Vestígios de libertinagem

Em seleção de contos nacionais, Eliane Robert Moraes nos revela as facetas de um erotismo ainda pudico
Eliane Robert Moraes, organizadora de “O corpo descoberto: contos eróticos brasileiros (1852-1922)”
30/04/2019

A maioria de nós, quando pensa em contos eróticos, lembra de textos anônimos que circulam em revistas pornográficas ou na internet, e não exatamente da criação de um autor canônico como Machado de Assis. No entanto, não só ele como tantos outros autores na história buscaram explorar em sua escrita o erotismo das maneiras mais diversas, de acordo com seus interesses e com as tendências de uma época e de um lugar. É evidente que nem sempre qualquer um poderia escrever sobre sexo ou sensualidade nas relações humanas com a liberdade que gostaria, sendo dependente de concessões editoriais ou de autorizações da censura estatal. No Brasil não é diferente, e é isso que O corpo descoberto nos apresenta, por meio de uma seleção de toda a diversidade de contos de 1852 a 1922.

No prefácio, Eliane Robert Moraes, professora de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP) e organizadora da coletânea, nos aponta as diretrizes de sua escolha e também alguns caminhos possíveis para leitura. Ressalta-se o fato de que, até metade do século 19, a produção de contos não privilegiava a narrativa do corpo ou o sexo, matéria essa que foi aos poucos introduzida nos textos veiculados na imprensa e, por vezes, depois recolhidos em formato de livro. A suposta pudicícia do leitor brasileiro, cujo reflexo seriam essas criações de conteúdo não muito explícito, se firma apenas na aparência, pois tanto nos costumes locais quanto nas leituras estrangeiras as relações sexuais tomavam cada vez mais uma posição de destaque. Essa mudança, é claro, não se fez de forma homogênea. Na coletânea ficam manifestas, por exemplo, as diferenças entre a dicção de Machado de Assis, em contos consagrados como Missa do galo e Uns braços, e a de João do Rio, em Dentro da noite e Penélope. Enquanto o primeiro escreve mais veladamente sobre os objetos de luxúria e as relações fora do casamento, o outro ousa descrever as práticas secretas (e hilárias) de um sádico e a sedução de um vendedor por uma viúva nada submissa.

Essa diversidade de abordagem é muito bem demonstrada pela organização do volume, que agrupa em dez grupos os contos de acordo com seu enredo ou/e suas obsessões. Apesar de existir uma variedade, podemos também ver que, ao contrário das liberdades da poesia barroca, por figuras como Bocage e Gregório de Matos, e até da prosa oitocentista europeia, como Camilo Castelo Branco e Gustave Flaubert, os contistas brasileiros se viram diante de possibilidades múltiplas, mas não escreviam para explorar o corpo com fins satíricos, pornográficos ou moralistas. Em sua maioria, os textos se voltam para um erotismo revelador de facetas secretas ou íntimas da sociedade, como as relações extraconjugais, a prostituição, a aproximação com a religião, o sexo inter-racial, o amor não heteronormativo. A característica breve do conto é utilizada em especial para se concentrar em um ou dois desses elementos sem que o autor corra riscos. Essa ousadia fica patente se compararmos a produção contística e poética do período com alguns romances de maior circulação, por vezes mais pudicos, ou com o teatro, inclusive a comédia alencariana e machadiana, que, na contramão da tradição do gênero, evita a representação do desejo sexual e adota uma postura mais moralizante. No conto, como o narrador de Estou roubado, de Raul Pompeia, nos aponta, descobrimos o que há no “forro” do paletó virado de um homem, expondo-se, assim, todo o “avesso das aparências sociais”.

Distância temporal
Nessa mistura de temas, o leitor de hoje talvez não encontre um erotismo que corresponda aos nossos padrões, de uma época em que o sexo tem presença mais ampla na cultura, em níveis e lugares variados. Também a isso se acrescenta o fato de que, em mais de um conto, podemos perceber como a distância temporal fez com que alguns elementos sensuais para o século 19 e o começo do século 20 se tornassem hilários ou até mesmo agressivos aos nossos olhos. Da seleção do volume, em relação ao abuso sexual, destaca-se O vaso, pequeno conto de Bob, pseudônimo de Olavo Bilac, figura de nossa história literária com frequência associada a um beletrismo aristocrático. Em seu curto texto, por meio da alusão, podemos ler uma história com pretenso ar lúdico de uma virgem que é estuprada por um homem que se gaba do feito. Além da clara violência desse enredo, também percebemos em outros contos, como Tísica, de Cruz e Sousa, e Idílio roxo, de Gonzaga Duque, que a paixão controversa do fin de siècle pelos corpos dos tuberculosos, que, em decomposição, deixam evidenciar sua materialidade e sua vulnerabilidade, parece mórbida e distante da realidade atual, além de ser até risível. Contudo, vale reforçar que isso de modo algum retira a validade da leitura desses textos, sendo, na verdade, mais um motivo para lê-los. Por eles, pode-se notar como a sensualidade é algo que construímos socialmente, ou seja, uma emoção que não está obrigatoriamente ligada às mesmas práticas ou partes do corpo. Fora isso, conseguimos observar bem a variedade dos contos, não só quanto ao conteúdo, mas também pela construção de personagens, espaços, diálogos.

Infelizmente, O corpo descoberto ainda não recebeu muita atenção da crítica, o que uma rápida busca por textos sobre o livro poderá confirmar. Uma exceção, no entanto, é Veronica Stigger, que resenhou a obra para a edição 18 da revista Quatro Cinco Um. A autora se detém mais nas diferenças entre poesia e prosa para justificar a abordagem distinta do corpo e do sexo no conto brasileiro antes dos modernistas de 22, porém deixa um pouco de lado a questão da circulação e da produção dos dois tipos de discurso. Talvez as aberturas de conto que se iniciam com uma conversa entre personagens antes que um deles conte uma história de teor erótico não indiquem somente “controle e aprovação” da sociedade, como afirma a escritora, mas também o âmbito íntimo e exclusivamente masculino da narração dessas histórias. É certo que mesmo essa conversa se trata de um elemento ficcional, no caso, um elemento que instiga o leitor e deixa-o curioso para saber dos segredos de uma trama que se destina a um público restrito. Além disso, a predominância de homens autores na coletânea, com a exceção de Júlia Lopes de Almeida, e de vozes narrativas masculinas nos confirma a ideia de que a prosa erótica não era para todos. Esse tópico é, até certo ponto, desenvolvido por Aline Novais de Almeida no posfácio do livro, que indica com precisão as condições sob as quais a criação literária ou não de cunho erótico se estabelece no país.

Embora haja problemas na revisão da edição, a coletânea se destaca pelo trabalho primoroso de sua organizadora e, é claro, pelo interesse que os contos nos suscitam. Como resultado de sua pesquisa, Eliane Robert Moraes acaba por nos introduzir a versões expressivas de um Brasil que não quer mais esconder seus desejos, investigando de perto o limiar do obsceno que, de certa maneira, não deixa de nos contar algo do que é corriqueiro. Pela seleção de O corpo descoberto, também vamos além da nossa educação literária mais tradicional para encontrar outras facetas da sensibilidade do final do Império e da República Velha por meio de expressões culturais que, a seu modo, nos apresentam experiências estéticas muito particulares que continuaram a ser lidas e repensadas no século 20 com os modernistas. Ao final, resta-nos indagar o que essa revelação do corpo nos diz acerca do passado e também do presente. 

O corpo descoberto: contos eróticos brasileiros (1852-1922)
Org.: Eliane Robert Moraes
Cepe
440 págs.
Eliane Robert Moraes
É professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) desde 2010. Pesquisa o erotismo nas artes e, em especial, na literatura. Além de O corpo descoberto, organizou também a Antologia de poesia erótica brasileira (2015), traduziu Georges Bataille e escreveu livros variados como resultado de seu trabalho.
Daniel Falkemback

É professor, tradutor e doutorando em Letras na UFPR.

Rascunho