Verdadeiro ou falso

"Perácio", incursão literária de Bráulio Mantovani, roteirista de Cidade de Deus, aposta nos efeitos de ambigüidade
Bráulio Mantovani, autor de “Perácio — relato psicótico” Foto: Carolina Kotscho
01/09/2011

Bráulio Mantovani é um dos autores mais conhecidos do país, ainda que somente agora tenha publicado seu primeiro romance. Isso é fácil de explicar: desde 2002, Mantovani é responsável pelos roteiros mais celebrados do cinema nacional, tendo assinado Cidade de Deus e os sucessos de Tropa de elite. Essas credenciais como roteirista, todavia, passam ao largo quando se lê Perácio — relato psicótico, editado pela Leya. Isso não apenas porque o texto pertence ao gênero romance, mas, essencialmente, porque destoa de toda a produção conhecida de Mantovani até aqui. O texto, com efeito, chama a atenção pela narrativa experimental e ao mesmo tempo pungente. Mais do que isso: o texto, em alguns momentos, sugere que a ficção não pode ser tão absurda, do mesmo modo que os relatos dificilmente provocam essa sensação de incômodo com tanta eficácia. O relato de Mantovani faz pensar — e consegue isso graças ao estilo adotado para dar vazão às inúmeras vozes que perpassam a história.

Sobre as narrativas em prosa, mais do que acontece com a poesia, é lugar-comum esperar que os textos de estréia chamem atenção mais pelo conteúdo do que pela forma, como se essas esferas não estivessem relacionadas. Assim, de um modo geral, se um autor decidir inovar no apelo narrativo é como se ele fosse liberado de produzir um romance com temática menos pungente. De forma semelhante, se um autor por ventura decidir se aventurar por um tema “original”, está claro que não se esperará dele alguma inovação na maneira de contar a história. Se, com efeito, a apresentação for linear, correta e sem sobressaltos, alguém poderá dizer que seu romance atende as expectativas. Em Perácio — relato psicótico, nenhum desses elementos parece estar presente. Pelo contrário. Tanto na forma narrativa quanto no tema abordado, o leitor está longe de encontrar um romance convencional.

E a não convencionalidade vem menos do desejo de “chocar o público” do que pela necessidade que o autor tinha de contar essa história. Aqui, faz-se necessário comentar a carta de apresentação do livro, uma espécie de prefácio, direcionada ao editor, Pascoal Soto (mas que serve bem ao leitor para que este compreenda a proposta do texto). Mantovani responde a Soto em relação aos inúmeros atrasos para a entrega deste que seria seu romance. O autor dá suas explicações, e o leitor toma conhecimento pela primeira vez da existência de fitas que possuem um relato tão improvável quanto intrigante acerca de Perácio. A singularidade da trama já dá indícios do que aguarda o leitor. Ao que parece, segundo Mantovani (e isso serve, mesmo indiretamente, de vaticínio ao leitor), todos aqueles que foram expostos ao relato sobre Perácio ficaram perturbados de forma permanente. Nem mesmo Mantovani sobrevive totalmente ileso, a ponto de sua prosa se mostrar convulsa e alterada em inúmeros momentos da carta.

Do ponto de vista de sua estrutura, e é aqui que se observa a inovação estilística, temos diferentes vozes se alternando para trazer à tona o curioso caso do paciente Perácio. E isso acontece porque, como o narrador avisa, Perácio não pode falar. Em seu lugar, surge o CFD (o narrador) que apresenta sua versão em depoimento ao autor. Este, por sua vez, aguarda como bom ouvinte o momento certo de comentar o que lhe é contado. Em outro plano, agora no tocante ao tema, o leitor apreende que Perácio está numa instituição psiquiátrica para ex-agentes que estiveram envolvidos na tortura e na captura de militantes e guerrilheiros durante a Ditadura Militar nas décadas de 1960 e de 1970. Embora estivessem vivos, esses ex-agentes não conseguiram escapar sem traumas dos anos de chumbo. No texto da carta que escreve ao editor (que, não por acaso, abre o livro), lê-se que o autor chegou ali com o objetivo de realizar um projeto para o cinema. Embora traumática, a experiência seria em vão não fosse o romance ser publicado.

Sonho e realidade
Com todos esses ingredientes, o romance resulta numa articulada trama de ação essencialmente cerebral. Em outras palavras, o leitor se vê amarrado pela narrativa, não graças a seus efeitos de perseguição e suas seqüências vertiginosas, mas, sim, pelo fato de o texto produzir um efeito hipnótico no leitor. E o autor consegue isso graças ao estratagema de, em cada voz, apresentar um estilo bastante peculiar: no caso do narrador CFD, por exemplo, é um texto longo, sem interrupções das vírgulas, sendo separadas apenas pelos pontos finais nas sentenças. Mesmo quando se trata de reproduzir um diálogo, CFD parece não interromper o fluxo de sua narrativa, dando conta da história e não concedendo espaço para a contestação de suas idéias quanto a Perácio. Já quando se trata do comentário de Mantovani, a princípio, lê-se que o autor tenta dosar essa veia verborrágica com algumas ponderações, mas, com o andamento da história, acaba perdendo a vez e, por outro lado, deixa sua voz ser influenciada por CFD, que, em tese, seria apenas o seu interlocutor.

Nessa troca de papéis, que aparentemente denunciaria um autor inexperiente para lidar com a prosa romanesca, nota-se um estreante que, em verdade, detém as técnicas narrativas elementares para contar a história. E aqui, talvez, o comentário inevitável fosse: trata-se de alguém com experiência para apresentar narrativas. E, com efeito, o adendo seria bem-vindo, não fosse o fato de que, no romance, estratégias inovadoras nem sempre resultam em textos bem elaborados. Ao mesmo tempo, percebe-se que não havia alternativa para esse relato psicótico. Em outras palavras, tem-se a impressão de que, se não contasse com essa estrutura, a história que envolve Perácio não poderia ser contada — é quase como se uma forma e conteúdo fossem inseparáveis.

Ainda a propósito do tema do romance, é fundamental ressaltar a incapacidade de Perácio, a certa altura, distinguir o sonho da realidade, como se ambos os núcleos fossem uma massa indistinta. Como demonstra o relato de CFD: “Eu não sei se ele se lembra desse pesadelo agora nem se ele se lembra de que antes de vir parar aqui ele sabia ele sabia que às vezes confundia o que ele vivia com o que ele sonhava e que isso tinha a ver com os pesadelos que ele tinha”. Na intervenção seguinte, o comentário do autor dava conta de que ele também temia sofrer da mesma dúvida enquanto o sonho por vezes lhe parecia real. E, de fato, essa passa a ser a tônica dominante da narrativa, pois ao longo do texto não se sabe muito bem se as histórias de Perácio eram frutos da imaginação (sonho?) ou se davam conta de sua experiência como ex-agente.

A maneira como Perácio — relato psicótico é concebido proporciona esse efeito. E mesmo nos textos de apresentação, essa ambigüidade entre o fato e a ficção é sugerida ao leitor. Nesse sentido, os depoimentos de Pascoal Soto (o editor), bem como os comentários de Contardo Calligaris e outra carta, ao final, com sentido de posfácio, ajudam a forjar essa ambivalência entre o verdadeiro e o falso. O resultado funciona na medida em que o leitor é envolvido e se pergunta: o que aconteceu de fato foi verdade? Em seu romance de estréia, a ficção de Braulio Mantovani não poderia apresentar resposta mais conclusiva.

3 Perguntas – Bráulio Mantovani

• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Foi na escola primária, na quarta série, quando li coração de vidro, de josé mauro de vasconcelos. Li duas vezes seguidas. E passei a ler livros constantemente.

• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
Além do meu próprio prazer com a escrita? Talvez, mais prazer.

• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
Digamos que eu não escolhi. Comecei a escrever o texto. E saiu um romance.

Perácio — relato psicótico
Bráulio Mantovani
Leya
224 págs.
Bráulio Mantovani
Nascido em São Paulo (SP), Bráulio Mantovani é um dos principais escritores de cinema do Brasil. É membro do Academy of Motion Pictures, Arts and Sciences, do Writers Guild of America e um dos fundadores da Autores de Cinema. Foi responsável, entre outros, pelo roteiro dos filmes Cidade de Deus, Tropa de elite, Ultima parada: 174 e Tropa de elite 2. Perácio — relato psicótico é seu primeiro romance.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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