Volta-se à velha discussão: o que seria de fato uma literatura regional? Por aqui se convencionou enquadrar nesta gaveta tudo aquilo que se passa fora do eixo Rio-São Paulo, sobretudo todas as narrativas centradas no Nordeste. O vício se agrava, ou melhor, nasce com o chamado Romance de 30. Embora o conceito de uma arte que privilegiasse uma “língua nacional”, na boa expressão de José Américo de Almeida, e que descrevesse o realismo de miséria e injustiça social que marcava aquele primeiro quartel do século 20 tenha se espalhado por todo o Brasil, sua grande fábrica se instalou mesmo entre os nordestinos.
No torvelinho que Oswald de Andrade chamou de “os búfalos do Nordeste” estavam Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego, mas aquele estilo narrativo tomou a literatura de outros recantos em vozes bem diversas, como as de Lúcio Cardoso, Marques Rebelo, Erico Verissimo, entre outros. Aliás, destas outras regiões já vinham os precedentes pré-modernistas, como Monteiro Lobato e Simões Lopes Neto.
Apesar de todas estas argumentações, ainda se pecha o romance que tem o Nordeste como cenário de “romance regionalista”. E nada mais inverídico. Basta tomar exemplos como Sol das almas, de Hermilo Borba Filho; Vento do amanhecer em Macambira, de José Condé; Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro; e, mais recentemente, Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito. Todos têm o Nordeste como cenário e usam de uma linguagem caracteristicamente nordestina, mas seus dramas e discussões têm universalidade e poderiam estar inseridos em qualquer parte do mundo.
Jogo
Toda esta recorrente discussão pode ressurgir na esteira do novo romance de Luiz Bernardo Pericás, Cansaço — A longa estação. Em apenas dois longos capítulos, Punaré e Baraúna, o escritor traça uma mesma história sob dois prismas. Como numa espécie de comédia de costumes, os fatos vão se explicando, se desdizendo, se reinventando. Tudo, na verdade, é um jogo bem realizado de versões e contra-versões, onde o bem e o mal trocam de lugar sem que haja qualquer mácula nas verdades definidas pela ficção. É como se Pericás nos alertasse para o fato de que verdades e mentiras são apenas condições da forma como os acontecimentos nos chegam.
Tudo parte de um enredo bem simples.
Punaré, José Euletério, se toma de encantos por Cecília, a Cicica, e por conta disso se envolve numa disputa com Baraúna, a quem corta o rosto. Confiante em sua paixão, resolve abandonar a casa de seus pais, casar com a moça e arribar para a capital onde encontrará o mar. Leva com ele o cavalo, um boi para presentear o futuro sogro e um cachorro.
Baraúna, por seu turno, também tomado de amores por Cicica, não precisa abandonar nada. Encontra o pai morto por soldados, se vinga matando os assassinos e sai em busca de sua paixão e de todos os imprevistos e conseqüências que a vida lhe colocará daí em diante.
Arqueólogo da linguagem
O que importa aqui são as reentrâncias do enredo. Com uma habilidade precisa e apurada, Pericás tece sua trama com linhas firmes. Em nenhum momento perde o eixo de suas reflexões. E usa de sua ficção para apurar outros elementos naturais de nossa cultura. Parece sempre catar o sentido maior de cada gesto de cada um de seus personagens. Como escritor refinado, acredita que há sempre um sentido ancestral por trás do mondo de ação de seus personagens. Mesmo o desbunde meio geração beat que apresenta em seu romance Mystery Train está emoldurado neste, digamos, projeto.
Em Cansaço isso se adensa no trabalho com a linguagem. Pericás recorre ao palavreado mais profundamente entranhado no sertanejo. Não chega, a rigor, a trabalhar com termos corriqueiros e cotidianos atuais, mas com as formas de comunicação que ficaram perdidas no tempo, afinal, sua trama se passa num instante distante, coisa da primeira metade do século 20. Também não tem interesse em criar um linguajar a partir dos vocábulos usados pela população dos sertões, como fez Guimarães Rosa. Seu ofício se aproxima mais do arqueólogo. Resgata termos antigos e os explica num amplo glossário que ganha interesse mais pelos passeios históricos que faz do que propriamente por conta do significado que oferece para cada verbete.
É o sertão arcaico, centenário, num exercício apurado de resgate histórico, milenar, que se desenha no livro. São as tradições nascidas em tempos muito idos — quando a Península Ibérica ainda era território de conquista moura — que se mostram tatuadas no espaço descrito por Pericás. Neste ambiente é que sobrevive uma linguagem muito própria e que nos conduz a uma universalidade extrema, que nos aproxima de nossas raízes mais profundas.
Num conflito direto com Glauber Rocha, para quem “mais fortes são os poderes do povo”, os azares deste mesmo povo é que servem de matéria para o romance. E aí se desenha todo um cenário de dores profundas. Pouco importam as razões e delírios de Baraúna e Punaré; ambos, junto com Cicica, estão envolvidos numa espécie de labirinto infindo. Em todos os corredores existe um Minotauro espreitando o vivente.
Encurralados eternamente, os personagens jogam o jogo delineado pelo imponderável da opressão e da miséria. E este tabuleiro está montado em todas as esquinas do universo, o que faz de Cansaço — A longa estação um discurso contra aquela vida de cão — a vida contra o muro — que incomodava Albert Camus.