Velha, gorda, patusca e ruborizada

De como um leitor do século 19 encontra em um livro do século 21 o clássico que tanto procurava
Michel Houellebecq, autor de “Plataforma”
01/06/2002

Abrir Plataforma, novo romance de Michel Houellebecq, e ir, página após página, descobrindo seu mundo sem heróis nem vilões, de homens de uma humanidade pulsante e de ética questionável, é sentir-se mais ou menos como uma gorda e patusca senhora ruborizando-se no final do século 19 ao ler um clássico como Oscar Wilde e Machado de Assis. Fechá-lo, após uma tarde inteira de leitura, mal tendo vontade de parar para ir ao banheiro (sim, o crítico também vai ao banheiro, meu senhor), é ter a certeza de que se descobriu um novo clássico. Esta impressão, claro, só não pode ser compartilhada por aqueles que, tomados pelo ceticismo próprio de quem vive cercado de inúmeros nomes em busca de um lugar numa enciclopédia de literatura qualquer, desdenham para este novo nome da literatura mundial. Ah, claro, há ainda os ufanistas, que acham que nome bom, nome bom mesmo da literatura, tem que ser brasileiro, com pé na senzala e tudo o mais.

O rubor daquela velha patusca em pleno século 19, lendo um autor francês que não lhe é de todo desconhecido, começou no famoso 11 de setembro de 2001, quando Osama bin Laden teve a idéia de destruir o símbolo máximo do poderio americano, as torres gêmeas do World Trade Center. Naquela oportunidade, a velha gorda leu uma entrevista de Michel Houellebecq na revista francesa Lire, na qual ele solta o verbo para cima do islamismo. Vale aqui a ressalva de que a entrevista foi publicada antes do dia fatídico. Com frases como “o islã é a pior religião do mundo”, Houellebecq ganhou instantaneamente o ódio de mais de um bilhão de pessoas e a fama de ser o “novo Salman Rushdie”. A verdade é que só uma leitura equivocada de Houellebecq é capaz de achar que o ódio pelo islamismo que pontua todo este seu Plataforma, bem como a fama de novo Rushdie, possam fazer sentido. São duas leituras superficiais e precipitadas, que misturam marketing e voyeurismo em doses homogêneas. Marketing porque chamá-lo de novo Rushdie é projetá-lo como um mártir da intolerância religiosa, coisa que, ao contrário do escritor inglês, Houellebecq jamais quis ser. Voyeurismo porque é muito próprio de nossa época querer vislumbrar na vida do escritor algo que justifique esta ou aquela passagem de seus trabalhos. Neste caso, resenhistas de ocasião — médicos e dublês de escritores em fim de carreira em ambos os campos e que escrevem para revistas de grande circulação para aumentar em alguns centavos seus rendimentos — gostam sempre de citar que a mãe de Michel Houellebecq, depois de se converter à religião de Alá, matou-se; e este seria o motivo da revolta do francês, exposta na forma de literatura.

Ah se todo escritor fosse capaz de se revoltar com o mesmo talento de Houellebecq!

A verdade é que os motivos que levaram o escritor a criar um personagem absolutamente terciário em seu romance, que em certo momento faz uma defesa apaixonada do politeísmo disfarçado do catolicismo contra o monoteísmo totalitário do judaísmo e do islamismo, pouco deve nos interessar como leitores. Afinal, o que lemos é um romance, e não um álbum de fotografias familiares. Pode-se discordar, claro, das idéias de Houellebecq e da maneira, digamos, pouco sutil, como ele discute tais tópicos. Uma leitora católica fervorosa pode, por exemplo, argumentar que sua religião não é politeísta, apesar de todos aqueles santos. Um muçulmano que não seja figurante de novela global pode dizer que o islamismo prega a máxima tolerância, de acordo com o verso tal de capítulo tal do Corão. Como disse, pode-se (e até mesmo deve-se) discordar, mas ignorá-lo é estar dando de ombros para aquele que é um dos mais atentos observadores do nosso mundo.

Em Partículas elementares (Editora Sulina), Houellebecq narra a história de uma nova religião por nascer, sustentada pela biotecnologia. É mais ou menos como se o novo Messias fosse um ser clonado e com seus genes modificados à perfeição. Ao mesmo tempo, e para não parecer um hippie reacionário (a vanguarda do atraso), Houellebecq construiu um personagem, filho da revolução sexual, que, em sua vida entrópica, possibilita a ascensão desta “religião científica”. No meio deste embate entre os dois personagens que são meio-irmãos, há ele, onipresente nas obras de Houellebecq: o Tédio. O tédio atua como um catalisador do descrédito que leva à crença nestes pequenos deuses de laboratório que são os cientistas. Como a espiritualidade se dissolve em incensos made in Índia e perde identidade local, surgem estes novos elementos que são universais e cientificamente irrevogáveis: os genes. É o cenário perfeito para uma utopia pessimista à George Orwell, mas sem o peso político daquele.

É bom que se diga, contudo, que há quem leia Partículas elementares como uma ode à ciência. E é aqui que entra uma qualidade indiscutível na obra de Michel Houellebecq: a ambigüidade sustentada no humor. E por humor não entendam gargalhadas vômicas; o humor de Houellebecq enche a casa com o sorriso amarelo de nossa vergonha.

É em pequenas atitudes que este humor se revela. No primeiro capítulo já o narrador, também chamado Michel, vai ao enterro do pai, assassinado. Fica evidente que o infeliz Michel odeia o pai — por pudor não reproduzo aqui as palavras que traduzem este ódio. Em certo momento, Michel se senta e se põe a assistir ao seriado Xena, fazendo um comentário que o seriado seria excitante para lésbicas. Adiante, define a felicidade a partir de modelos de consumo. Neste caso, os teóricos da economia Marshall, Copeland, Baudrillard e Becker, autores destes modelos, assumiriam o papel de filósofos na busca da felicidade. Recebendo um elogio de sua superiora no trabalho, que diz que ele é um gênio em finanças, Michel faz um comentário simples para o leitor, dizendo que seu trabalho é tedioso e que a única coisa que faz é usar as operações matemáticas básicas. Comentando sobre seu cotidiano, ele conta que, depois do trabalho no Ministério da Cultura, onde organiza estas insuportáveis vernissages de arte contemporânea, conta que costuma passar em peep-shows antes de voltar para seu apartamento. Ali, vendo mulheres rebolando, esquece-se imediatamente das “tendências contraditórias do vídeo contemporâneo, o equilíbrio entre conservação do patrimônio e o estímulo à criação viva…”. Enfim, nas 383 páginas do livro são várias as ironias para com o mundo medíocre em que vivemos.

É necessário, aqui, abrir um parênteses para dizer ao leitor que, ao contrário do que se possa imaginar, a prosa de Michel Houellebecq em nada se parece com a de outro escritor, este brasileiro, que gosta de chocar, o tal de Marcelo Mirisola. Enquanto este choca por absoluta falta do que dizer, aquele choca porque o que diz, descobrimos, é muito real e extremamente vivo.

Para aqueles que se sentem ofendidos com sexo, Plataforma é um livro que deve ser sumariamente ignorado nas prateleiras das livrarias. Como toda velha patusca do século 19, contudo, sou indiferente ao sexo literário, e por isso sigo em frente na minha análise exígua porque exíguo é meu espaço. Digo que o livro deve ser deixado de lado pelos puritanos porque Plataforma trata, em última análise, exclusivamente sobre a importância do sexo na nossa vida e sobre como ele, se resgatado, pode revolucionar o mundo. Sim, isso soa como mais uma mensagem salvacionista — e de fato é, se levarmos em conta que, nos limites da narrativa literária, é impossível abraçar todas as sutilezas da vida. É assim que o narrador choca os puritaníssimos leitores deste e de outros países tropicais abençoados por Deus e bonitos por natureza ao propor que o turismo sexual seja, de uma vez por todas, uma atividade sacralizada pelas autoridades. Pelo bem da economia e da saúde mental do mundo.

O curioso é que, durante todo a longa primeira parte do livro, não há nada que nos remeta a uma ode à promiscuidade. Nesta parte, o narrador Michel, com o dinheiro que ganha de herança do pai, resolve viajar para a Tailândia — paraíso do turismo sexual, de acordo com todas as ONGs especializadas no assunto. Lá, claro, ele, assim como outros integrantes da excursão, faz sexo com as garotas de programa. Descobrimos, porém, nesta mesma viagem, que a verdadeira busca de Michel não é pelo sexo em si, mas pelo velho e tradicionalíssimo amor, encarnado em Valérie.

A polêmica toda surge na segunda parte do livro, quando Valérie e Jean-Yves, companheiros de trabalho numa megaoperadora de turismo, têm de descobrir um jeito de reverter o quadro negativo em alguns resorts espalhados pelo mundo, especialmente em países tropicais, como Cuba e Tailândia. A solução vem de Michel: sua teoria é a de que as pessoas, principalmente os europeus, já não fazem mais sexo, porque estão preocupados em trabalhar, sei lá, 80 horas por semana. Assim, quando saem de férias, num destes pacotes para um lugar quente, o que querem eles? Sexo. Não se pode, contudo, oferecer o sexo europeu, gelado e burocrático. Tem-se que oferecer o sexo tropical. Assim, dá-se ao consumidor exatamente o que ele quer: gastar seu tempo e dinheiro em férias realmente significativas para suas vidas vazias. Ao mesmo tempo, dá-se à economia do Terceiro Mundo ricos homens e mulheres capazes de deixar seus dólares em solo local, sem maiores investimentos em infra-estrutura. Nada parece mais lógico, aos olhos de Michel.

Esta teoria disfarça o verdadeiro sentimento nela embutido: o tédio, o vigoroso tédio (sic) que se apoderou do homem contemporâneo. O tema é caro a Houellebecq. Ele já o explorou nos outros dois romances disponíveis no Brasil: o já citado Partículas elementares e o recém-lançado Extensão do domínio da luta, ambos pela editora Sulina. Neste Plataforma, ao contrário dos demais, Houellebecq resolveu dar uma esperança ao narrador. Com essa idéia, ele crê ter resolvido não só os problemas pessoais como os do mundo. E está em paz consigo mesmo. Uma desgraça, contudo, torna o tédio imperativo, quase que uma verdadeira salvação. Ao que parece, o homem contemporâneo tem de escolher entre a vida despropositada de 80 horas de trabalho, a depressão enclausurada em hospitais psiquiátricos, ou o tédio.

É interessante notar que este é o primeiro romance de Houellebecq em que o personagem central esboça um encontro perpétuo com esta tal felicidade.

Houellebecq é um escritor que, já disse, tornou-se clássico por este seu Plataforma e por Partículas elementares; assim mesmo, não procura dar um caráter propositadamente perene em seus livros. Ou seja, eles não são atemporais. Ao contrário, talvez eles chamem tanto a atenção justamente por estarem inseridos num tempo (o nosso, claro), com referências a datas e a personagens de nosso cotidiano. Há referências, por exemplo, a Yasser Arafat, Jacques Chirac e ao atentado contra turistas no Templo de Luxor, no Egito.

Talvez por isso mesmo as críticas do narrador ao islamismo ganharam tanta força nos últimos tempos. Mais do que deveria, por sinal. O livro é muito mais do que um panfleto anti-Islã. Michel, o narrador, é um personagem muito mais complexo, com características muito mais relevantes do que seu ódio aos muçulmanos, que ele deixa transparecer logo nas primeiras páginas, quando diz que “intelectualmente, eu conseguia sentir certa atração pela vagina das muçulmanas”. Logo adiante, as críticas ficam mais duras, principalmente em um diálogo que Michel trava durante uma viagem, com um egípcio, muçulmano, por sinal, que maldiz sua religião por ser intolerante demais. A crítica mais virulenta mesmo, aquela que causou repúdio em certas comunidades muçulmanas certamente incapazes de compreender uma obra literária, só nos é revelada no final do livro. Michel pragueja para todos os lados contra os muçulmanos, mas não gratuitamente; nestas páginas algo deveras revoltante acontece, o que, de certo modo, justifica a ira do narrador. O exemplo mais explícito, é o parágrafo que diz:

“Pode-se certamente permanecer vivo à base simplesmente de um sentimento de vingança; muitas pessoas vivem desta maneira. O islã havia destruído a minha vida, então o islã era certamente uma coisa que eu podia odiar; nos dias seguintes me empenhei em sentir ódio aos muçulmanos. Consegui isso sem muito esforço e voltei a me interessar pelas notícias internacionais. Sempre que ouvia que um terrorista palestino ou uma criança palestina, ou que uma mulher grávida palestina tinha sido abatida por uma bala na faixa de Gaza, sentia um arrepio de entusiasmo pela idéia de que era um muçulmano a menos. Sim, podia-se viver desta maneira.” (p. 370)

Nada, repito, que não seja justificado por acontecimentos anteriores, no livro.

Quanto ao Brasil, bem, por aqui houve alguma chiadeira quanto ao lançamento de Plataforma. Guerrilheiros da correção política atacaram o livro porque ele faria referências ao Brasil de forma a denegrir a imagem do país. Besteira. O Brasil merece um parágrafo e algumas citações ao lado de Cuba e Tailândia, como possível destino para o turista sexual. Nada que não se saiba. Basta dar uma volta pelo calçadão à beira da praia em qualquer capital do Nordeste. Quanto ao parágrafo, trata da violência. Para ilustrar a quantas anda o mundo, o narrador usa São Paulo, e diz que aqui (no caso, lá) os pobres vivem no chão, guerreando e sobrevivendo como podem, enquanto os ricos andam no céu, indo para o trabalho em seguros helicópteros. Qual o escândalo, portanto?

O mais importante na prosa de Houellebecq é perceber que o autor privilegia o indivíduo. Para ele, todo e qualquer grupo é desprezível, digno de chacota. A começar pelos “velhos que malham”, personificados na figura do pai assassinado; depois há os cientistas e os hippies de meia-idade em Partículas elementares; e por fim os turistas sexuais, os executivos sado-masoquistas, os muçulmanos, os leitores de Marie Claire, enfim, toda uma vasta gama de grupos neste Plataforma. Para Houellebecq, o indivíduo é a única estrutura relevante para a sociedade. Se há, de fato, alguma vítima em seus romances, estas são os grupos, que projetam uma sombra enorme sobre a personalidade individual, criando, assim, verdadeiros zumbis que, certamente, lerão este livro (e até mesmo este texto) não como ele foi escrito, e sim como o Líder, quem quer que seja, mandou que fosse lido.

Porque não guiada por Líder algum, eis aqui a gorda patusca do século 19. Certamente ruborizada. Ela acabou de ler Plataforma. A passos vagarosos, ela se aproxima da janela de seu apartamento, de onde pode ver boa parte da cidade (sim, sim, eu sei que não havia prédio de 15 andares no século 19). Lá embaixo, ela vê prostitutas velhas e gordas; vê também jovens correndo apressados atrás de um Futuro (seja lá o que isso for); vê ainda senhores carregando nos ombros algumas lembranças pesadas; nos prédios ao redor, percebe pequenos vultos entediados em frente à televisão. E tem, súbito, a certeza de que a tarde toda de leitura não foi, de modo algum, em vão.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho