O rastro do corte no passado do corpo cicatriza memórias. No caso de Rapaz com cicatriz, do poeta gaúcho Escobar Nogueira, isso ocorre como quem se liberta do estigma com humor e espírito crônico. O autor traça em versos com ritmos prosaicos lembranças de não doer. Como quem sabe da importância que tem o ato de cicatrizar.
O poeta não deixa à mercê do tempo e da fisiologia do corpo a tarefa de levar o corte na pele para o passado ou distante da lembrança. Em gesto criativo, apossa-se da cicatrização de forma espirituosa, o que provoca, muitas vezes, o riso.
Cristina era a única matéria
que interessava ao meu espírito.
Eu queria ser do reino monera,
para viver em seu corpo como uma bactéria.
Fui condenado ao cantinho da sala,
cara pra parede até o final da aula.
Pensei no Cristo crucificado acima do quadro.
O que teria visto o coitado?
No entanto, a recordação dos desajeitados e libidinosos tempos de escola, tema da primeira parte do livro, embora se insinue, numa primeira leitura, em tom de crônica, faz aparecer, em verdade, fatura efetivamente poética.
Nota-se entre as rimas aparentemente despretensiosas (consoantes), “matéria/bactéria”, uma rica presença de rima atenuada, “monera”, que sonoriza o poema em nível sofisticado. O mesmo ocorre nas estrofes que seguem, “sala/aula” (esta, um pouco mais orgânica) e “quadro/coitado”.
Esse artifício recorrente no livro revela equilíbrio entre o episódico, comum às crônicas, e a consciência de quem quer contar (e ficcionalizar) suas memórias em versos. Outro recurso que revela o trabalho consciente do poeta cronista é a inserção do humor na própria composição da sonoridade:
Teu desdobre me dobra origami,
teu judô me joga no tatame.
Quando a nota de humor transborda as escolhas semânticas e vai em apoio à composição dos sons, percebemos que o tom aparentemente leve e brincalhão dos versos não isenta o poeta de arquitetura e esmero. Outro exemplo bem-acabado desse artifício está nesta estrofe:
Faixa vermelha na arte erótica,
minha tática é perder a técnica.
Minha estratégia é perder por pontos
na luta limpa por baixo dos quimonos.
Estamos mais uma vez diante de rimas atenuadas, “erótica/técnica” e “pontos/quimonos”, numa provocação que elide sons e graça neste poema que ainda terminará com a rima “sushi/Bruce Lee”.
Estética e intertexto
Muitas outras coisas estão implicadas no equilíbrio da crônica com o poema, e no caso de Rapaz com cicatriz encontramos também as opções sintáticas que nos levam à leitura prosaica, além de formulações simples como “para viver em seu corpo como uma bactéria”, onde se pode notar linguagem de comunicação direta, comum aos escritores tributários da lírica objetiva pós-Drummond.
E por falar no poeta mineiro, não apenas ele, também Manuel Bandeira e João Antônio aparecem evocados por Escobar. O que esses autores podem revelar de comum à estética do livro? A intensa relação dos três com os textos literário e jornalístico.
Drummond nunca escondeu sua satisfação com o ofício de escrever sistematicamente ao público e mesmo o prazer de contribuir na imprensa. Bandeira, menos por paixão que por pragmatismo, fez da composição de artigos para jornais um ganha-pão. João Antônio foi exímio repórter e redator de reportagens premiadas na revista Realidade, além de levar dramas sociais urbanos, observados como jornalista, para sua excelente prosa ficcional.
Mas o tom de poemas-crônicas não leva Escobar Nogueira a conversar apenas com autores que se aproximam de suas opções artísticas, ele glosa, também de maneira bem-humorada, com o príncipe dos poetas do nosso fim de século 19, Olavo Bilac. Numa série dedicada às prostitutas, o poeta nos fala sobre Estella:
Ouço estrelas quando estou com Estella.
Seu corpo celeste me deixa tri louco.
Não me ejeto pra outras galáxias,
Quero o deleite da via láctea.
A glosa irônica com o poema de Bilac é escancarada. A musa é uma companheira pouco ortodoxa. O título dessa série do livro é Chinaredo, que remete ao espanholismo gaúcho que recorre à expressão “china” para se referir à mulher. Também parece caber no uso vulgar dessa expressão uma carga depreciativa que remeteria à prostituta.
A série do livro é evidentemente uma homenagem a prostitutas. Sendo assim, as companheiras do poeta são mulheres da noite. E noite, sabemos, é uma imagem definitiva no poema de Bilac em questão. Porém, se no poema do nosso parnasiano é preciso ser poeta e ter amado para se comunicar com as estrelas, para o Rapaz com cicatriz o deleite com as estrelas é no corpo de Estella. Enfim, uma “via láctea” bem mais erótica.
E se falamos sobre o livro estar dividido em partes, bem como sugerimos ser esse poeta tributário de uma lírica objetiva, vale mencionar que a última parte da obra se intitula Máquina lírica. Isso não traz apenas a imagem modernizada por Drummond, que destituiu a máquina do mundo da experiência metafísica e de transcendência, traz também momentos bonitos para o livro, como o poema homônimo da série:
Vínhamos conversando no carro,
meu pai explicando o sistema
de sua máquina de plantar.
Os discos cortam a terra,
as sementes caem nos sulcos
de
cinco
em
cinco
centímetros.
Como no Claro enigma (1951) de Drummond, aqui a máquina não é a da explicação. Antes, parece ser a da semeação de devires. O que brota desse labor que é do pai e também do filho (do agricultor e do poeta), podemos chamar de poemas para cicatrizar memórias.
O livro de Escobar Nogueira parece não querer cicatrizar o corte nas costas, no corpo, mas sim fazer da arte de cortar, poetizar, uma possibilidade de cicatrizar lembranças na invenção que chamamos memória.