Há livros que passam por nós deixando marcas profundas — boas ou ruins. Outros deixam rastros apenas. E há os que não deixam nada. Nem uma marquinha. Nos são indiferentes. Nem santos nem anjos, do tcheco Ivan Klíma, deixou-me marcas muito superficiais. É como o vaso nu que o pai da protagonista, Kristýna, tinha em casa.
As marcas — ou falta delas — dependem de quem lê, é claro. Do estado de espírito, da sensibilidade e do grau de entrega. Pode ser que minha entrega não tenha sido suficiente. Pode ser que eu não estivesse propensa a apreciar uma obra que, como tantas outras que já li, trata de relacionamentos amorosos e familiares e da busca por preencher “aquele vazio” que a maioria de nós sente, vez ou outra. E pode ser que eu tenha me decepcionado com o rumo que o livro tomou, depois de ler as primeiras páginas e o release enviado pela editora. Seja como for, o escrito não me impressionou. Só isso.
No início da obra, Kristýna recebe de sua mãe cartas escritas por seu pai, um stalinista ferrenho, com quem ela não queria se parecer em nada, nada. Isso seria um material muito rico para ser trabalhado num livro, acreditei. Confirmava, a princípio, o que o release dizia: “Kristýna descobre o legado vergonhoso do pai, um burocrata do partido comunista, registrado em diários e documentos que começa a ler avidamente”. Então, achei realmente que a história correria por aí. Foi um engano. As cartas são muito pouco citadas. E Kristýna não as lê avidamente. Pelo contrário. Lê displicentemente. Não quer se envolver muito com as coisas que o pai fazia. Está mais preocupada com a filha adolescente que se envolveu com drogas, com o ex-marido que está com câncer terminal e com o novo namorado, 15 anos mais jovem. Uma coisa assim, meio folhetim das oito.
Como o título sugere, o livro trata de pessoas comuns, com problemas comuns. Com suas bondades e pequenas maldades. Com sua energia e tédio. Com seus vasos cheios ou vazios. Os casos que compõem essas vidas comuns são contados por três vozes diferentes: Kristýna, Jana e Jan. Esse recurso — o de dar diferentes vozes para contar a história — é o ponto forte do livro. Dá agilidade à história, quebra a monotonia. Mantém a atenção do leitor.
Kristýna é uma dentista de 45 anos que vai levando a vida. É marcada para sempre por ter nascido no dia em que Stalin morreu. O pai a conheceu apenas três dias após o seu nascimento, porque ele estava de luto por seu ídolo. Seu “primeiro e único ex-marido” a traiu e, agora, ela não confia mais nos homens. Nem em seu novo querido, Jan. Sua filha, Jana, está indo mal na escola e, aparentemente, é viciada em drogas. Seu trabalho no consultório é mecânico, mas ela gosta do fato de poder aliviar a dor dos outros, já que não pode fazê-lo com sua própria.
Passo oito horas diárias no consultório dentário, levo meia hora para chegar no trabalho e o mesmo até em casa, e a viagem num metrô deprimente, ou em ônibus lotados, é suficiente para minar as energias de qualquer um e para abalar a saúde mental. Isso sem falar no que ainda tenho de fazer em casa para que as coisas funcionem. E se passo uma tarefa para Jana, ela a executa de tal modo que preciso refazer tudo. […] Deus, por que acabei tornando-me tão solitária?
Jana está em constante conflito com sua mãe, uma careta. Não se interessa pelos estudos e faz de tudo para chamar a atenção dos pais. Por isso, começa a usar heroína e a transar com qualquer um que apareça em sua frente. “Eu também sou má, e não contei a mamãe que, além do dinheiro da carteira, afanei a correntinha e o anel dela e que eu me deitava com os rapazes.”
Jan ainda mora com a mãe. Trabalha investigando crimes cometidos durante o stalinismo. Nas horas de folga, gosta de ficar com Kristýna e jogar RPG com os amigos e a ex-namorada.
Não sei o que fazer. Não consigo concentrar-me ou pensar em outra coisa a não ser em reconquistar Kristýna. No trabalho, fico olhando para o monitor ou para as folhas de papel, sem compreender o sentido daquilo que leio. Cancelei o jogo de hoje à noite. Talvez porque não queira encontrar-me com Vera, mas principalmente porque não consigo pensar em qualquer jogo.
Além desses personagens-narradores e os secundários (pais, marido, irmãos), a morte também é um personagem importante do livro. A dentista a vê como uma garotinha, e não como aquela caveira vestida de preto com a foice na mão. A garotinha levou a avó de Kristýna, judia na época errada, que morreu num campo de concentração. Uma tia que ateou fogo ao corpo. O pai e o ex-marido, que morreram de câncer. E, algum dia, a levará, quem sabe quando ela mesma “extrair” sua vida.
Mas sinto então uma presença atrás de mim, a eterna criança, a mensageira de Deus, que me sussurra que ela também é minha filhinha e que posso encontrá-la a qualquer momento, ela irá abraçar-me, ficará comigo para sempre e seremos felizes, e todo medo e toda dor desaparecerão.
Apesar de tantos personagens e tantas histórias paralelas — ou justamente por causa disso mesmo — Nem santos nem anjos começa a engrenar quase no final, nos dois últimos capítulos. Os personagens vão se aprofundando, mas não tanto a ponto de o leitor criar uma identificação com eles. Talvez por isso a marca deixada em mim por este livro seja tão singela. Falta alguma coisa nesses vasos nus. Uma flor, talvez.