tem uma calmaria boa para um escritor, detecta que por lá pessoas são menos importantes que máquinas e conhece Charlie, “um homem complexo, original, perturbado, multidimensional, autoinventado, cheio de falhas e idiota, mas um homem completo”, um dos personagens mais interessantes da obra. Outros destinos são as florestas canadenses e, ao final, Doolin, na Irlanda.

Mas esses deslocamentos são passagens pontuais e estão longe de caracterizar o livro como uma narrativa de viagem. “Crônicas de viagem. É uma espécie de metáfora”, diz o protagonista em um diálogo. E é uma pena, pois essas viagens são as partes mais interessantes do livro, muito melhores do que quando estamos na história principal.

Voltando à discussão
Até aqui, encarei o Peter Ferry do livro somente como um personagem homônimo de seu criador. Entretanto, vale trazermos alguns poucos elementos biográficos do Peter Ferry de carne e osso. Como seu personagem, obviamente, ele também é escritor. Também é professor e escreve crônicas de viagem. Com isso, e pela maneira que a história é narrada e estruturada (um livro de Peter Ferry, que tem como personagem um professor chamado Peter Ferry que cria uma história com um também professor Peter Ferry), a confusão é inevitável. Mas é nos diálogos que o personagem trava com os alunos que aparecem alguns elementos que realmente poderiam contribuir com a discussão.

De início, o professor deixa claro que a história que está contando é inventada e mostra a força que uma narrativa pode ter: 

É claro que nada disso aconteceu na realidade. Eu já disse isso a vocês quatro vezes, e vocês sabem que não aconteceu. Mas olhem para vocês. Estão todos interessados, querem saber o resto, querem saber se ela estava nua, o que havia de errado com ela, o que eu fiz ou deixei de fazer e todo o resto, embora eu esteja inventando tudo isso bem na cara de vocês. É por isso que as histórias são tão poderosas.

“Estou tirando essa história da minha cabeça agora”, diz em outra oportunidade para depois embaralhar tudo: “A história da moça no carro realmente aconteceu, é claro, ou poderia ter acontecido, ou talvez tenha mesmo acontecido”. O que fica é a boa bagunça na cabeça dos alunos — e do leitor.

Ora, mas se o criador da história já disse que ela é inventada, por que não acreditamos? Simples: porque a mentira pode estar nessa informação.

O problema está já na epígrafe do livro, uma citação de E. M. Forster: “Os homens no rio estavam pescando. (Mentira; mas também assim é a maioria das informações)”. Pouco importa se pescavam ou não. Para ir mais além, independentemente de verdades ou falsidades, o que interessa é que o máximo que conseguimos atingir é uma versão de uma história real que, se não é uma mentira, também está longe de ser a realidade. Pode ser uma verdade, mas, para alcançar essa uma verdade, abrimos mão de infinitas outras — parece confuso, e é mesmo. De certa forma, é esse ponto que Lísias aborda em seus discursos e é essa falta de limites entre o inalcançável e irretratável real (que talvez pudesse ser encarado como a totalidade das verdades) e o fictício que Javier Cercas usa tão bem em suas criações arraigadas em eventos históricos, por exemplo.

Mas, voltando ao livro de Ferry, o tempo todo disse que ele poderia acrescentar algo à discussão, só que isso não deverá acontecer, pois a obra em si deixa a desejar. Sua história central não funciona bem, as crônicas de viagem, apesar de boas, mais confundem do que contribuem e diversas situações deveriam ser trabalhadas com um cuidado maior: muita coisa acontece de maneira fácil, discussões na sala de aula contam com vozes secundárias que mais parecem filmes pessimamente dublados, e pontos interessantes que mereciam ser explorados são deixados de lado. Em determinado momento, o personagem Ferry diz para seus alunos “Um escritor precisa acreditar que o que está escrevendo naquele exato momento é a coisa mais importante que alguém já escreveu na vida”. Será que Ferry, o escritor, acreditava Crônicas de viagem era a coisa mais importante que ele escreveu na vida? Acho que não.

Crônicas de viagem
Peter Ferry
Trad.: Paulo Reis e Sergio Moraes Rego
Rocco
272 págs.
Peter Ferry
É professor, escritor e editor. Escreve crônicas de viagem para jornais da cidade de Chicago, nos Estados Unidos — país onde vive — e já teve contos publicados em revistas literárias. Do Conselho de Arte de Illinois, recebeu um prêmio literário na categoria ficção breve.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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