Existem muitos Dalton Trevisan. O Dalton Trevisan que dirigiu a revista Tinguí, em 1940. Naquele contexto, ele paria sonetos. Num deles, intitulado Mãe, o poeta Trevisan escreveu: “Era um quarto escuro. Em mísero leito/ O moribundo, apenas um menino,/ Debatia-se em agônico trejeito…/ E possuía-o o frio da morte, ferino”. Há outros Dalton Trevisan. Tem o Dalton Trevisan que editou uma outra revista, a Joaquim, entre 1946 e 1948. Na edição 11, ele, o poeta já metamorfoseado em contista, já combativo, disfarçado de crítico, faria uma saudação a outro artista visceral da província, Newton Sampaio (1913-1938): “O maior contista do Paraná foi um moço chamado Newton Sampaio. Morreu aos 24 anos, num sanatório de tuberculosos, em 1938 e contra ninguém, neste Paraná, se fez tão grande guerra de silêncio. É que teve, em vida, a coragem de rir dos tabus da província e isso eles não perdoam quando o infiel cai… morto”.
Há muitos outros Dalton Trevisan. Tem o que debutou na malha literária brasileira, mundial, em 1959, com Novelas nada exemplares (E desde então o conto nunca mais seria o mesmo). Tem o Dalton Trevisan que no livro Cemitério de elefantes apresentaria Uma vela para Dario, um dos contos mais brilhantes da literatura de todos os tempos, em todo o planeta Literatura. Tem o Dalton Trevisan que sintetizou no personagem Nelsinho a alma do curitibano — no livro que traz o título pelo qual o autor também é conhecido: O vampiro de Curitiba. Há muitos Dalton Trevisan. Tem o autor de A polaquinha. Tem o autor de O pássaro de cinco asas. Tem o autor de Morte na praça. Tem o autor de Chorinho brejeiro. Tem o autor de Lincha tarado. Tem o autor de Capitu sou eu. E, neste presente, tem o autor do recém-publicado Macho não ganha flor.
Há o Dalton Trevisan que publicou, por muito tempo, seus contos em livretos artesanais antes da edição em livro. Laboratório particular. Teste de recepção. Idiossincrasia vampiresca. Em 2006, o Vampiro veiculou diversos textos na revista Idéias (publicação quinzenal da Travessa dos Editores, Curitiba). Os leitores da revista tiveram acesso, em primeira mão, a textos como Umas pedrinhas, Três ovos de Páscoa, A festa é você, O gato muleta, entre outros — agora editados neste livro da Record.
Flerte real
Fatal. O olhar de Dalton Trevisan não procura, encontra. O Vampiro habita Curitiba e não poderia, inquieto e atento que é, deixar de captar as nuances do que está ao seu redor. E este tempo de violência, com os seus atores e objetos, como era de se supor, invadiram irreversivelmente o imaginário do autor — e dão o tom em Macho não ganha flor. Fatal.
“Ladrão em Curitiba é o que não falta.” Fatal. “Viver na Vila, cara, é muito perigoso.” Fatal. “Enfiei o revólver no bolso — em Curitiba nunca se sabe.” Fatal. “Acho que sou o pai e o avô de todos os ladrões de Curitiba. E o mais azarado também. Já passei dos 70 e ainda na ativa. Nunca tive sorte. Nem acertei um grande golpe. O lucro sempre foi pequeno. Isso aí: só mixaria.” Fatal. “Me deu pó, cheirei. Me deu pedra, queimei. Me deu êxtase, pirei.” Fatal. “A gente bebia, é certo. Elvira mais do que eu. Três anos ficamos juntos. Bebendo, fazendo amor, brigando. Pouco depois que nasceu a menina, ela me abandonou.” Fatal. “Não uso drogas. Só experimentei no tempo dessa maldita Elvira. Ela quer agora dar uma de séria. Basta você passar pela casa e ver a folia. Todo mundo nu. Bêbado. Na maior bacanal.” Fatal. “Primeiro fiquei com medo. Falei que podia visitar o doutor. Só que o rabinho eu não dava. Se era para não dar, ela respondeu, melhor nem ir. Mas quero ir, doutor. E se for mesmo preciso, então eu dou. Ai de minzinha, tenho um medo danado!” Fatal. “Alguém fala em aids? Pronto. A menina tem crise de choro. Quer morrer, quer se matar. E só. E mais nada.” Fatal.
Macho não ganhar flor fala, sim, de violência. Mas também fala da inevitável queda do humano diante da e na existência. Os personagens, então, se revelam todos decadentes. O estuprador que não consegue ereção diante da vítima. O ladrão que é preso em flagrante. A fêmea no cio que é desprezada pelo macho. Outro ladrão preso em flagrante. A menina que perde a inocência sem ternura. Mais um ladrão preso em flagrante. E, enfim, variações das possibilidades que a violência tem para se manifestar nestes tempos em que todos flertamos com o perigo. O tempo todo. Fatal.
O poeta, o jornal e o presente
Dalton Trevisan, passados mais de 80 anos, no mínimo 65 deles literários, vive, e também sofre, o presente. Lê. Caminha pelas ruas de Curitiba. Escreve. Na espreita. Relê. Sintoniza no que e no como se fala (e se vive) por aí. Reescreve. Sua literatura conversa com o dito real. Lê, escuta, escreve. Gírias, oralidades e ritmos do que pulsam formam (também) a massa de sua prosa. Fatal. O autor, artífice incomum, dono de texto e técnicas apuradíssimas, se deixa contaminar pelo acaso. Pelo porvir. Genial. Eis, então, o mestre do presente. O mestre do presente e do futuro.
Dalton Trevisan, leitor (também) de Manuel Bandeira, desde muito, desde sempre, é — mestre do presente que é — atento a todo e qualquer possível poema impresso em uma notícia de jornal. Um crime que ganhou as manchetes dos jornais de Curitiba durante 2006 pode ter deflagrado o conto A festa é você. Ano passado, um profissional liberal foi assassinado por um garoto em um apartamento na região do Jardim Botânico. Alguns detalhes do crime, amplamente divulgados pela imprensa escrita, dialogam com o texto literário do Vampiro, sobretudo no ápice:
De repente ele me acordou. Descobri que eu estava nu. O tipo, bem doidão, de olho vermelho. Querendo fazer sexo. E, primeira vez, eu de mulher. Ainda meio abobado, ri na cara dele. Uma bicha velha mais louca daquelas.
Só que o tio ficou nervoso e veio para pra cima de mim. Querendo me agarrar à força.
Então começamos a lutar. Ele era alto e forte. Eu, mais moço e ligeiro. Batendo um no outro, rolamos pelo quarto. Fugi para a cozinha, ele me perseguiu. Eu estava muito dopado. Não lembro direito o que aconteceu.
Sei que alcançou uma faca ali na mesa. E me feriu várias vezes. Eu sangrava pelas mãos, braços e o corpo inteiro. No desespero de me salvar, arranquei dele o punhal.
Daí só lembro de estar me vestindo — os dedos lambuzados de mel vermelho. Fui pegar o carro dele. Muito fraco, sacudido de tremores, com medo. Eu moro na Vila e nem tinha dinheiro pro ônibus.
Trouxe ainda as roupas que o tio me deu. Mais o aparelho de som, a tevê e o DVD. Era tudo presente. Falava que ia me levar nas lojas para comprar roupa nova. Só que nunca levou.
Dalton Trevisan, artista genuíno, recria o suposto real. Dalton Trevisan, produtor de obras-primas, reinventa o real a partir de seu olhar literário. Dalton Trevisan, escritor do time primeiro, flerta com o real e, eis, devolve o mais do que real. Dalton Trevisan, mestre do presente, sabe que o rei está nu. E olha. E aponta. E escreve. (E pouco importa se a matéria-prima está no jornal, na rua ou numa página qualquer. O que vale é o efeito do texto. E o texto do Vampiro o credencia como o grande nome da literatura. Do Brasil. Do mundo. E das galáxias todas, possíveis, imaginárias, surreais).
O Vampiro é rock and roll
Direto. Como Can’t Be Seen dos Stones. Visceral. Como a voz da Cássia Eller. Incomparável. Como Hendrix no solo de All along the wachtower. Hipnotizante. Como Bob Dylan a cantar. Irresistível. Como os sons de Lennon & McCartney. Rasgado. Como Kurt Cobain berrando. Irônico. Como Cazuza. Demolidor. Como um show da Relespública. Indecifrável. Como Robert Johnson na encruzilhada. Falso fácil. Como o Clash. Lírico. Como o Nei Lisboa.
O Vampiro é rock and roll. Cada conto como se fosse uma canção. Cada novo livro como se fosse mais um álbum. Álbum conceitual. E sempre mestre do presente. A construir a estrada que o leva pro futuro. Repetição? Não. Reinvenção. Parece sempre o mesmo? Cada álbum novo dos Stones reinaugura o rock. Modern Times do Bob Dylan faz o rock renascer. Nenhuma canção dos Beatles é de ontem. Hendrix solando é novidade permanente. Cada linha do Dalton Trevisan refaz a literatura. Cada conto de Macho não ganha flor recria o humano. E a literatura. De ontem. Do hoje. Do amanhã. Ler. Reler. Ler de novo. Reler outra vez. Continuamente. Os riffs de Keith Richards não cansam. O texto do Vampiro também não. Sempre tem sangue por aí. Sempre terá.
Vai até a porta. Espia. Parece não haver ninguém na espreita. Fecha com a chave, desce a escada e chega ao portão. Abre. Fecha. Caminha pela Amintas de Barros, entra na Ubaldino do Amaral e desce pela Rua XV. Olha para frente, para trás, para os lados. Deixou a barba crescer. Mas poderia haver um repórter. Pior seria um fotógrafo. Ou um cinegrafista. Ou um curioso qualquer.
Não dobrará à direita na General Carneiro, rua que o levaria até a Loja de Livros. Não há ninguém por ali. Tudo vazio nas imediações da Reitoria da UFPR. Segue pela Rua XV até a Mariano Torres. Vira à esquerda. Caminha uma quadra e vira à direita. Está na Comendador Macedo, por onde continua até a Conselheiro Laurindo. Então, pára rente à parede de um hospital. Olha para um lado. Para outro. Para cima. Do outro lado da rua aquela porta está aberta. Alguém estaria observando-o por ali? Pouca gente, quase ninguém. Hoje é feriado em Curitiba. Atravessa a rua.
É isso aí, Vampiro. Não pare nunca.
Sempre haverá sangue.