Triz, primeiro romance de Pedro Süssekind, propõe logo de saída uma importante premissa, que pode ser fundamental enquanto chave de compreensão de sua obra: a de que “a vida só faz sentido durante as horas de jogo”.
Com efeito, o protagonista-narrador, Murilo Zaitsev Albuquerque, num primeiro momento, faz-nos saber que é um viciado em corrida de cavalos. Mas não se trata apenas de mais um caso de jogador compulsivo que, ao fim e ao cabo, acabará falindo, tanto material quanto moralmente, como muitos personagens literários obcecados por jogatinas. Nesse sentido, aliás, é o próprio narrador que nos remete a outros grandes romancistas russos que tratam da temática do jogo, instaurando, assim, de modo explícito, como um de seus procedimentos narrativos, o diálogo intertextual que com eles estabelece, como ocorre com Dostoiévski (O jogador) e Gustav Traub (A aposta). Indo além destes, poderíamos citar também os mais modernos Verão em Baden-Baden (1981), de Leonid Tsípkin, ou ainda outro, de matriz freudiana, Aurora (1926), do austríaco Arthur Schnitzler, em que o primeiro-tenente Wilhem, devido às suas pulsões obsessivas, perde-se completamente diante da impossibilidade de saldar uma absurda dívida de jogo. Recorrentes a todas essas obras, o desespero fatal dos que se endividam por conta do vício.
O que, no fundo, distingue Murilo de tantos outros anti-heróis jogadores, representantes do fracasso e da derrocada, advindos da ilusão dos ganhos desse flertar com a própria sorte, é que ele reflete sobre o ato de jogar como indissociável do ato de viver, acredita mais no acaso e na intuição do que nas estratégias articuladas para a almejada vitória e confessa:
Já eu, que só enxergo nas corridas as imprevisíveis variações do acaso, até ouço as constantes e variáveis das análises estatísticas, acredito nelas, mas no caminho para o guichê de apostas sempre sou assaltado por alguma intuição definitiva e aparentemente infalível. Os números e os nomes se combinam, tomando forma, e finalmente escolho seguir aquela intuição em vez da estatística. Mesmo assim, é preciso admitir meu fracasso na tentativa de imitar Aleksiéi Ivânovitch, de Um jogador, ou de Nikolai Kolotov, de A aposta, afinal meu sangue russo talvez seja muito diluído para gestos dramáticos, dívidas acumuladas, derrocadas e riscos exagerados. Gasto um pouco, ponho na conta do divertimento; a alegria de um ou outro acerto, se não paga as perdas, compensa com sobra as apostas erradas…
Se é verdade, então, que Süssekind rende homenagem aos russos (uma vez que o protagonista, neto de russo, é estudioso e amante da literatura russa, além de seu tradutor), especialmente às obras que têm o jogo como assunto dominante, é também verdade que, numa proposta abrangente e filosófica, busca investir na leveza do acaso e em suas múltiplas variações, em que o que importa é apostar, mais do que ganhar ou perder. Daí por que, seja nas questões concernentes às corridas no Jóquei do Rio de Janeiro, seja no que diz respeito a seus relacionamentos amorosos, ou mesmo nas escolhas tradutórias que precisa fazer, Murilo encarna, de certa forma, o que Schiller postulara em Sobre a educação estética a respeito do impulso lúdico como elemento necessário ao ato criativo. Tais idéias de Schiller fundamentadas em Kant, em síntese, revelam que “é no estado lúdico, ‘desinteressado’ ou ‘desinteresseiro’ (isto é, sem interesse na existência material do objeto) que o homem supera as dilacerações da vida interessada”. Seguindo essa linha de raciocínio, percebemos que um dos aspectos mais interessantes do livro de Süssekind reside exatamente no fato de apostar no discurso eminentemente estético, já que como anunciamos anteriormente “a vida só faz sentido durante as horas de jogo”. Se a vida é jogo e a natureza lúdica é intrínseca ao humano (Huizinga — Homo ludens), o homem deve jogar com a beleza e fruir o que o ato de apostar traz em si, enquanto fuga possível das dilacerações da realidade.
É esse traço lúdico que perpassa todo o romance, para além do vício, que, no caso, não faz do protagonista um perdedor aniquilado, mas alguém que vai aprendendo a jogar com as cartas que a vida lhe apresenta.
Viciado em tradução
Outro jogo em que o narrador também se vicia é o da tradução. De fato, mais do que ser o profissional a quem cabe a tarefa de traduzir a obra A aposta, de Gustav Traub, em que o médico russo Nikolai Kolotov será vítima das armadilhas do carteado, Murilo se deixa contaminar por ela, dando indícios de que, assumindo as funções de seu metiê, revela-se bem mais do que co-autor do texto que se propõe a verter para o português. É como se passasse a vivenciá-lo em sua própria história pessoal.
Nesse nível do desenrolar da narrativa, cabe toda uma discussão sobre o papel do tradutor e os limites e alcances de seu trabalho. Calvino já asseverara que “Tradurre è il vero modo di leggere un testo” (“Traduzir é o verdadeiro modo de ler um texto”), mas Süssekind parece radicalizar essa máxima, já que o protagonista de Triz está tão impregnado do que traduz que talvez se pudesse afirmar que para ele “traduzir é o verdadeiro modo de viver um texto”. Com efeito, é tão decisiva a influência da obra de Traub no espírito do narrador que a composição do romance, várias vezes, se utiliza do recurso da apropriação de trechos inteiros da obra daquele escritor. Se pensarmos no tradutor como um leitor exímio e extremamente habilitado, no limite, o que aqui se apresenta é a instigante questão dos efeitos do texto no espírito de quem o lê (a propósito, vale mencionar o interessante estudo de Stefano Calabrese, Wertherfieber, bovarismo e outras patologias de leitura romanesca).
Importa notar o quanto esse tipo de procedimento enriquece o romance como um todo, porque, por meio do jogo tradutório, Süssekind aponta a outro grande achado da literatura contemporânea, qual seja o das projeções especulares.
Projeções
Não é à toa que o primeiro capítulo da obra nos apresente Murilo apostando na corrida de cavalos no Jóquei Clube do Rio de Janeiro e o segundo nos desloque radicalmente, remetendo-nos, de chofre, a um dos trechos do romance A aposta, em que o perfil de Nikolai Kolotov vai se desenhando, no inverno rigoroso de Paris, onde o médico russo teria sido exilado. Para alinhavar a dinâmica fragmentária pré-anunciada (em que dois personagens, aparentemente dissociados e distantes, apresentam histórias diversas no mesmo corpo narrativo), o autor lança mão do expediente tradutório.
A tradução, nesse sentido, é um eixo de força que opera em dois níveis. O primeiro, mais evidente é o intra-ficcional, num viés metaliterário (já que Murilo é tradutor literário de Traub):
Kolotov cumprimenta o anfitrião, dizendo-lhe que é uma honra jogar numa mesa com banca tão ilustre. Então Fouquet o saúda amavelmente e indica o lugar vago bem ao lado daquele cavalheiro de grandes olhos negros (olhos vulpinos, segundo a definição de Traub que me levou a consultar o dicionário) dirigidos fixamente para as fichas vermelhas que equilibra em seus dedos finos, como se as examinasse.
O segundo nível é o que se estabelece para fora do âmbito estrito do romance, em que a tradução serviria de ponte de intermediação entre o narrador e o leitor (como se o narrador também precisasse “traduzir” — no sentido de “fazer o receptor entender” a história de Traub) que, se assim não fosse, ficaria sem saber que Murilo e Kolotov são protagonistas de romances distintos, que se tocam e se refletem especularmente.
Em outras palavras, só depois de termos sido apresentados a Murilo e em seguida a Kolotov é que ficamos sabendo que o primeiro é o tradutor do segundo e que se deixa contaminar tanto pelas atribulações e intrigas do médico, viciado em “faraó” (espécie de jogo de cartas comum à época — fins do século 19, início do 20, na Rússia), que, a todo momento, evoca os parágrafos e situações que traduz do romance para a sua própria experiência, projetando-se neles (como num jogo de espelhos, em que um revela o outro e vice-versa).
De certa forma, os níveis tradutórios se abrem aos níveis projecionais: Traub está para Süssekind, assim como Kolotov para Murilo.
Virando o jogo
Ainda que o romance ganhe força por meio desse universo de equivalências e correspondências, o que acaba lhe conferindo um tom maior é exatamente o de apostar nas idiossincrasias de cada um dos respectivos jogadores.
Por mais que possa ser uma obra de amor à Literatura Russa e aos autores que a dignificaram, por mais que Triz possa ser lido como homenagem ao grande e ainda pouco conhecido Gustav Traub (segundo o narrador, “o maior escritor russo depois de Púchkin”) e ainda que haja uma série de aproximações entre Murilo e Kolotov, talvez o grande lance de Süssekind tenha sido o de, ao final, virar o jogo, ponderando:
É exatamente o fato de ter ganhado que leva Kolotov à ruína, pensei ao passar pelas calçadas quase alagadas, na rua do Catete. Sabia o que estava para acontecer: da próxima vez que ele encontrasse Iáchvin, já seria para cair na sua armadilha. Restava da minha primeira leitura do romance, feita anos antes de começar a traduzi-lo, uma impressão angustiante dessa parte do livro, suscitada pela maneira seca como Traub descreve a derrocada do protagonista. Não há uma preparação, um processo gradual, ele simplesmente continua a apostar indefinidamente, e quando não tem mais recursos, recorre a Iáchvin como se isso fosse natural, sem se preocupar. Daquele ponto em diante, parece não haver escapatória.
Murilo, diversamente de Kolotov, mesmo perdendo, tem a escapatória dos que apostam na vida e só querem fruir o prazer estético do jogo, que pode ser também o de narrar, já que como diz analogamente a canção, ele segue, “nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas sempre aprendendo a jogar”…