É difícil não se sentir atraído por aquele vaivém de impressões semitransparentes azuis ou verdes. Ou por aquele barulho que chega para levar tudo embora. E trazer novamente. Mesmo quem não mora perto dele, mesmo quem nunca o viu de pertinho e não o sentiu chegar, ir embora e voltar, para sempre. Cada um tem o seu mar. E o sente de uma forma distinta. Só sua. Normalmente sempre a mesma. Mas diferente.
Os romanos, por exemplo, que antes do início da era cristã dominaram tudo e todos, conseguiram até dominar um mar: o Mediterrâneo. Tomaram-no para si, chamando-o de mare nostrum (nosso mar). Salim Miguel, em Mare Nostrum — romance desmontável, fez o mesmo, de sua maneira. Transformou o mar que banha o litoral catarinense no seu mar. Seu e de seus personagens — pessoas comuns, de comunidades de pescadores. Gente fictícia copiada daquelas pessoas de quem ele sempre ouviu histórias, conheceu os costumes e as falas. O mar — nessa obra, personagem principal — é dele e de muitos outros. Nosso, até.
Por 20 anos, Salim Miguel trabalhou em seu “romance desmontável”. Começou escrevendo as histórias Pegadas na areia do tempo e Cãibra, primeira e penúltima, em sua montagem final. Por ser desmontável, tanto fazia ter fechado o livro com elas ou usá-las na abertura ou no meio. Da mesma forma, os leitores podem correr os olhos de acordo com a maré regida por Salim ou fazer seu próprio caminho. Não faz diferença. O mar estará sempre ali. Assim como a maioria dos personagens, lugares e acontecimentos. A leitura de Mare nostrum pode ser feita como se o romance fosse, na verdade, um livro de contos. Contos com personagens, lugares e situações comuns uns aos outros. Todos amarrados pelo protagonista, o mar. O mesmo mar que banha Biguaçu — cidadezinha perto de Florianópolis escolhida por Salim Miguel para ambientar suas histórias — poderia lamber os pés, mãos, rostos e pulmões de pescadores ou turistas no Morro de São Paulo, no Leblon ou na Praia de Leste.
Alguns personagens aparecem mais que outros, nas histórias agrupadas nesse livro. “Seo” Neno é um deles. Pescador experiente e de conversa boa, cheio de histórias amarradas umas às outras como a rede que usa para pegar peixinhos miúdos. Ele aparece, sem cronologia definida, em capítulos dedicados a vários outros viventes. Mas sempre festejado pelas histórias que conta — e que puxam outras, cada uma melhor que a anterior — e por ter se recuperado de um tétano velhaco que quase o levou desta para melhor.
Esses personagens “conhecidos”, citados com freqüência, é que dão ao livro o tom de romance. São eles, junto com o mar, que mantêm a história coesa, mesmo que fora de ordem. Mas muitos outros personagens povoam a narrativa. Periféricos, aparecem e somem. Para sempre. Folclóricos, parecem com aqueles que vemos em tudo que é cidade, por menor ou maior que seja. Como o “Poli-homem”. Senhor que sempre, mas somente durante a alta temporada — entre dezembro e o carnaval —, “atacava” os passantes com perguntas sobre política. E depois, passado o tempo de férias e folia no litoral, voltava a ser um mesmo senhorzinho apático, que, aliás, não se interessava nem um tiquinho por essa coisa de política. “Jamais andava além de vinte-trinta metros e nunca foi visto dentro d’água. Usava umas bermudas discretas, até o joelho, e camisas de tom neutro, combinando com a bermuda. Ficava na tocaia, à espreita, e logo atacava no primeiro passante. Tinha sempre engatilhada a mesma historinha com pequenas variações” (pág. 133).
A forma como Salim Miguel decidiu construir a narrativa de seu romance desmontável é tão distinta quanto as histórias que conta. Usou a primeira pessoa, a segunda, a terceira. Diálogos diretos ou indiretos, pensamentos misturados na narração de outros… É como se nós, leitores, estivéssemos ouvindo histórias de pescadores em uma noite estrelada, ao lado de uma fogueira e comendo peixe assado. Cada um tem seu jeito de contar o causo. E todos gostam de se meter nas histórias do outro. Tem até história de defunto. “Sou o falecido da Fininha… Faleci, a Fininha não aceita a outra palavra, nem pronunciar posso. Consegui uma licencinha, bem curta, aqui estou. Não te espanta, nem fui o primeiro, tem um tal de Brás Cubas, não me olha assim, só porque sou pescador, sei ler, gosto (pág. 145)”. E de cachorro: “Mexericavam que eu era guapo, mas sem eira nem beira, embora gatinhas de todo tipo me perseguissem. Meu ponto agora era a venda, ouvindo a bravata dos viventes, que bebiam cachaça e cerveja, beliscando lingüiça e sardinha frita, à espera do chamado do mar. Me davam uns bocados, eu era diferente, preferia a sardinha. (…) Nem sei quando tudo começou a mudar, enquanto as casas iam desaparecendo, as vendas se acabavam para dar lugar aos chamados super, de onde me enxotavam (página 142)”.
Toda essa diversidade de personagens e narrativas poderia até dificultar a leitura. Mas, pelo contrário, é um grande atrativo. Seja lido como romance ou como livro de contos, Mare nostrum é uma daquelas leituras fluidas. Mesmo que feita de interrupções. Mas embora estejamos sempre no controle desse mare nostrum, que pode nos levar tranqüilos, a boiar sobre a imensidão sem ondas, temos de tomar cuidado. O mar é traiçoeiro. Pode nos pegar de surpresa, como um buraco surgido de águas rasas.