Vento triste

"Autobiografia da minha mãe", de Jamaica Kincaid, é desprovido de enredo e falha ao tentar transformar críticas sociais em matéria ficcional
Jamaica Kincaid, autora de “A autobiografia da minha mãe”
02/06/2021

O livro começa bem, literariamente falando:

Minha mãe morreu no momento em que eu nasci, e por isso, durante toda a minha vida nunca existiu nada entre mim e a eternidade; às minhas costas, sempre um vento triste, sombrio.

O problema é que o tal “vento triste” não para de soprar da primeira à última linha. Xuela Claudette Richardson conta a sua vida, do nascimento à velhice sem jamais abandonar o tom da raiva, da revolta, do rancor e da indiferença. Ela o confessa: “tudo na minha vida, bom ou ruim, com que tenho um vínculo indissolúvel, é uma fonte de dor”. Afora a mãe, uma figura idealizada que só vê em sonhos onde apenas os calcanhares da mãe aparecem, todos no livro são apresentados da forma mais negativa possível.

Claro que há dificuldades e sofrimentos na sua trajetória: a morte da mãe, a dureza do pai, mestiço de aparência branca e policial corrupto, e o ódio que a madrasta e a meia-irmã lhe devotam, a ponto da primeira tentar envenená-la. Sua mãe era uma caraíba, população nativa da ilha que acabou vencida e da qual só restava uma reserva. E Xuela nasce com aparência caraíba, embora ela se considere também africana. Mas o principal problema não é individual, é coletivo. Xuela decide abraçar todas as grandes questões históricas: o colonialismo, o racismo, as dificuldades identitárias dos mestiços e, por fim, a guerra entre ricos e pobres. Abundam palavras grandiosas como “vencedores” e “perdedores”, “povo africano”, “povo da Inglaterra”, “povo da França”. Elas representam realidades históricas, mas a autora não consegue transformá-las em matéria ficcional, aparecem como recifes onde a narrativa esbarra e naufraga. Os discursos acerca disso, que vira e mexe se fazem presentes no texto, só pioram tudo, prejudicando o clima ficcional, o transe literário por parte do leitor ou leitora.

Não que isso não possa ser feito, com arte tudo é possível. Em Eu sei porque o pássaro canta na gaiola (1969), Maya Angelou elabora um romance autobiográfico acerca de uma infância e adolescência trágicas, marcadas pelo abandono, pela pobreza, pelo racismo e por todo o tipo de violências. Mas o faz com lirismo e esperança, em que a raiva se transforma em superação. Conceição Evaristo, com seu romance Ponciá Vicêncio (2003), consegue o feito de entrelaçar a vida da protagonista à sua herança identitária e aos problemas derivados da sua condição social e histórica, em um país onde a escravidão imperou e até hoje faz sentir seus efeitos deletérios. Não é necessário usar palavras grandiloquentes, é a trama do livro que nos ensina a refletir acerca das questões.

Processos seculares
No caso da protagonista e narradora de A autobiografia da minha mãe, a maior tragédia não parece ser a derivada das forças abstratas da história mundial, do nefasto encontro entre as duas potências imperialistas, França e depois Inglaterra, que colonizaram a Dominica, ilha do Caribe onde ela nasceu. O problema é ela se sentir esmagada por esses processos seculares. As consequências dos mesmos ainda estão presentes, é lógico, isso aparece de várias formas. É a pele branca e os cabelos ruivos do pai facilitando a sua identificação com um dos “vencedores”. É o uso distintivo da língua inglesa versus a utilização do patuá francês pela população mais pobre. É o ensino da História a partir da visão do colonizador, levando os colonizados a se sentirem inferiores e a duvidarem uns dos outros.

Tudo isso, entretanto, são dores externas que a narradora convoca, talvez para poder lidar com a dor maior, a dor verdadeira que a toma completamente, a dor do abandono:

Ninguém me observou e testemunhou, eu observei e testemunhei a mim mesma; a corrente invisível saía e voltava para mim. Passei a me amar por rebeldia, por desespero, porque não havia mais nada.

O “não havia mais nada” é relativo, talvez houvesse, mas ela não o buscava, não queria acreditar que existisse. Todos os relacionamentos que tem são com homens casados e mais velhos do que ela. Ela tolera, com um misto de nojo e prazer, que usem seu corpo, que ao menos não é indiferente como a sua alma. Eis como descreve o final de sua primeira relação sexual, que foi consensual (todas foram):

(…) e a cada penetração dele dentro de mim, eu soltava o mesmo gemido, um gemido de tristeza, pois sem fazer daquilo o que não era de fato eu já não era a mesma pessoa de antes. Ele não era um homem de amor, eu não precisava que fosse.

De fato, o corpo, o seu corpo, que desde cedo aprendeu a manipular, é o primeiro e último refúgio de Xuela. Até me arrisco a dizer que ela acredita tão somente nele e no que é proveniente dele.

Mas há uma cesura entre corpo e sentimento que permite a ela relacionar-se com os homens sem se sentir tocada por eles. Ela se casa com um homem mais velho, um médico branco e rico, depois de ser sua amante durante um tempo. Esse homem, Philip, desenvolve um sentimento muito forte por ela, ele a ama, ele a adora até o fim dos seus dias. Mas é óbvio que para ela não poderia dar certo: ele “era dos vitoriosos” e ela “a vencida, a derrotada”. A causa real do fracasso, todavia, está em outra parte, como ela admite: “Acredito que minha vida inteira tenha sido desprovida de uma coisa dessas, de amor”.

Não é totalmente verdade, se acreditarmos no seu próprio relato. Certa vez, abrigando-se de uma chuva forte em uma loja de tecidos, vê um homem, ou melhor, vê uma boca de homem, parecida com uma ilha. Isso a atrai, fica hipnotizada. Começa a olhar para o homem e depois a gritar o nome dela mesma até que ele vem na sua direção, quando ela diz tão simplesmente: “— Eu te amo, eu te amo”. Simples assim. Roland era estivador e conseguiu o feito de tornar Xuela feliz por um tempo. Por dez páginas, para ser exato, até esse amor terminar sem motivo, da mesma forma que havia começado.

O episódio com Roland é uma das poucas histórias que são contadas no livro. É uma obra desprovida de trama, de enredo. Nos sentimos prisioneiros da mente de Xuela, de sua maneira desafortunada, gélida e lamentosa de ver o mundo. Há que se fazer justiça, a autora escreve muito bem, há uma poética do desespero. Mas que não compensa a falha fundamental da obra.

Xuela fica grávida do homem mais velho com quem se relacionou pela primeira vez. Vai até a casa de uma curandeira que a faz beber um xarope grosso que a leva a abortar. Sente-se como quem segurou a vida nas próprias mãos e toma a seguinte decisão: 

Minha vida era muito mais que vazia. Nunca tinha tido mãe, tinha acabado de me recusar a virar uma, e sabia que essa recusa seria total. Nunca me tornaria mãe, o que não era a mesma coisa que nunca gerar bebês. Eu geraria bebês, mas jamais seria mãe deles.

Parece uma vingança invertida: se a mãe morrera quando ela nascera, os bebês morreriam nela antes de nascer. É uma negatividade que escorre de cada palavra, de cada imagem do livro. Como se pode ver nesta outra passagem:

Não falava com ninguém, nem comigo mesma. Dentro de mim não havia nada; dentro de mim havia um jazigo feito de uma substância tão pesada que não tinha com o que compará-la; e dentro do jazigo havia uma dor de tamanha intensidade que a cada noite, deitada sozinha na minha casa, todas as minhas exalações eram lamentos graves, como um furúnculo lancetado.

A dor e a arte
Depois de todo o sofrimento que a narradora diz ter sentido, resolve contradizer Sófocles, para quem era necessário “sofrer para compreender”. Pois a frase final do livro é de uma banalidade a toda prova: “A morte é a única realidade, pois é a única certeza, inevitável a todas as coisas”.

Mestre Antonio Candido dizia que a ficção opera uma deformação da realidade para poder apontar com mais agudeza questões da realidade. Muitos autores e autoras abordaram e abordarão as questões presentes no livro de Jamaica Kincaid de uma forma literária muito mais elaborada e prazerosa para leitores e leitoras. Há quem saiba transformar o sofrimento em arte. E há quem transforme a arte em sofrimento.

A autobiografia da minha mãe
Jamaica Kincaid
Trad.: Débora Landsberg
Alfaguara
137 págs.
Jamaica Kincaid
Nasceu em São João, capital de Antígua e Barbuda, em 1949. É professora universitária em Harvard e romancista, tendo recebido diversos prêmios literários, como o Prix Feminina e o PEN/Faulkner.
Marcos Alvito

Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.

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