O curso de redação do Sr. Mahler levou Leg a ter imaginação. Ela pegou uma porção de recortes de jornais, misturou-os, pegou a quinta palavra de cada linha impressa e fez um poema fantástico. ‘Isso é liberdade de expressão, mãe’, disse ela. E ela disse que você nem imagina o quanto isso faz alguém se sentir livre apenas por juntar aquelas palavras. Tem um grande significado quando você deixa de fora o fator gramatical. Ela diz que Rowland diz que não é o que você põe, mas o que deixa de fora, e são os silêncios em vez do som. Estou tão grata pelo que tem feito por Leg, Sr. Mahler.
O Sr. Mahler tem 29 anos. É professor de redação criativa. E ficou muito orgulhoso ao receber essa carta entusiástica, enviada pela mãe de uma de suas jovens alunas ricas. Sua escola, a Sunrise, é pequena e simples — para os exigentes padrões europeus —, mas certamente está entre as melhores finishing schools do Velho Mundo. “Somos uma escola genial”, gaba-se. Sua mulher, Nina Parker, sócia do empreendimento, aproveita aquele raro minuto de enlevo para perguntar ao marido se aquilo já não bastaria para satisfazê-lo profissionalmente. Afinal, tendo atingido tal grau de excelência, quem sabe ele nem precise mais escrever aquele seu bendito livro? “Não sente que é uma dessas pessoas que podem passar sem escrever um romance?”, ela arrisca. Um tiro na água. Mahler se fecha: “Não”.
Rowland Mahler é um dos patéticos protagonistas de Uma escola para a vida, 22.º romance da octogenária escocesa Muriel Spark. Ainda garoto, Rowland escreveu uma peça teatral de enorme sucesso, tornou-se uma promessa da alta literatura, embolsou uma herança familiar, casou-se com uma bela mulher e montou uma escola itinerante na Europa — temporariamente radicada em Lausanne, na Suíça. Ganha bem, vive bem e tem de tudo. Só abriu a Sunrise, aliás, para que, ministrando suas aulinhas de redação criativa, tivesse o tempo e as condições ideais para compor o seu incrível e tão aguardado primeiro romance. Uma estréia que, simplesmente, teima em adiar-se. Rowland está bloqueado. E Nina, ainda bem, toma conta dos negócios.
O outro protagonista do livro de Spark é Chris Wiley. Um guri ruivo, tido como gênio por todos que o conhecem, socialmente habilidoso e encantador, seguro e elegante já aos 17 anos. Melhor aluno de Mahler, Chris também está escrevendo um livro, um romance histórico baseado na vida de Mary, rainha da Escócia decapitada em 1587. Mas, ao contrário do que acontece com o trabalho de seu mestre, o de Wiley vem progredindo muito. Mesmo assim, ao mostrar os primeiros capítulos de sua obra a Rowland, dificilmente imaginava que tipo maléfico de reação provocaria no professor. Mahler odiou aquilo tudo: o material era dolorosamente bom, em nada imaturo ou adolescente. Chris era mesmo um prodígio; e a Rowland Mahler restaria somente invejá-lo — o mais infértil, o mais paralisante dos sentimentos humanos.
A partir dessa descoberta de Rowland, a convivência entre ele e Chris se torna tensa. Ambos se provocam — ou seduzem — até ultrapassarem os limites mais extremos do narcisismo intelectual. Ao mesmo tempo, disputam a admiração do resto da escola — alunos, funcionários e criados —, personagens menores, medíocres e caricatos que parecem parodiar, gaiatamente, a complexa sociedade de internos do sanatório suíço criado por Thomas Mann em A montanha mágica. Sentindo-se diminuído em sua autoridade professoral, obcecado pelo fulvo frescor de Wiley, Rowland se entrega a uma paranóia galopante. Chega a vasculhar o quarto de Chris, a revistar e farejar seus pertences. Busca eventuais anotações, novos trechos do romance que tentará, a todo custo, sabotar.
“A luz dos homens”
Só quando Rowland passa a se alimentar mal, descuidar do trabalho e desenvolver perigosas fantasias assassinas, é que Nina intervém, delicadamente, sugerindo que o marido, talvez, seja daqueles incomuns homens de sorte e gênio, felizes por não precisarem escrever romances. Pessoas como o artista plástico Marcel Duchamp descrito por Enrique Vila-Matas em seu romance O mal de Montano. Quem fala é um personagem do escritor espanhol: Duchamp seria um artista que já tinha e sabia tudo e, que por isso mesmo, não precisava fazer mais nada. Como o sereno Hamlet ao voltar do mar — na expressão do crítico literário Harold Bloom —, um artista sabedor de tudo pode se dedicar, sem culpa e sem angústia, a vagabundear até o fim de sua vida.
Mas não Mahler, bem pouco sabido: para escrever seu romance, ele precisa destruir o de Chris. Para os dois escritores aspirantes, obviamente equivocados, a escrita é mais importante do que a vida. Só lhes agradam a literatura e a vontade de fazê-la. Numa das aulas de Rowland, inclusive, ele invoca São João como quem recorre a um aliado, um colega de credo. “No princípio, era o Verbo”, proclama, citando o evangelista que pregou que “a palavra era Deus”, que “tudo foi feito por meio dela”, que “nela estava a vida” e que “a vida era a luz dos homens”.
Pois essa crença — religiosa — de Rowland no poder mágico das palavras, por mais romântica que pareça, acaba por transformá-lo num belo idiota ilustrado, num corno enfadonho, incapaz de perceber que sua mulher, exaurida, já ensaiava suas primeiras e justíssimas infidelidades conjugais. Tudo o que animava Rowland eram suas disputas verbais com Chris, passagens que a venenosa Muriel Spark relata com gosto. Experiente, ela conhece os seus tipos. Em determinado trecho, Rowland pergunta a Chris se os seus personagens têm vida própria. O guri afirma que não, que nenhum deles, até aquele momento, havia atravessado uma rua sem que ele, o autor, o levasse a agir daquela maneira. A resposta irrita Mahler, profundamente. Porque aquele modo de pensar transformava numa “tolice a sua palestra número três sobre redação criativa”.
Há outros embates. Muitos. E a maioria tem como platéia a já citada sociedade teen da escola de aperfeiçoamento Sunrise, formada por garotos mimados, aprendizes de madame, freaks e funcionários desgostosos. É pelo domínio desse público que brigam Rowland e Chris? Improvável. Lilly Bloom, azeda personagem do romancista inglês Will Self, levanta uma questão semelhante no livro Como vivem os mortos: para que escrever tanto e tão bem, se mesmo um texto de primeira categoria parirá monstros horríveis no espírito raso e conturbado de leitores de segundo, terceiro e quarto escalões? No caso dos protagonistas de Muriel, seu combustível é a vaidade. E o amor doentio, camuflado, de um pelo outro. A julgar pela conversa das mulheres de Sunrise, é difícil acreditar que eles se interessem espiritualmente por elas.
— […] Meu pai, o Sr. Kapellas, é de uma tradicional família de comerciantes. Mas minha mãe é analfabeta. No entanto, ela usa roupas caras.
— As roupas caem bem nela? — perguntou Mary, uma encantadora inglesa em formação, com vestido e olhos azuis. […] — Tudo depende do caimento. A gente vê mulheres com roupas lindas, mas que não caem bem nelas.
— Tem toda a razão — concordou Nina […].
Logo são levantadas suspeitas acerca de uma possível e enrustida homossexualidade de Rowland Mahler.
Enquanto isso, Chris ganha terreno. Espertamente, chama a atenção de algumas editoras para o seu livro. Um romance histórico sobre a rainha Mary escrito por um menino de 17 anos? Dá mídia. Antes mesmo de terminá-lo, Chris já está negociando sua venda — até para o cinema. Tanta bajulação faz com que Rowland se interne em um mosteiro católico, ávido por paz de espírito. Afasta-se, como diz o samba, para se livrar do mal.
A graça ou a glória
Um pouco de sossego, no entanto, só viria mais tarde, por intermédio de Monty Fergusson, um renomado editor literário que pretendia comprar os direitos de publicação do livro de Chris. Ele é o primeiro a dar seu parecer gabaritado sobre a obra-prima em construção: “É uma bosta”, diz o tubarão editorial, despejando um balde de água gelada em Wiley e no facilmente excitável mercado livreiro europeu.
Em contrapartida, uma das editoras antes interessadas em Chris descobre Rowland. É que, dando vazão a seu ódio — mas tentando impor-lhe algum direcionamento —, o professor escrevera um livro sobre suas experiências com os alunos da Sunrise. Promove-se, então, uma reviravolta no romance, poucas páginas antes de seu final cinicamente feliz — mas nada surpreendente para quem conhece figuras tão afetadas como as que protagonizam Uma escola para a vida.
E de que trata o livro? Literatura? Longe disso. Trata, sim, de elementos infelizmente subjacentes a ela ou, pelo menos, comuns aos que almejam, mais que a graça, a glória literária: a inveja — que Rowland sente de Chris — e o ciúme — que o “mestre redator” sente do próprio ato de escrever, “maculado” pelo talento alheio.
O que é o ciúme? Ciúme é dizer: o que você conseguiu é meu, é meu, é meu? Não exatamente. É dizer: eu o odeio porque você conseguiu o que eu não tenho e desejo. Quero ser eu, eu mesmo, mas na sua posição, com suas oportunidades, seu fascínio, sua aparência, suas habilidades, seu benefício espiritual.
O velho monstro de olhos verdes, enfim. “Invejar o bem espiritual do próximo”, bem sabe o ridículo Rowland, é o quarto pecado contra o Espírito Santo. Por isso, ele sofre com fervor, deseja até que Chris morra dormindo. Patologia vulgar, deprimente, mas que Muriel Spark soube transformar numa ótima comédia espinhosa. Um romance breve e divertido, que sugere serem mais felizes aqueles que não precisam escrever coisa alguma. Esses já estão resolvidos.