Quando o assunto é literatura, as convicções vivem sempre a nos pregar boas peças. Basta que num dia se afirme, por exemplo, que a prosa não aceita uma determinada solução típica da poesia, e eis que surge no dia seguinte, como que por encanto, um texto que nos mostra ser possível a exceção e — muito pior — que ela funcione, e bem. Pronto, lá se vai uma de nossas certezas absolutas. Outro exemplo: embora se tente há anos quebrar o paradigma, para que exista um romance é necessário uma história. Por mais confusa, fragmentária ou escondida que ela esteja, sem história não há romance. Sobre isso nunca houve o que discutir. Nem é preciso ir muito longe: no dicionário Houaiss, as quatro acepções da palavra “romance” na rubrica “literatura” referem direta ou indiretamente à história; a principal delas, justamente a que define a peça literária tal como a concebemos hoje, diz que o romance é a “prosa, mais ou menos longa, na qual se narram fatos imaginários, às vezes inspirados em histórias reais, cujo centro de interesse pode estar no relato de aventuras, no estudo de costumes ou tipos psicológicos, na crítica social, etc.”. Pois bem, leia-se agora o que diz o jornalista Cléber Eduardo numa ótima resenha na revista Época: “Cinevertigem, romance de estréia do jornalista paulistano Ricardo Soares, (…) não conta história. Faz colagem de partículas, muito rarefeitas, com um narrador que, sem viver situação alguma, imagina-se em outras vidas”. Pimba!, lá se vai outra: um romance agora que não conta história! Mesmo que se possa discordar da afirmação do resenhista, o simples exercício de argumentar contra ela propicia uma revisão de conceitos. Mal comparando, alguém já tentou provar a redondeza do globo a quem pôs na cabeça que ele pode, sim, ser quadrado? (E, se há ainda alguma dúvida de que uma esfera possa adquirir outra forma, a arte, e somente ela, responde com seu poder mágico de criar um globo quadrado e conseguir que ele permaneça sendo globo.)
Em resumo, arte e dogma não nasceram mesmo um para o outro. E nunca será demais repetir que na literatura não existe regra que não possa ser violada, desde que o resultado convença o leitor. É para ele afinal que se escreve.
Vencer as 124 páginas de Cinevertigem equivale a uma prova de resistência para alguém acostumado à prosa convencional. As frases dispensam as maiúsculas iniciais, a pontuação é deficiente, às vezes caótica, o discurso se estrutura numa sucessão de imagens avulsas que nem chegam a formar cenas, tão rápido elas vêm e somem, cambiando sem que se perceba nexo entre elas e num ritmo alucinante já comparado, muito apropriadamente, ao de um videoclipe. Aliás, uma analogia perfeita. Numa concepção dessa natureza, não se consegue perceber um desenvolvimento temático, outro dos sustentáculos do romance.
O protagonista — se é que se pode considerá-lo como tal — é um narrador em primeira pessoa que veste a pele de outros tantos personagens, reais e imaginários: ora ele é uma velha que adultera cheques, ora o antropólogo Darcy Ribeiro, Macunaíma, um cão, e por aí vai. Mas Soares não avança na construção psicológica desse elenco formidável e inusitado. São todos eles flagrados num momento específico, vistos apenas de fora, como partícipes desse videoclipe vertiginoso que sugere o título da obra e que foi muito bem traduzido na colagem vistosa da capa concebida por Tita Nigrí. Nem chegam a ser personagens, no sentido estrito, mas figurantes de uma única atuação. Complicado? É, de fato.
Sem história (vamos aceitar por ora a afirmação), desenvolvimento, personagens, resta esperar que pelo menos o texto, apesar das transgressões formais, se acomode no padrão daquilo que se costuma chamar de “prosa”. Mas o que encontramos é a frase curta, econômica, repetida, ritmada… Um eco proposital funciona como rima. O jogo de palavras e as referências intertextuais são abundantes:
quem, quem, quem, quem, quem é que me cobre de beijos? quem, quem me lambe a ponta do nariz, passa o indicador no lóbulo da orelha, quem, quem passa a mão nos meus olhos, quem, que espreme as espinhas da minha bunda, enfia o dedo entre meus cabelos sujos, quem, quem me limpa os dentes, quem, quem me corta as unhas, repara que as pontas estão mal aparadas, quem, quem nota as minhas cáries rotundas, esses canais abertos, nessa bocona obturada, nessas vertigens profundas?
veloz dentro dessa noite oriunda, quem, quem, quem me acende a boca do fogão que está entupida, quem que me frita um ovo do avesso, quem me paga a comida, compra a ração para o cão, entende que os livros estão espalhados pelo chão porque assim eles são…
O trecho acima abre o volume, assim mesmo como foi transcrito, sem maiúsculas, apenas com os recuos indicativos de parágrafo. E é, sem dúvida alguma, um começo instigante, desses que atiçam de cara a curiosidade do leitor. O “quem, quem, quem me dá”, depois transmutado em “quem me dá, quem me dá”, vai aparecer inúmeras vezes, abrindo a maioria dos parágrafos e ressoando dentro deles como um leitmotiv inebriante. A princípio sugestiva, a repetição se desgasta pouco a pouco e no final já desafia a paciência do leitor, ávido de encontrar logo a tal história — ou, pelo menos, a Pedra de Roseta que o ajude afinal a decifrar o que está acontecendo.
Lá pelas tantas, é anunciado: “portanto preste atenção para não ficar à deriva é preciso ouvir-lhe a narrativa…”, e entra um relato de cangaço, em versos de cordel. O flerte descarado autoriza a pensar que, se o texto fosse todo ele disposto em forma de versos, talvez coubesse na classificação de poesia. Pelo menos, ele já mereceu ser chamado de “prosa poética”, o que, pelos exemplos aqui trazidos, se configura obviamente um exagero.
Admitida a hipótese, e diante do que se levantou até agora, a pergunta se impõe: por que Ricardo Soares não escreveu logo um livro de poesia, ao invés de subverter dessa maneira a estrutura do romance e insistir que ele seja lido como tal? A resposta também cai de madura: talvez o texto não sobrevivesse como poesia. Mesmo que ela seja indubitavelmente o gênero que mais aceita ousadias formais, a poesia também é um território que poucos dominam. O leitor — ele mesmo, essa figura tão difícil de ser contentada — que o diga. A simples constatação de que há ritmo e rima no discurso não o eleva automaticamente à condição de poesia. Mesmo o jogo de palavras, por inspirado que seja, não passa de um subproduto da linguagem poética. Ou seja, apesar de possuir todas as armas, é um tremendo engano pensar que Cinevertigem pudesse ser poesia e não prosa, resolvendo assim a equação.
A chave
Voltemos agora a uma questão que ficou propositadamente guardada, esperando sua vez de entrar em cena: a história. A despeito de tudo o que se falou, nesta e em outras resenhas, existe, sim, uma bela história, mas ela só será revelada na última página, onde Ricardo Soares nos espera com uma galhofa: “para os que começam lendo um livro pelo fim devo dizer que…” E mais não se pode avançar, caso contrário a surpresa do leitor estará comprometida. A seqüência da frase traz a tão esperada chave, que vai dar sentido a tudo o que se leu. Algo a ver talvez com vertigem, no plano metafórico, imaginário, quem sabe… eis aí uma pista.
Ricardo Soares não é um neófito na literatura. Autor de vários títulos infanto-juvenis, ele é também jornalista, diretor de tevê e roteirista, dirige documentários e programas de literatura para a televisão, além de ter sido cronista de O Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde. Sua estréia na narrativa longa ficcional não vai passar em brancas nuvens. Cinevertigem é uma obra curiosa e necessária, dessas que surgem de tempos em tempos para desacomodar, propor, sugerir, ou mesmo só para trazer à tona a eterna discussão sobre os limites da arte e da literatura. Muitos irão aplaudi-la, outros, desdenhá-la. Ninguém ficará indiferente. E o tempo, só ele, poderá dizer de que lado está hoje a razão.