Verdes e podres frutos

No romance "A ponte no nevoeiro", Chico Lopes cria uma cidade fictícia para narrar a vida pacata de artistas condenados ao provincianismo
Chico Lopes, autor de “A ponte no nevoeiro”
02/06/2021

Incrustada no calorento interior de São Paulo, a fictícia Verdor abriga personagens tão insignificantes quanto a própria localização da cidade. Ao passo que estão paradas no tempo, elas refletem uma realidade que até hoje pouco muda quando se compara com o mundo real: o fracasso dos intelectuais no interior. Ambientado nos anos 1990, A ponte no nevoeiro, terceiro romance de Chico Lopes, retrata o cotidiano arrastado de uma cidade tomada por duas dinastias que se revezam no poder público.

Ainda que Verdor ostentasse dias de maior glória, como quando o único cinema de rua era aberto, com os sarais idealizados por uma artista renegada, esposa de um dos fazendeiros do local, a glória, por menor que seja, é sempre acompanhada da desilusão, da incredulidade. Amargando nas tardes quentes de Verdor estão os artistas da cidade, como Marineide, a escritora que vê o lançamento de seu livro tímido ser um fiasco. E pior: ser alvo do buchicho alheio. A questão não é qualidade literária, sim a falta de interessados em arte ou literatura.

Ela é personagem secundária, uma coadjuvante que não passa batida. Como o pintor Pietro, velho de guerra, que rumina alguma glória do passado para sobreviver, para o amargor de sua realidade não tomar conta da boca. Um artista de paisagens locais, Pietro, a bem da verdade, é a síntese da tese de que o provincianismo sempre engoliu qualquer reminiscência artística que vá brotar em grotões do interior. Gente como ele e Marineide marginalizadas fora dos grandes centros.

As personagens em segundo plano têm um brilho peculiar no romance, são frutos caídos, já amarelados e molengas, de promissoras árvores que um dia dariam sabor e graça à literatura “local”, isto é: passaram do tempo, não foram colhidas, não tiveram fama ou êxito em suas respectivas áreas. Foram ao chão, atraídos pela inevitável gravidade que puxa mais forte no mundo das artes, para se espatifaram de encontro com o esquecimento, o ostracismo. Mas mesmo frutas caídas têm histórias para contar.

Os protagonistas
Ainda vicejando, nessa metáfora da árvore literária, são dois os jovens que protagonizam A ponte no nevoeiro. Siqueira e Bruno, inseparáveis, de vinte e poucos anos, que tentam ciscar as migalhas de uma vida flanando pelas ruazinhas e pelos bares de Verdor. Bruno, o poeta, se apaixona por Isa, já no começo do livro, esta que é uma mulher mais velha, experiente, e, sem dúvida, sem vocação literária alguma. Sendo ela sua musa, eis que o jovem tenta retomar a imagem da moça obsessivamente, ruminando os lapsos de pouca glória que teve com a mulher.

Bruno é um pequeno-burguês que busca algum sentido na vida, tema recorrente em romances de formação. A busca pelo pai e o entendimento com a moça que corteja são as duas situações que o jovem poeta tenta dar conta durante todo o livro. Felizmente, o amigo Siqueira se faz presente em sua vida. Para Lina, mãe de Bruno, o amigo é má influência — seu passado, antes mesmo de nascer, é um fator que pesa nas aparências de Siqueira, afinal, sua mãe era “da vida”.

Siqueira mora com os tios, vive de bicos, não gosta do trabalho arranjado na prefeitura e vai trabalhar em um jornal recém-montado na cidade, criado para catapultar a candidatura do ganancioso Donato Rocha, um forasteiro chegado de Brasília para recomeçar em Verdor. Com máscara de progressista, Rocha está interessado no poder municipal, tem dinheiro e joga alto na campanha para tentar se coroar prefeito.

Para Siqueira, o trabalho no jornal amador será uma ponte para a mulher de Donato. Lá, nutrindo uma paixão platônica, ele observa o sórdido jogo político do patrão, que paga de progressista, embora destrambelhado, apequena-se em torno de si e seu jornaleco. Saindo da redação, uma casa modesta de bairro, Siqueira bate ponto no Anésio, um dos bares que frequenta na cidade, point dos jovens, cenário vital do romance, cujo trânsito dos tipões de Verdor é imprescindível.

No Anésio conhecem Otávio, um homossexual de caso com uma espécie de michê “machão”. Depois de viajar e desistir da vida em grandes cidades, Otávio, legítimo herdeiro e burguês do livro, é olhado com curiosidade e receio pelos meninos; sua natureza e sua classe são o ponto da transgressão do rapaz, mais velho que Siqueira e Bruno. Não demora para eles firmarem uma camaradagem. Bom de papo, Otávio também está à margem, como os meninos, não por ser artista, que não é o caso, mas por sua natureza.

Retrato do provincianismo
A ponte no nevoeiro é um retrato de como o provincianismo soterra e marginaliza artistas em cidades pequenas. Chico Lopes projeta nos meninos uma esperança sem muitas perspectivas. Se ser um escritor, mesmo em grandes cidades, já é difícil, no interior periga não só não vingar, como ser pechado de maluco ou coisa pior.

Ainda que o outro lado da ponte seja desconhecido e a volta, impossível, ao cruzar a estrada rumo ao estranho, nos finalmentes do livro, Bruno perde a fotografia que depositara no bolso. É esse o início de um caminho que, ameaçado pelo provincianismo, bate asas para outras bandas, como tem que ser.

A ponte no nevoeiro
Chico Lopes
Laranja Original
333 págs.
Chico Lopes
Paulista radicado em Poços de Caldas (MG), publicou os livros de contos Nó de sombras (2000), Dobras da noite (2004) e Hóspedes do vento (2010), entre outros. A ponte no nevoeiro (2020), sua terceira narrativa de fôlego, faz parte de uma trilogia composta por Corpos furtivos (2015) e O estranho no corredor (2011), vencedor do Prêmio Jabuti.
Matheus Lopes Quirino

Jornalista, é editor revista eletrônica de literatura Fina e colaborador do jornal O Estado de S. Paulo.

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