Vaginas, entranhas e aranhas

Minha primeira experiência com o órgão genital feminino, aos nove anos de idade, foi desastrosa
01/07/2000

Minha primeira experiência com o órgão genital feminino, aos nove anos de idade, foi desastrosa. Peguei a mão de um colega de escola e fui escrevendo somente as iniciais enquanto dizia a frase: Brasil Unido Constrói Estrada Trans Amazônica. Ele ficou puto e descontou na mão de outro, que escreveu na mão de outro e assim por diante. Até que a brincadeira chegou à patinha delicada do Maurício (um viadinho que na sexta série acabou estuprado por uns marmanjos da oitava), que contou para a professora. Ela chamou à frente todos (uns 20) aqueles que tinham a “sigla” na mão. Foi descobrindo os autores até que o último apontou para mim, quietinho no fundo da sala, de mãos limpas. Tia Gilka, que me adorava e me considerava seu melhor aluno, baixou os olhos em decepção e obrigou-me a inaugurar o fichário, a punição da época (três assinaturas era suspenso e seis, expulso).

Naquele momento, não entendi bem por quê, mas compreendi que aquela palavra estranha, que em hipótese alguma deveria ser pronunciada, também não podia ser escrita, pelos menos em 1974.

A poetisa e dramaturga americana Eve Ensler também teve esse sentimento por quase toda a vida. A diferença é que ela sempre carregou a palavra estranha entre as pernas. Há alguns anos, resolveu abri-las. Ensler entrevistou mais de 200 mulheres e deixou-as falar a vontade sobre suas vaginas, o termo técnico (mas não menos proibido) para a “sigla”. A pesquisa resultou numa premiada e polêmica peça teatral que virou livro, Os Monólogos da Vagina (Bertrand Brasil, 124 págs.).

A peça, dirigida no Brasil por Miguel Falabella, foi sucesso de público por onde passou. Provavelmente o sucesso se deve mais ao fato de o assunto ser polêmico e de que a palavra proibida é dita 128 vezes na encenação. A única coisa que posso dizer sobre a peça é que não a vi e não gostei, pois é baseada num livro idiota e mal escrito, uma verdadeira afronta à importância e à delicadeza do tema.

A autora ofende a inteligência dos leitores com declarações bobas, poeminhas pueris e relatos melodramáticos sobre atrocidades cometidas contra a mulher em lugares como Bósnia e África. Não que isto não seja grave, que o estupro não seja um mal bárbaro e universal, mas Eve Ensler não acrescenta novidades e nem propõe soluções, a não ser a mais vaga possível, de que a mulher deve conhecer sua vagina para conhecer a si mesma, como se a vagina tivesse neurônios. Eis um exemplo das besteiras que permeiam o livro:

“— Se sua vagina se vestisse, o que usaria?
— Sapatos vermelhos de salto alto e um boné do Mets virado para trás.”
— Se ela pudesse falar, o que diria?
— Diria palavras que começam com “V” e com “T” — violino e tartaruga, por exemplo.” (pág. 95)

A autora caiu no mais profundo dos lugares-comuns. Feminista declarada, e lésbica enrustida, preferiu transferir a responsabilidade dos problemas da sexualidade da mulher para o machismo. Não que não haja machismo pelo mundo, incluindo o Primeiro, pois em qualquer lugar o homem pensa mais com a cabeça de baixo do que com a de cima. Mas o machismo também não deixará de existir enquanto houver uma mulher disposta a colocar um biquíni para fazer propaganda de calçados, por mais que Ensler sapateie.

A exploração selvagem da sensualidade feminina, esta sim, uma grande atrocidade contra a mulher, está ausente no livro. Aliás, este é um dos maiores paradoxos mundiais da publicidade. Enquanto em terras longínquas como… Curitiba… existe mulher pelada até em anúncio de material de construção, elas aparecem totalmente recatadas quando a propaganda é de absorventes para vaginas. Ou seja, no comercial do produto em que seria até justificável uma cena mais íntima, a realidade é escondida. Bem, na verdade esta foi apenas uma observação ridícula para trazer à tona outro assunto, pois o livro de Ensler não merece ser lido muito menos comentado.

Usando um absorvente como personagem, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar escreveu um divertido romance também sobre o órgão feminino, mas em suas páginas chamado por um nome mais sugestivo que as 128 citações da peça de Ensler. Em Fogo nas Entranhas (Dantes Editora, 124 págs.), Almodóvar coloca mulheres não para falar, mas fazer acontecer com suas vaginas, sem o mínimo constrangimento.

O enredo de Fogo nas Entranhas é genial. Um chinês residente na Espanha, desiludido com seus casos amorosos, resolve suicidar-se. Deixa sua fábrica de absorventes para cinco ex-mulheres, desde que no velório elas usem um dos exemplares que ele preparou antes de morrer. O novo absorvente também foi distribuído gratuitamente na cidade durante a semana de lançamento.

O detalhe é que o chinês inventou um absorvente que deixa as mulheres de fogo, nas entranhas, e Madri vira um caos. Mulheres insaciáveis perambulam pelas ruas da capital espanhola, de metralhadora em punho, para disputar varões que possam aplacar suas vontades.

O livro de Almodóvar é uma comédia pornográfica, mas é uma obra muito mais libertária para as mulheres do que Os Monólogos da Vagina. As cinco ex de Chu Ming Ho são fortes, decididas e comandam as ações no romance, transitando com serenidade numa Madri em pânico. Com muito bom humor, o autor espanhol consegue retratar que a mulher, quando quer, sabe lutar com afinco por seus direitos, ou neste caso desejos. Quem não conhece Almodóvar pode até duvidar desta intenção, mas aqueles que acompanham sua trajetória no cinema sabem o empenho que o diretor de Tudo Sobre Minha Mãe sempre teve em valorizar o sexo (o gênero, não o órgão) feminino. Assim como na maioria de seus filmes, em Fogo nas Entranhas Almodóvar mostra a força da mulher, ainda que de forma irônica e surreal.

Pode-se até não gostar desta forma, mas é impossível não rir com relatos como a do encontro de quatro mulheres com dois empregados da limpeza pública que regavam a rua. Elas aproximam-se, levantam os vestidos e usam o jorro forte da mangueira para apagar seu “fogo”, uma cena digna dos melhores momentos de Almodóvar no cinema.

A proposta do autor pode até não ser a ideal de debater a questão da opressão da sexualidade feminina, mas é, no mínimo, mais categórica e divertida do que o discurso auto-piedoso de Ensler. Não é para menos que Fogo nas Entranhas, livro de bolso para ser degustado em menos de uma hora, freqüenta a lista dos mais vendidos desde que foi lançado.

A americana de Os Monólogos…, na verdade, valoriza tanto a sua vagina que fica claro que gosta mesmo é de ter duas à mão. Sorte dela não ter sido vizinha de Raul Seixas, que com certeza subiria o muro do quintal e a perturbaria dia e noite com o brilhante rock que difundiu mais um sinônimo para a “sigla”: vem cá Ensler deixa de manha minha cobra quer comer sua aranha

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho