Ferro e feno chegou ao meu conhecimento através das palavras entusiasmadas de Rachel Jardim, que me apresentou a autora como uma espécie de Emily Dickinson, capaz de transformar o cotidiano e a intimidade em matéria de poesia. A intrigante coletânea de versos — dividida em duas partes de extensões desiguais (Feno, com 68 poemas, e Ferro, com 29) — vem acompanhada dos comentários de Antônio Carlos Villaça, Álvaro Pacheco, Marcos Cotrim, Rachel Jardim e Ivan Junqueira. Todos se referem a outros livros da autora, tais como Canga e candeia (1976); Cantochão (1978); Sinfonia do capim (1999) e Exercício findo (1980). E todos são unânimes em ressaltar a simplicidade, a espontaneidade, a autenticidade e a sutileza de seu fazer poético.
Foi, portanto, com uma mistura de curiosidade e respeito que folheei o livro que escolhe, para sua contracapa, o poema Gramatical, desabafo impaciente com a linguagem e a gramática, profissão de fé que testemunha o desejo de liberar-se das amarras do verbo e dedicar-se à fruição das pequenas coisas da vida e da contemplação do passado. Nele a autora se propõe a encontrar mais tempo para “colocar velas e flores no retrato do finado”. Cabe aos leitores, portanto, identificar o finado, e examinar se as velas são de libra, se as flores têm viço e se estão bem arranjadas.
Começa-se, assim, a compreender o desequilíbrio dos poemas que se multiplicam no ambiente mais suave do feno, onde os versos relativos ao cotidiano e à simplicidade da vida se espalham em vinhetas de desenhos delicados. Em devaneios sem maiores contundências, as palavras da autora vão evocando sensações: o cheiro da broa de milho, a leveza dos lençóis de seda, os pés na terra úmida. As janelas do passado e das emoções vão descortinando instantâneos rurais e agrestes, cheios de nostalgia, alvo da contemplação e das indagações da mulher que, vivendo em seu tempo, não consegue compreender como a paisagem rude pode nutrir a floração mais delicada das futuras gerações.
Em pinceladas líricas, com tintas levemente saudosistas, mas em que não falta um matiz irônico de quem tem consciência de seu anacronismo, a vida rural e pacata é apresentada como um manancial de prazeres sensuais. E é com o mesmo ardor que se reviram o “pântano fétido” (na certeza de se encontrar o “perfume dos lírios brancos”) e os “antigos gavetões”, que desprendem o “cheiro fortíssimo de naftalina”, mas que não estão livres das traças. Com essa disposição de verificar, no presente, as raízes plantadas no passado (mesmo que essas raízes se revelem ressentidas), chega-se à segunda parte do livro: Ferro. Como epígrafe desta parte, um poema de Drummond (Confidência do itabirano), secundado por uma frase retirada de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Habilmente entrelaçam-se as razões do ferro: o local de nascimento, local férreo, que contamina a alma dos nativos da região, junto com um amor, que, ao invés de dar asas, fornece grilhões. Essa incapacidade de se livrar do passado motiva os poemas em que toda uma genealogia é revivida, com seus laços de afeto e de sujeição. Impossível fugir ao amor e seu “excesso de peso,/ para esta vida que/ é tão breve […]”. O retrato do passado, mesmo quando domesticadamente envolto numa moldura oval e sem arestas contundentes, continua em exposição, porque “as pessoas morrem/ mas os retratos ficam!”. E, para quem conhece o peso do ferro, esses retratos na parede continuam a doer.
Dilacerada entre os retratos, divagando sobre as “fotografias com muita pose”, sobram as flores e as velas como refúgio a um ser armado apenas de palavras para proteger sua sensibilidade enquanto publica sua vitalidade, comparável à “vaca campeada”. A surpreendente escolha dos termos metafóricos é sempre estimulante, Martha Carvalho Rocha organiza suas imagens como quem constrói um buquê com flores do campo, onde não importa a linhagem do arbusto, mas sim as cores de suas flores e a inesperada combinação de matizes. E é assim que ela admite, com simplicidade: “ponto por ponto/ revelo o meu/ avesso, peça/ por peça, revolvo/ o meu passado”. E, no último texto do livro, espécie de poema em prosa, ela admite: “Porque sessenta e tantos anos ainda não se me fazem demais e eu tenho lápis e papel para rabiscar todas as noites a flutuar na imensidão dos mares, descrevendo a vida, mesmo sem compreendê-la”.
Talvez a poeta sinceramente julgue não perceber a vida. Mas que ela sabe tirar partido de suas múltiplas sensações, isso é inegável. E é ela mesma quem confessa que, “atracada ao lápis” vai seguindo a vida “em passo de procissão”, consciente de que seu lirismo toma a feição de “baixo relevo” onde se retrata o cotidiano das tarefas de quem sabe permanecer humana, demasiado humana.